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Histoire de Terres Kanakes: Conflits fonciers et rapports sociaux dans la région de Houaïlou (Nouvelle-Calédonie)

RESENHAS

NAEPELS, Michel. 1998. Histoire de Terres Kanakes: Conflits Fonciers et Rapports Sociaux dans la Région de Houaïlou (Nouvelle-Calédonie). Paris: Éditions Belin. 380 pp.

David Fajolles

Doutorando, EHESS

Para escrever este livro, originalmente uma tese de doutorado em antropologia defendida na EHESS sob a orientação de Jean Bazin, Michel Naepels observou rigorosamente um princípio metodológico: nunca usar, no corpo do texto, o termo "sociedade". É possível ler nessa aposta a preocupação teórica desenvolvida por Jean Bazin e Alban Bensa, baseada em uma forte crítica do estruturalismo e do culturalismo, e que tenta importar para a pesquisa antropológica uma postura teórica ligada à filosofia analítica da ação.

Michel Naepels fez sua pesquisa de campo no centro-norte da Nova-Caledônia, na costa leste da Grande Terre (a ilha principal). O município de Houaïlou apresenta um condensado de todas as características mais óbvias da sociedade (com perdão pelo uso do termo) caledoniana: uma terra de colonização européia dispersa, baseada na criação de gado; uma exploração mineira já antiga, dada a riqueza da região em níquel; a presença, desde os anos 1870, de uma fazenda penitenciária no município; a distância e a importância da estrada para Nouméa, a capital; a força da implantação das missões. No início do século, Houaïlou foi o campo de pesquisa privilegiado de Maurice Leenhardt, pastor da religião reformada e etnólogo, autor do grande clássico etnológico sobre o mundo kanak: Do Kamo. Apesar do caráter relativamente arbitrário – comentado por Naepels – da escolha do campo de pesquisa, em função de limites lingüísticos e administrativos, sua riqueza é óbvia. Os conflitos de terra em Houaïlou não constituem, porém, o objeto em si do autor: o que ele nos oferece é uma análise geral das relações sociais kanak, retraçada sob o prisma dos conflitos de terra.

O livro começa com uma imersão na história colonial desse município da Nova-Caledônia. Essa parte não se apresenta como um mero preâmbulo; as análises históricas retornam regularmente até o final do texto, de maneira tal que torna difícil definir o gênero do livro: história ou antropologia? Uma das características dessa postura teórica é superar esse dilema, que se inscreve, afinal, mais na própria história interna da academia e das delimitações disciplinares do que em diferenças teóricas e metodológicas. Histoire de Terres Kanakes pode ser lido também como um livro de historiador.

Como em toda história colonial, a análise confronta-se com a relatividade das fontes disponíveis: sejam estas a administração francesa ou os missionários, o poder do texto escrito está nas mãos dos europeus. Nessas fontes, os Kanak aparecem mais como traças da história do que como agentes. Uma descolonização dessa história seria possível? É o que tenta Naepels, tomando em conta fontes orais, e partindo de uma hipótese que nos faz pensar nos debates político-teóricos da escola historiográfica dos subaltern studies: os Kanak não permaneceram na postura de colonizados passivos, espectadores da história; tiveram um papel ativo no processo de colonização, seja como intermediários de acolhimento dos colonos e dos administradores, seja como os atores principais da evangelização da região.

Para apoiar esta hipótese, Naepels faz referência às análises de A.G. Haudricourt sobre a "civilização do inhame": segundo Haudricourt, uma das necessidades da economia kanak pré-colonial era a obtenção da maior variedade possível de tubérculos (inhame e taro, bases da alimentação kanak) para reprodução e clonagem, de modo a prevenir-se contra as incertezas climáticas. Essa razão econômica pode ser associada à freqüência das adoções e dos intercâmbios de crianças na Oceania em geral, assim como à freqüência das narrativas kanak do dom da chefia para um estrangeiro, configuração que valoriza muito quem vem do exterior. Seguindo essa intuição de Haudricourt, e estabelecendo um vínculo com a famosa interpretação que Marshall Sahlins fez do contato entre James Cook e os Hawaii, Naepels propõe a seguinte hipótese: o colonizador e a religião foram integrados (sem saber) nos caminhos do costume e da aliança kanak.

A história colonial poderia ser interpretada como a passagem do costume à lei (e à perspectiva da independência kanak socialista). Esses momentos não são entidades históricas estáveis: são o que Naepels chama de "épocas subjetivas dominantes", que servem geralmente de quadro implícito de análise nas narrativas orais kanak sobre o fato colonial. É essa presença do passado, esse papel política e socialmente ativo da história, que Naepels vai investigar.

A importância social do saber histórico no desenvolvimento dos conflitos atuais em Houaïlou deve ser associada ao seguinte fato: todos os patronímicos kanak são topônimos. Assim, as narrativas de origem clânica têm um papel central na legitimação política e fundiária de cada um dos clãs, particularmente desde que uma entidade administrativa (a ADRAF) foi encarregada da redistribuição de terras, em 1978. A condição que a ADRAF impõe é a necessidade de acordo quanto à legitimidade da pessoa ou da família que vai reivindicar essa ou aquela terra, donde as divergências e a concorrência entre narrativas de origem. Duas características dessas narrativas devem ser destacadas:

A complexidade das reivindicações estatutárias possíveis. Trata-se, para o indivíduo diante da ADRAF, do etnólogo ou no quadro de uma preocupação pessoal, de recuperar as razões históricas das alianças ou das tensões atualmente existentes entre o seu próprio clã e um outro qualquer, de retraçar o trajeto do seu clã. A guerra, a antropofagia e as mudanças freqüentes tornam-se quase impraticáveis com a ordem colonial e a sedentarização forçada dos Kanak nas "reserves"; é, provavelmente, por isso que as narrativas de origem se tornaram a forma dominante de formulação e regulação dos conflitos. Há vários níveis de legitimidade política, inclusive as que foram criadas pela administração francesa, como as tribos e seus "chefes administrativos". Além disso, depois de 1945, o estabelecimento das listas eleitorais enrijeceu a atribuição dos nomes e criou novas contestações.

O caráter "rapsódico" das narrativas de origem torna impossível pretender reconstituir a verdade sobre a propriedade fundiária pré-colonial. Assim, o papel do etnólogo deve se restringir a compreender as razões sociais e históricas dessas divergências. Apesar disso, a situação de entrevista e as demandas do etnólogo fazem com que este seja diretamente envolvido nesse trabalho coletivo de produção de narrativas, até como fonte de legitimidade. Disso deriva a complexa casuística do anonimato no texto de Naepels: alguns entrevistados são citados pelo nome verdadeiro; em outros casos, figuram sob um nome disfarçado ou um X, para não prejudicar o interlocutor.

Todos esses elementos conduzem Naepels a definir sua posição: o saber histórico/etnológico inscreve-se sempre em uma conjuntura determinada (tal narrativa foi produzida em tal momento, em função da situação social em que o interlocutor estava envolvido e de seus interesses); o etnólogo está implicado nas condições de produção dessas narrativas. Conseqüentemente, e contra a antropologia lévi-straussiana, não se pode pretender a construção de um saber mitológico descontextualizado. Os mitos de origem devem ser compreendidos nos seus contextos de produção, no seu ser social e político.

É a mesma perspectiva que permite a Naepels propor uma análise original do parentesco: a afinidade e a co-residência não são mais percebidas como princípios estruturantes de uma ordem social objetiva, mas como princípios referenciais para ações e interpretações subjetivas. Do mesmo modo, a segmentaridade deve ser concebida não como uma instituição, mas como uma possibilidade, submetida à ambigüidade da identidade política de cada um, em função dos vários pertencimentos que se pode reivindicar: o clã, a casa, a fratria, a tribo, o clã materno etc. Essa indeterminação da ação constitui um dos centros teóricos da análise antropológica que Naepels propõe; é possível ler em filigrana nos trabalhos dessa linha teórica a distinção, estabelecida por Wittgenstein no Caderno Azul, entre a ordem dos motivos (razões) e a ordem das causas. Não se pode pressupor os laços que vão ser utilizados por um indivíduo em uma determinada situação. Os motivos dos comportamentos conservam uma dimensão obscura: não se trata de uma partitura já escrita, nem da realização de uma estrutura por um ator mais agido do que agente. A ordem local e a ordem do parentesco não formam princípios estruturantes das relações sociais, mas o quadro de um equilíbrio de forças, o lugar estrutural do desdobramento de interesses divergentes: poderíamos falar também de uma gramática dos conflitos.

Em 1978, o Estado francês lançou uma política de redistribuição fundiária em favor dos Kanak. Paralelamente, a reivindicação fundiária tornou-se também uma reivindicação cultural para a União Caledoniana e para a Frente de Libertação Nacional Kanak Socialista (FLNKS), os dois principais movimentos independentistas kanak. A partir do seu estudo da história colonial de Houaïlou e das linhas principais de dinâmica social, Naepels oferece um quadro geral do que ele chama de "casuística fundiária", da qual se destacam pelo menos dois elementos:

Um dos paradoxos da reivindicação fundiária é o seguinte: ela tem por objetivo o restabelecimento de uma ordem fundiária que existia antes da criação colonial das reservas; houve, todavia, desde então, transformações sociais essenciais (desaparecimento de alguns clãs ou "casas", ou, ao contrário, crescimento demográfico de alguns linhagens etc.) que fazem com que a reconstrução hipotética dessa ordem pré-colonial seja inapropriada sem as adaptações necessárias.

As medidas de reforma fundiária têm uma outra dimensão: elas possibilitam aos interessados escapar ao controle social local. Como os que migram para Nouméa, os que querem instalar-se em um sítio próprio podem livrar-se, parcialmente, do peso de relações sociais tensas que provocam conflitos, brigas, bruxaria, ciúme etc. A recriação do costume, com suas finalidades sociais, fundiárias e políticas, pode também funcionar como uma saída individual ou familiar.

A leitura do livro de Naepels pode até deixar uma impressão estranha: a humildade ou o rigor nominalista do autor (nunca usa entidades essencializadas como princípios explicativos) fazem com que a análise pareça a descrição de um contexto, mesmo que complexo. Sente-se falta de descrições de casos específicos de conflito ou de criação de consenso, que permitam entender melhor como as forças descritas e essa gramática dos conflitos se articulam. Mas é essa exigência, essa apresentação "horizontal" de forças não hierarquizadas, que permite ao leitor compreender como se constroem os conflitos sociais kanak. O (re)ordenamento desses fatores é outra coisa: seria uma tarefa do político, que poderia utilizar esse livro, como propõe o autor na conclusão, para responder a uma das necessidades atuais da Nova-Caledônia: criar um direito fundiário ad hoc.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Ago 2001
  • Data do Fascículo
    Abr 2001
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