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Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo

RESENHAS

CALDEIRA, Teresa P. do Rio. 2000. Cidade de Muros: Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34/Edusp. 399 pp.

Andréa Moraes Alves

Doutoranda, PPGAS-MN-UFRJ,

Escola de Serviço Social/UFRJ

O tema da criminalidade e seus efeitos vem despertando o interesse de pesquisadores brasileiros desde o início dos anos 80. Nessa mesma época, passa a ser registrado, através de instrumentos de medição estatística, um aumento vertiginoso dos crimes violentos nas grandes cidades do país. Enquanto vários trabalhos se concentraram em explicar o porquê desse crescimento da violência urbana, Teresa Caldeira escolheu um caminho ousado: estudar a relação entre criminalidade, democracia e espaço urbano. Desse desafio nasceu o livro Cidade de Muros: Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo.

Baseada em depoimentos de moradores de bairros diferentes da cidade de São Paulo, colhidos entre 1989 e 1991, Teresa Caldeira analisa seus discursos em relação à criminalidade, às instituições democráticas e aos direitos civis. A tese central da autora é a de que se configura na sociedade brasileira aquilo que ela e James Holston, em artigo de 1998 ("Democracy, Law, and Violence: Disjunctions of Brazilian Citizenship"), qualificam de "democracia disjuntiva". Este conceito, embora não seja exaustivamente trabalhado no livro, é a mola mestra da argumentação da autora. Caldeira avalia que uma das maiores contradições do Brasil contemporâneo reside no fato de que a expansão da cidadania política, através do processo de transição democrática, se desenvolveu pari passu com a deslegitimação da cidadania civil e a emergência de uma noção de espaço público fragmentado e segregado, daí o caráter disjuntivo desse processo de democratização. Os depoimentos dos entrevistados sobre a criminalidade urbana, a instituição policial, os direitos humanos e as práticas de privatização do espaço com o objetivo de manutenção da segurança e afastamento da ameaça à mesma revelam e reproduzem essa disjunção.

Na primeira parte do livro, Caldeira apresenta narrativas sobre o crime e os criminosos, mostrando como elas ressignificam a experiência do crime e reproduzem estereótipos sobre a diferença. O discurso sobre o crime é um discurso classificatório que estabelece fronteiras nítidas entre o bem e o mal. Ponto alto da pesquisa de Caldeira, essa parte do livro consegue, através das entrevistas, mostrar esse princípio classificatório em funcionamento. A fala da senhora de classe média, imigrante da Itália, que se refere a outros migrantes mais recentes, os nordestinos, como responsáveis pelo aumento da criminalidade no seu bairro, é um bom exemplo dessa dinâmica de criação de distanciamentos. O princípio classificatório é capaz de transformar a categoria que estaria mais próxima do narrador - pela condição de migrante -, mas que é diferente - de outra classe social -, em um outro distante e condenado. Ainda mais interessante no trabalho, é que essa criação de fronteiras não se limita a um universo social, Caldeira mostra como o mesmo mecanismo atua entre moradores da periferia e de bairros de elite da cidade de São Paulo.

Nas partes II e III do livro, a autora aborda dois aspectos ilustrativos da "democracia disjuntiva": a instituição policial e os "enclaves fortificados". Os enclaves "são propriedade privada para uso coletivo e enfatizam o valor do que é privado e restrito ao mesmo tempo que desvalorizam o que é público e aberto na cidade. São fisicamente demarcados e isolados por muros, grades, espaços vazios e detalhes arquitetônicos. São voltados para o interior e não em direção à rua, cuja vida pública rejeitam explicitamente. São controlados por guardas armados e sistemas de segurança, que impõem regras de inclusão e exclusão." (:258) A polícia e os enclaves serão tomados, assim como os discursos sobre a criminalidade urbana, como formas de expressão da lógica de exclusão e segregação existente na sociedade brasileira contemporânea, formas que convivem com características democráticas dessa mesma sociedade, por isso são exemplos do caráter disjuntivo de nossa democracia. Aqui se apresentam os maiores problemas no argumento da autora.

No início da parte II, ela critica uma visão dicotômica da realidade social, argumentando que os limites entre público/privado, legal/ilegal não são rigidamente definidos como pares de oposição estanques. "Essas dicotomias forçam distinções que não existem na vida social, onde freqüentemente ocorrem simultaneamente e sobrepõem-se umas às outras. Essas dicotomias não captam o caráter essencialmente dinâmico e com freqüência paradoxal das práticas sociais" (:141-142). A autora afirma que análises sobre a sociedade brasileira que recorrem a essas dicotomias, como as feitas por Roberto DaMatta, por exemplo, acabam por enfatizar a existência de contradições entre relações sociais hierárquicas e espaço público impessoal como algo não só peculiar à sociedade brasileira mas que caracterizaria nossa "modernidade incompleta". Teresa Caldeira critica esta noção porque, para ela, "a questão central não é se há formações sociais com princípios e práticas contraditórios, algo que poderíamos provavelmente encontrar em qualquer sociedade, mas sim como devemos interpretar essas contradições." (:141) No entanto, ao deter-se sobre as práticas policiais e sobre a construção de muros, grades e fortificações em residências e áreas comerciais da cidade, a autora recorre a um raciocínio polarizador, usando argumentos que contradizem sua crítica teórica. O fracasso das tentativas do governo de São Paulo em aplicar medidas de garantia dos direitos humanos é atribuído a uma "cultura de violência" que imperaria na própria instituição policial e na sociedade como um todo, cultura esta que justifica práticas de tortura e de desrespeito aos direitos civis. Da mesma forma, os condomínios fechados e shoppings centers são vistos como espaços segregadores e homogeneizadores em oposição ao espaço público moderno - heterogêneo e aberto. Tudo se passa como se duas lógicas opostas estivessem em confronto: de um lado, a lógica da democracia, dos direitos civis e de suas instituições; do outro, a lógica da violência e da segregação. Esta última estaria sempre ameaçando o sucesso da primeira, tornando-se um entrave para o pleno desenvolvimento da democracia no país. Voltamos ao paradigma da "modernidade incompleta".

Um olhar mais aprofundado sobre as práticas policiais e sobre a vida cotidiana nos "enclaves fortificados" evidencia mais nuanças e contradições do que poderíamos esperar à primeira vista. Nem sempre a segregação e a violência são as marcas desses espaços. Da mesma forma, nem sempre o Estado de direito e os espaços públicos, como as praças e ruas, são vistos como arenas da diversidade. As situações e contextos onde essas fronteiras se mesclam são essenciais para compreendermos as interpretações que os indivíduos fazem de sua própria sociedade. Apesar de estar consciente disso, a autora pouco explora esse raciocínio em seu trabalho.

Na parte final do livro, escrita mais recentemente, ela volta a insistir nas duas lógicas opostas: "No contexto da transição para a democracia, o medo do crime e os desejos de vingança privada e violenta vieram simbolizar a resistência à expansão da democracia para novas dimensões da cultura brasileira, das relações sociais e da vida cotidiana." (:375) Como base dessa resistência, Caldeira aponta a concepção de corpo que seria partilhada, segundo ela, pela sociedade brasileira.

Referindo-se à prática da tortura como ato tido como legítimo, à violência doméstica, à prática indiscriminada da cesariana e até ao carnaval, Teresa Caldeira afirma que a sociedade brasileira construiu uma relação "incircunscrita e manipulável" com o corpo. Essa relação flexível acaba por não permitir o estabelecimento de regras mais claras de respeito individual, o que teria sido o caso, por exemplo, da Europa Ocidental e dos Estados Unidos, países de tradição liberal. O que me parece equivocado nessa argumentação é o uso de uma imagem civilizadora e democrática da tradição liberal em oposição a uma imagem de fragilidade dos direitos individuais. Será que não se estaria, na verdade, reproduzindo estereótipos sobre ambos os modelos? E, além disso, construindo uma visão de sociedade brasileira baseada na negação da "sociedade liberal e democrática européia e norte-americana"?

A autora não classifica o Brasil e outras sociedades de passado colonial como sociedades não modernas. Afinal, elas desenvolveram instituições democráticas baseadas no direito político e social. No entanto, Caldeira entende que aqui se constituiu uma "modernidade peculiar", cuja marca distintiva está na fragilidade dos direitos civis. O desafio, segundo a autora, seria equilibrar os aspectos positivos da flexibilidade dos corpos, como a sensualidade - mais um estereótipo -, com uma circunscrição dos mesmos que evitasse os abusos contra os direitos individuais, principalmente em um contexto onde a desigualdade social os torna mais freqüentes contra os dominados (pobres, mulheres, crianças). Tais abusos, porém, não seriam menos freqüentes em países de tradição liberal - basta lembrarmos, por exemplo, dos casos recorrentes de abuso sexual contra crianças em países europeus e nos Estados Unidos. Lá, também, a circunscrição dos corpos talvez não seja assim tão definida como faz parecer a análise de Caldeira.

O livro apresenta um grande esforço para montar um quebra-cabeça: a violência urbana, os direitos civis e a democracia são as peças desse jogo. A tentativa de Caldeira é um primeiro passo que nos deixa pistas para avançar. Uma investigação sobre as práticas de segregação e de homogeneização da vida cotidiana talvez nos mostre uma fluidez de significados muito maior do que aquela apresentada pelos discursos dos sujeitos. Além disso, pode nos guiar para encontrarmos outras peças que podem estar faltando nesse jogo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jul 2002
  • Data do Fascículo
    Abr 2002
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