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Ruído e determinismo: diálogos espinosistas entre antropologia e biologia

CONFERÊNCIA/ENTREVISTA

Ruído e determinismo: diálogos espinosistas entre antropologia e biologia

Henri Atlan

Este misto de entrevista e conferência que aqui publicamos teve lugar em uma aula do curso "Gregory Bateson e a Antropologia", ministrado por Otávio Velho no PPGAS/Museu Nacional/UFRJ. Os editores agradecem a colaboração de Ana Maria Coutinho Aleksandrowicz (Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz), que preparou esta apresentação e a edição do texto.

Apresentação

Nascido em 1931, na Argélia, Henri Atlan é médico, biólogo e professor de biofísica, com numerosos trabalhos na área de biologia celular, imunologia e inteligência artificial. Notabilizou-se por ter criado a assim chamada "teoria de auto-organização dos seres vivos a partir do ruído" (publicada em 1972), que utiliza conhecimentos de biologia, cibernética e termodinâmica, tendo participado do surgimento e da recente renovação das teorias da complexidade (é o editor-geral da revista internacional Complexus, lançada em 2002 na Suíça). As teorias da complexidade, herdeiras da cibernética – em que nomes como o de Gregory Bateson se destacam –, são correlatas aos desenvolvimentos da física dos sistemas dinâmicos (aqui incluídas as teorias do caos) e da assim chamada nova ciência, orientação interdisciplinar que, emparelhando a importância das regularidades e do acaso na compreensão dos fenômenos e aproximando por este viés as novas física-química-biologia das "humanidades", teve seus pressupostos sintetizados no livro A Nova Aliança, de 1984, do químico Ilya Prigogine e da filósofa Isabelle Stengers. Nessas fronteiras, Atlan tem-se dedicado à indagação dos fundamentos que interligam as ciências naturais e as humanas e sociais, permitindo, sob este aspecto, traçar alguns paralelos com a vertente em antropologia que, de Gregory Bateson a Tim Ingold (ver Otávio Velho, "De Bateson a Ingold: Passos na Constituição de um Paradigma Ecológico", Mana, 7(2):133-140) e Bruno Latour, vem tentando superar a cisão entre o lado sociocultural e o lado biológico da disciplina. Um dos marcos da contribuição de Atlan é a proposta de intercrítica entre ciências naturais e humanas/sociais, resguardando a especificidade dos vários saberes e buscando suas sintonias a partir de um substrato ontológico e epistemológico comum a todos eles, em conformidade com uma releitura atlaniana da filosofia espinosista, segundo a qual se hierarquiza, em níveis sucessivos de auto-organização, uma unidade que se expressa substancialmente em diferenças.

Em termos metodológicos, Atlan indaga acerca da antropologia e da filosofia da ciência contemporânea através de um viés bem peculiar, pois continua a exercer atividade científica em laboratório. Em Jerusalém, fundou e dirige o Centro de Pesquisa em Biologia Humana e chefia o Departamento de Biofísica Médica e Medicina Nuclear, no Hospital Universitário Hadassah. Atlan posiciona-se a favor da hipótese de estar surgindo um novo paradigma (no sentido kuhniano) em biologia, que valoriza o papel da emergência e da complexidade nos mecanismos de auto-organização biológica. A partir daí, desenvolveu um modelo pioneiro, aplicando o formalismo das redes neurais à imunologia, de subdeterminação das teorias em relação aos fatos, que faculta consistentes (e cuidadosas) analogias com os mecanismos que permitem a compreensão intersubjetiva e intercultural apesar e por causa da impossibilidade de controle total das múltiplas estruturas e dinâmicas envoltas no processo. Dividindo seu tempo entre Jerusalém e Paris, é diretor de pesquisas na École des Hautes Études en Sciences Sociales, onde criou uma cadeira de Filosofia e Ética da Biologia. Uma de suas áreas de investigação concentra-se na análise da linguagem dos discursos sobre o ser vivo e sobre as assim chamadas "ciências da vida" – termo ambíguo que agrega à biologia questões de função e significação a princípio de competência das ciências sociais e humanas –, aí ressaltando a forma e o estatuto das explicações causais em biologia. Revê o polêmico tema da finalidade e da intencionalidade na natureza e na cultura, considerando a visão de mundo de origem kantiana – que postula uma barreira absoluta entre corpos puramente materiais, de um lado, e corpos vivos e capazes de conhecer e tomar decisões "livremente", animados por uma alma não-material, do outro – inadequada aos conhecimentos atuais acerca do continuum corpo e mente. Propõe, com base na filosofia natural de Espinosa, uma retomada contemporânea da noção de necessidade, de maneira a sugerir uma reconceitualização de liberdade e responsabilidade de possíveis amplas repercussões nas ciências humanas e sociais – também aqui nos propiciando convergências de suas idéias com a etapa final da obra de Gregory Bateson.

Atlan recebeu inúmeros prêmios e distinções honoríficas, em especial na França (Legião de Honra), Itália e Canadá. Tem livros traduzidos em inglês, português, espanhol, italiano, dinamarquês, hebraico, japonês e chinês. Foi membro do Comitê Consultivo Nacional para as Ciências da Vida e Saúde, em Paris (1983-2000). Tem-se dedicado à filosofia espinosista desde 1986 de maneira a estar inserido hoje na rica tradição acadêmica francesa que estuda esse autor. Por outro lado, é estudioso do Talmude e apresenta hipóteses arrojadas acerca da cultura do povo judeu, a partir de uma investigação dos princípios da identidade judaica, para além de seus determinismos históricos recentes.

O. Velho

Eu estava pensando em como poderíamos tentar estabelecer conexões entre o trabalho do professor Atlan e o nosso curso. O que de mais geral vem à mente é aquilo que estivemos discutindo esta manhã, a respeito da forte ruptura que tem vigorado entre a biologia e os estudos socioculturais. Esta é parte de nossa tradição nestes últimos... não sei... setenta ou oitenta anos. Não mantemos muito contato com biólogos e, em certo sentido, isto se justifica com muito bons motivos: a preocupação com o biologismo e o racismo, e todas as questões associadas. No entanto, parece haver, atualmente, um interesse renovado pelo diálogo com a biologia, colocado em novas bases. Pergunto, então, se você poderia nos dizer algo sobre sua visão dessa conexão entre biologia, estudos socioculturais e antropologia.

Atlan

Eu cheguei a esse limiar através do meu trabalho sobre sistemas auto-organizados. Tentarei explicar.

Os sistemas auto-organizados, para mim, foram um modo de descrever aquelas que eram tidas como as mais intrigantes e desafiadoras propriedades dos organismos vivos: sua capacidade de se auto-organizarem. Como vocês sabem, os anos 60 foram a época das grandes descobertas em biologia molecular. A estrutura do DNA e o papel deste na reprodução foram desvendados; verificou-se que os genes são, de fato, moléculas de DNA, e foi observado o processo pelo qual elas se duplicam e de que modo a informação que carregam é transmitida, tanto às novas gerações como no interior das células e do próprio organismo. Então, naquele tempo, havia duas direções possíveis em biologia. Uma era o caminho mais fácil e triunfante, que recorria a metáforas frouxas, porém muito poderosas, emprestadas à teoria da informação e à cibernética. Afirmava que, uma vez que lidamos com moléculas portadoras de informação, como DNA e proteínas, podemos por conseqüência comparar o funcionamento da célula viva ou do organismo com o de um computador. O DNA seria o programa do computador. Esse é o assim chamado "programa genético".

E nós, os que seguiam a segunda direção, éramos minoria. Na época, pensávamos que a analogia da programação não passava de metáfora, uma metáfora muito frouxa. De fato, quando observamos o DNA, não encontramos nenhum sinal de linguagem computacional. O código genético, tal como desvendado, é uma projeção das estruturas lineares do DNA nas estruturas lineares das proteínas. No entanto, codificação não deve ser confundido com programação. Portanto, pensávamos que não devíamos nos satisfazer com aquele tipo de descrição metafórica, e procurávamos outras alternativas. Verificou-se posteriormente que os mecanismos de auto-organização constituíam a alternativa procurada.

Já então podíamos começar a observar a auto-organização em alguns modelos da física e da química. Há situações em que várias substâncias químicas reagem entre si e, como resultado da reação, acaba por observar-se alguma estrutura, como, por exemplo, ondas ou outras estruturas espaço-temporais macroscópicas. Em tais casos, pode-se compreender como se dá a auto-organização. Não é uma coisa misteriosa, pois todas as substâncias e reações são conhecidas. Baseando-nos nisso, tentávamos elaborar algumas teorias e modelos que nos permitissem conceber de que modo a matéria é capaz de organizar-se a si própria sem nenhum tipo de mecanismo misterioso.

Minha contribuição a esse trabalho foi mostrar que uma condição necessária para a auto-organização – não suficiente, porém necessária – era que houvesse um meio de integrar ao sistema algum grau de aleatoriedade, de acaso. Por ter empregado o formalismo da teoria da informação – nela, o aleatório é uma fonte de erros na transmissão, que chamamos "ruído" –, chamei essa teoria de "complexidade a partir do ruído".

Bem, devo dizer que, na época, essa idéia não encantou a maioria dos biólogos. Mas as coisas mudaram ao longo dos últimos anos e hoje, com o projeto do genoma humano quase concluído e com outras novas descobertas em biologia, idéias desse tipo entraram na moda. Naquela ocasião, elas não atraíam muitos biólogos, pois todos se atiravam à engenharia genética e assimilavam de modo literal a metáfora da programação. Por outro lado, no entanto, esse tipo de mecanismo de auto-organização atraiu algumas pessoas das ciências humanas, e por várias razões – por vezes boas razões, por vezes más. Entre os proponentes mais ativos da auto-organização em sociologia estava Edgar Morin. Alguns outros também se sentiram atraídos pela idéia, e surgiu a questão quanto ao grau e extensão em que modelos desse tipo – inspirados de fato pela observação de fenômenos biológicos – são relevantes para a organização humana, seja a da psique ou a das sociedades.

Interagíamos muito com pessoas como Morin, Castoriadis, Jean-Pierre Dupuy e outros. Eu, pessoalmente, cheguei, na época, à seguinte conclusão (não sei o que eu pensaria hoje [risos]): em muitos desses modelos de auto-organização, seu principal significado baseava-se na situação do cientista vis-à-vis o sistema que ele estudava. Quando nós, como biólogos, estudamos células vivas, ou bactérias, ou um sapo, ou qualquer organismo, estamos numa posição de observação exterior. Observamos a estrutura do organismo e, na medida do possível, o desintegramos e olhamos para as diversas partes que o constituem. Observamos o funcionamento do organismo como um todo, ou como subsistemas, mas não presenciamos o todo e as partes conjuntamente, ao mesmo tempo, com as mesmas técnicas de observação e de medida. Essa situação é bem conhecida: quando se pensa na célula viva, imagina-se a célula com o núcleo, a membrana e diversas coisas de todos os tipos, e tem-se também uma imagem daquilo que a célula está fazendo. Quem pensa na célula sabe que existe o DNA, os cromossomos no núcleo, mitocôndrias no citoplasma, membranas com as mais diversas e estranhas propriedades, muito interessantes e complicadas em cada um dos níveis de observação. Esse é o quadro tal como o fazem o estudante de biologia, o biólogo.

Pois bem, esse quadro, uma célula dessas, isso nunca foi visto de fato assim. Quando se olha para uma célula no microscópio, vê-se alguma coisa. Vê-se o núcleo, e assim por diante, mas não se vê nenhuma das funções. Não se vêem as moléculas. Para ver as moléculas, é preciso usar outra técnica, diferente do microscópio; uma técnica química. Para ver o que a célula está fazendo, é preciso usar técnicas fisiológicas. E assim por diante. Portanto, o conceito de célula é uma reconstituição, é o resultado de uma teoria baseada em diferentes técnicas, que, entretanto, não podemos empregar ao mesmo tempo. Não podemos fazer simultaneamente bioquímica, microscopia eletrônica, fisiologia, e assim por diante. Mais ainda: estamos na condição de quem vê um organismo que se desenvolve a partir do ovo e se torna adulto, e estudamos, de um ponto inicialmente exterior, todas as transformações da embriogênese. Em seguida, tentamos compreender os diferentes passos nesse processo, recorrendo à análise de diferentes componentes. Por exemplo, hoje em dia conhecemos mais sobre as moléculas responsáveis pelo desenvolvimento dos diversos tecidos, e verificamos que elas migram de um lugar para outro. Mas o sabemos graças àquela mesma forma de combinar técnicas diferentes que não podem ser usadas ao mesmo tempo. E quando queremos compreender mais, precisamos juntar todas essas coisas e construir uma espécie de modelo.

Como eu disse, o modelo preferido pelos biólogos, durante, pelo menos, duas ou três décadas, foi o do computador, porque era um modelo simples, uma analogia ou uma metáfora. Recorre-se à analogia com o programa de computador, e fica-se sabendo que um programa será executado e que todos os passos se darão, um depois do outro. O embrião desenvolve-se como a execução de um programa. É claro que entendíamos que isso não estava correto, que era apenas uma metáfora tosca. Na verdade, era, e ainda é, necessário entender de que modo a matéria pode por si mesma mudar sua forma e suas atividades, dependendo de sua própria história. Eis então, aproximadamente, o que significa a auto-organização: o modo pelo qual é criado aquilo que, para nós, aparece como sendo uma função. Em outras palavras, o zigoto inicial não fala, não pensa, nem mesmo se move, a não ser em grau mínimo. E, no entanto, a partir dele, lenta e certamente, desenvolve-se um organismo que fala, se move etc.

Como surgem essas diferentes atividades? Havia, nos séculos XIX e XX, uma palavra que tentava descrever esse tipo de anomalia: "emergência". Pensava-se que a "vida" tivesse essa propriedade muito peculiar de fazer coisas novas surgirem, emergirem. O que estamos dizendo é diferente, porque essa emergência não exige que nos equivoquemos quanto a misteriosas propriedades da vida. Condições puramente físicas ou químicas podem produzir, em determinadas circunstâncias, fenômenos emergentes ou de auto-organização.

Devemos agora perguntar: em que grau isso tudo é relevante no que concerne aos fenômenos humanos? Depende do modo como os consideramos. Se vemos os fenômenos humanos do exterior ou, em outras palavras, se eu olho para um organismo humano como um sistema que não posso conhecer de dentro, interiormente, então posso tomar esse ser humano como um sistema auto-organizado, exatamente da mesma forma como considero um cão ou um peixe. No entanto, essa posição é só uma parte da história, pois está claro que eu disponho de pelo menos um exemplo de indivíduo humano que posso observar do interior: eu mesmo. Obviamente, posso projetar-me em alguns outros e, com alguma generosidade, aceitar a idéia de que alguns de vocês, ou talvez todos vocês, possam ser como eu. No caso de uma sociedade humana, está claro que observá-la do exterior é apenas parte da situação, porque também estou no interior de uma sociedade e sei, de dentro dela, como as informações são transmitidas de uma parte para outra. Assim, desse ponto de vista, não é possível afirmar que a sociedade seja apenas um sistema auto-organizado. Uma sociedade é também, desse ponto de vista, um sistema programado, e, portanto, neste caso, a metáfora do programa computacional está em vigor. Há muitos programas e o funcionamento da sociedade depende dos mais diversos programas conscientes, formulados pelas mais diversas pessoas, que fazem aquilo que querem ou o que pensam que querem fazer. Não se pode então dizer que tudo é visto do exterior e que não compreendemos como a informação é transmitida entre diferentes partes da sociedade. Em um sistema biológico, a questão do significado é muito importante e difícil, porque não conhecemos a priori o significado da informação. O significado da informação biológica é conhecido apenas a posteriori, depois que vemos qual é o resultado, i.e., qual é a função, e após vermos o que a célula faz, o que o organismo faz. Então é que dizemos: "A-ha! Esse é o significado da informação!" Não sabemos, é claro, de que modo tal significado é criado, e é por isso que precisamos desses modelos de auto-organização – para descrever o que ocorre.

Há uma boa dose de ignorância descrita nesses modelos, como na estatística e na teoria das probabilidades, que são também meios de lidar com a ignorância. Quando não conhecemos as causas de um fenômeno, podemos ainda assim chegar a alguma compreensão por meio de leis estatísticas. É mais ou menos a mesma história. Na verdade, quando usamos a teoria da informação, a história é exatamente a mesma, uma vez que a teoria da informação é uma teoria que emprega meios estatísticos e nos permite lidar, de modo preciso, com coisas que não conhecemos – exatamente como a estatística. É por isso que, para descrever a criação de novos significados, somos forçados a levar em consideração o ruído, que é o puro aleatório. Parece paradoxal, pois é claro que o ruído, por definição, não tem significado. Mas isso é porque somos observadores exteriores, para os quais a origem de nova informação, a origem de novos significados dentro do sistema observado, só pode ser associada ao que ainda não conhecemos – ou seja, ao ruído. É uma situação intrínseca ao nosso estado de observadores exteriores. No entanto, quando lidamos com fenômenos humanos – seja individuais ou coletivos – também temos a possibilidade de outra posição, na qual, ao menos em parte, conhecemos diretamente o significado de alguma informação. Portanto, não podemos agir como se não conhecêssemos essa parte do significado, embora por vezes isso seja necessário. Quando o fazemos, porém, devemos lembrar que estamos agindo como se não tivéssemos tal conhecimento, e que estamos abdicando, por razões metodológicas, de parte de nossos meios de entendimento.

O. Velho

Alguém tem alguma questão a propor? Muitas coisas foram mencionadas. Por exemplo, eu me pergunto se a idéia de que conhecemos aquilo que realmente acontece na sociedade não traz certo bias que não nos ajudaria muito, afinal.

Atlan

Eu não estou afirmando isso! Eu não estou dizendo que nós conhecemos, exatamente, o que se passa na sociedade. Em sociedade, conhecemos do interior parte daquilo que ocorre. Pois bem, na medida em que não conhecemos o que ocorre, é claro que podemos usar modelos de auto-organização. Na medida em que conhecemos parte das coisas, esses modelos não são relevantes.

O. Velho

Existe algo de Espinosa na auto-organização? E, eu acrescentaria, como você concilia o determinismo de Espinosa com todas essas discussões sobre o acaso?

Atlan

OK, Espinosa e auto-organização. Para mim, este é um assunto relativamente novo, pois descobri Espinosa há apenas quatorze anos, ao passo que todo o trabalho sobre o qual eu estava falando é bem mais antigo. Descobri Espinosa porque pessoas de diferentes formações me disseram que eu deveria lê-lo. Disseram que haviam percebido em meus trabalhos algumas coisas que, para eles, soavam como uma espécie de espinosismo inconsciente. Isso se repetiu duas ou três vezes, e então decidi que eu não tinha escolha, senão averiguar diretamente, lendo as obras do sujeito. É claro que não me arrependi. Mais tarde, encontrei pessoas que haviam crescido na companhia de Espinosa, primeiro como estudantes de filosofia e, posteriormente, como professores de filosofia. Na França, há uma escola espinosista muito importante e gerações inteiras de filósofos cresceram dentro do espinosismo. Encontrei alguns deles, que me mostraram como meu trabalho era espinosista. Devo dizer que me convenci. Espantei-me com não o ter sabido antes... Então, o que posso dizer agora é o resultado de meus conhecimentos relativamente recentes sobre auto-organização e espinosismo.

Há de início algo óbvio, que está no começo da Ética, e que é a definição de Deus, i.e., da Natureza ou Substância, por Espinosa. Uma das definições é causa sui: ‘causa de si mesmo’. Quando se pensa um pouco, fica claro que a auto-organização nada mais é que a causa-de-si-mesmo. Obviamente, há algo de ardiloso na idéia de causa-de-si-mesmo, que o próprio Espinosa afirmou com muita clareza: não pode haver tal coisa, nada pode ser a causa de si mesmo. Deve haver uma diferença entre causa e efeito, e, portanto, se a causa e o efeito são uma só e mesma coisa, não pode haver relação causal. Esta é uma afirmação muito importante, que Espinosa desenvolve bastante. Não obstante, no que concerne a Deus, ou seja, no que concerne à natureza em sua totalidade, causa sui está correto. Por quê? Porque no interior da natureza as várias causas e efeitos não são iguais, e é por isso que a natureza inteira pode ser pensada como causa de si mesma. A natureza faz acontecerem coisas em suas diferentes partes, que se distinguem do todo e entre si. Portanto, há uma espécie de intercausalidade que é a definição do próprio cosmo.

Pois bem, acontece que, quando se examina a teoria do indivíduo na Ética de Espinosa, vê-se que a teoria está baseada em sua noção de conatus, o desejo de devir. Muitos traduzem como desejo de perseverar no estado de ser. É uma compreensão errada, porque dá a impressão de algo estático, de que é um desejo de permanecer como está, e este certamente não é o caso. É o desejo de permanecer num estado dinâmico que evolui através de encontros com outros indivíduos ao longo de toda a sua existência. Mas, é claro, há algo invariante, que faz o indivíduo ser o mesmo apesar de todas as modificações que lhe advêm. Assim, esse desejo, ou conatus, subentende uma mistura de invariância e mudança. Ele também subentende uma estratégia para integrar as mudanças, e essa estratégia pode ser comparada, em alguma medida, à estratégia da auto-organização. Por quê? Porque essa estratégia, para Espinosa, não é necessariamente consciente. O objetivo é torná-la consciente, mas, no início, ela não o é necessariamente: é o resultado de conflitos entre paixões, e é apenas lentamente que tais conflitos se tornam conscientes. É somente graças a isto que elas podem ser ordenadas de modo ativo, mas no começo, certamente, não estão ativas. Elas sem dúvida não são o resultado de decisões conscientes. Comportam-se, portanto, mais como um sistema auto-organizado.

A questão, obviamente, é a seguinte: qual a relação entre auto-organização, no sentido moderno, e o conatus de um ser humano, segundo Espinosa? Para respondê-la, deve-se primeiro lembrar que o conatus, para Espinosa, não é específico dos seres humanos. Todo ser – inclusive uma pedra, uma nuvem – tem seu conatus. Portanto, não há, a priori, nenhuma relação com a consciência. Pois bem, a natureza dos diversos conatus dos diversos seres depende do grau de complexidade do corpo desses indivíduos. Espinosa diz explicitamente que é isso que faz o homem diferente de um cavalo ou uma pedra, embora cada um deles tenha seu conatus, com significado idêntico. Por ser o corpo humano mais complexo, em outras palavras, por poder ocupar muito mais "estados" (como diríamos hoje), novas capacidades do corpo e da mente emergem. O corpo e a mente vão juntos, é claro, "como uma única coisa vista sob diferentes aspectos"; e a pedra também tem mente. A mente da pedra, porém, é apenas a idéia da pedra, e a pedra não tem consciência de sua própria idéia. O mesmo que um elétron... Como vocês sabem, um elétron nada mais é que uma equação. O elétron não tem consciência da equação; no entanto, ele segue a lei da equação. O mesmo vale para a pedra. A idéia da pedra também é feita de todas essas equações, mas a pedra mesma não tem consciência dessa idéia.

Aparentemente, os animais têm circuitos de consciência, e a espécie humana, devido à complexidade do cérebro humano, tem a capacidade da razão. Muitos animais aparentemente têm consciência, no sentido de estarem conscientes de si, mas os humanos têm a capacidade da razão, que significa poder lidar com propriedades comuns. (Razão, para Espinosa, é a capacidade de lidar com propriedades comuns, comuns a tudo: não só aos humanos mas também a todas as coisas no mundo.) É através da razão que podemos lidar com as leis da natureza, no sentido de que as leis da natureza dizem respeito apenas a fenômenos gerais. (Notem que a Razão não é suficiente para lidar com fenômenos singulares. Segundo Espinosa, para alcançar o conhecimento das coisas singulares é necessário aquilo que ele chama de terceiro tipo de conhecimento, ou "ciência intuitiva".) Só a espécie humana, ao que parece, tem essa capacidade da razão, e a questão é, evidentemente, de que modo a razão interfere no sistema auto-organizado das paixões.

Em um artigo que veio a ser um capítulo de um de meus primeiros livros, Entre o Cristal e a Fumaça, propus um modelo de interação entre, de um lado, processos de auto-organização num corpo humano e, de outro, consciência, igualmente no corpo humano. Esse modelo, muito esquematicamente, funciona assim: a consciência é a simples memória do passado e a auto-organização é a construção do futuro. Ao contrário do que pensamos a priori, a consciência não é o que decidimos para o futuro, ela é só a memória do passado; o que constrói o futuro é a auto-organização inconsciente. Esses são os dois componentes do modelo. Mas é claro que, secundariamente, cada um interfere no outro. Em outras palavras, pode-se tentar memorizar aquilo que já foi objeto de auto-organização e, inversamente, a auto-organização pode retomar lembranças do passado e com elas, mais uma vez, produzir inovações. É assim que temos a impressão de que a consciência pode decidir do futuro, ou que a auto-organização diz respeito ao passado, ao passo que, a priori, dá-se justamente o oposto.

O. Velho

Posso fazer uma pergunta breve? Nos termos de nosso vocabulário moderno, como falaríamos de substâncias, atributos e modos [idéias básicas para a filosofia espinosista]. Qual seria o vocabulário para essas noções?

Atlan

Bem, vocês sabem que, segundo Espinosa, só há dois tipos de coisas existentes: a substância e os modos. Atributos são apenas aquilo que o entendimento apreende da essência da substância. Atributos são reais apenas no sentido de que é real aquilo que o entendimento apreende da substância. Atributos são a maneira como o entendimento – o verdadeiro entendimento, não apenas o entendimento humano, mas também o entendimento infinito – entende a substância. As únicas coisas que existem na natureza são a natureza em sua totalidade – que é a substância – e os modos. Em termos modernos, podemos chamar a substância de "natureza", mas enfatizando que ela é tanto ativa quanto passiva, que não é um estado de "aparência" mas também uma dinâmica, o poder dinâmico da natureza, que nos é possível ver nos seus modos. O que são os modos? O que são as partes? Todas as partes da natureza são modos, no sentido de que são modos particulares de existência da natureza. Por exemplo, a pedra é certamente um modo. O pássaro é um modo. A árvore é um modo, um ser humano é um modo... E no interior dessas partes, desses indivíduos, vemos o poder da natureza a agir, e o vemos através das leis da química e da física, e de como elas se organizam também em sistemas biológicos.

O. Velho

Mas há um problema, aqui, pois penso que Espinosa sugere que não podemos ter uma relação direta com a pedra. Nossa mente não pode ter uma relação direta com a pedra porque nossa mente corresponde a um atributo e a pedra corresponde a outro. Como é que você lida com isso...

Atlan

Em primeiro lugar, a separação entre atributos é uma divisão segundo o entendimento. Na realidade, todos os atributos estão unificados numa única substância, e os atributos são apenas diferentes maneiras de descrever a mesma coisa. Portanto, a pedra não é apenas matéria: a pedra também tem uma mente, mens. Pois bem, o que é essa mente?

Aqui, deve-se ter muito cuidado. Quando dizemos que a pedra não é apenas matéria, não podemos, é claro, incorrer naquela espécie de visão animista, que diz que a pedra é consciente, ou pensa, ou sente, ou o que mais não seja. Vocês sabem que muitas pessoas pensam assim, hoje em dia, por exemplo no movimento Nova Era... A mente da pedra é a idéia da pedra. Não é uma consciência que a pedra tem de si. A idéia da pedra é apenas o conjunto de equações que poderíamos empregar para descrever adequadamente aquilo que a pedra é realmente. É exatamente como disse Espinosa, ao fazer a distinção entre a idéia de algo, a idéia de um corpo, e a idéia que a pessoa tem.

Agora, quanto aos humanos, a mente do corpo humano é também a idéia do corpo. É assim que descrevemos aquilo que é às vezes traduzido por "alma" – mas esta é uma tradução ruim. Em latim, é a mens, que em inglês seria mais bem traduzida por "mind" [a mente, em português]. Em francês é mais difícil, pois a palavra é "esprit", e nem sempre sabemos o que significa isso. Em todo caso, a mens humana, a mente humana, também é descrita como idéia do corpo humano, exatamente como a idéia da pedra. No entanto, devido à complexidade do cérebro humano, a idéia do corpo humano tem um componente reflexivo. Em outras palavras, pode se tornar a idéia de uma idéia. Nisso consiste a consciência, é o lidarmos com idéias de idéias.

Assim, a mente humana não é apenas uma idéia, mas também tem idéias, que são idéias de idéias. Essas idéias são, por sua vez, idéias de estados corporais, pois cada estado corporal corresponde a uma idéia. A questão, a seguir, é em que medida essas idéias de estados corporais humanos (e, diga-se de passagem, não apenas humanos) são adequadas ou inadequadas. Isso leva a uma transformação, com que se passa a ter mais e mais idéias e pela qual nossa mente pode vir a tornar-se um conjunto em que predominam as idéias adequadas. Obviamente, não podemos eliminar nossas idéias inadequadas, mas elas ao menos seriam minoria. Essa é, para Espinosa, a direção do caminho para a perfeição.

Agora, para responder à questão sobre a relação entre acaso, probabilidades, estatística, ruído etc. e Espinosa... É claro que essa é uma questão importante, pois Espinosa aparentemente não tinha muitos conhecimentos de estatística e cálculo de probabilidades, o qual, como vocês sabem, foi descoberto na mesma época por Pascal e Fermat. É muito interessante que tenham sido contemporâneos, mas não há, aparentemente, ligação entre eles.

Quando Espinosa fala de contingência, é apenas em termos qualitativos, sem nenhuma idéia de cálculo de probabilidades e de estatística. Hoje, quando lidamos com o aleatório num contexto de estatística e cálculo de probabilidades, é como um meio de lidar com realidades observáveis, quando temos de lidar com um número infinito de causas que desconhecemos. Isso, no entanto, não exclui a possibilidade de um determinismo absoluto com um número infinito de causas desconhecidas.

O. Velho

Espinosa falava da indeterminação como algo ligado à nossa ignorância.

Atlan

Exatamente. Nossas noções de entropia e ruído são derivadas de noções estatísticas. E, portanto, mais uma vez, não contradizem a idéia de determinismo absoluto. Elas são medidas da nossa ignorância. Mas é óbvio que, embora não contradigam o determinismo absoluto, nada provam acerca dele. Esta é a clássica questão da natureza do acaso: será ele intrínseco, ontológico, ou atribuível apenas à nossa ignorância? Pode-se aceitar que ele reflita nossa falta de conhecimento, mas não há meio de provar qualquer desses postulados a seu respeito; não há meio de provar que só existe o acaso ontológico, independente da ignorância, nem, ao contrário, que o acaso seja unicamente atribuível a esta. Dentro do sistema espinosista, o acaso deve-se apenas à ignorância.

Um ponto importante a esse respeito: quando falamos de determinismo absoluto, deve-se entender que, assim como não está excluído o uso de métodos estatísticos e de cálculo de probabilidades, também não se exclui a experiência do novo. Posso saber que tudo está determinado – mas esse é um conhecimento abstrato, geral, pois não conheço em detalhe todas as causas que vão produzir o que há. Por conseqüência, quando algo acontecer amanhã sem que eu tenha antecipado, ficarei surpreso. Para mim, será algo novo. Isso significa que o determinismo absoluto não nega a experiência do tempo, embora nos ensine que o tempo é uma espécie de ilusão. Posso saber que o tempo é uma ilusão, mas isso não me faz viver fora do tempo. Portanto, tenho duas experiências distintas. Não há nisso nenhum mistério: todos os que lidam com matemática e física têm experiências do mesmo tipo, exatamente. Quando descrevo fenômenos físicos por meio de leis matemáticas em que o tempo é um parâmetro, estou eliminando o tempo. Sempre que me for possível descrever algo matematicamente, experienciarei o tempo como ilusão. Ao mesmo tempo, é claro, continuo ainda a viver no tempo, então tenho outra experiência, que contribui para a primeira. Essa é a nossa condição humana.

O. Velho

Voltando à nossa questão inicial, a interação entre a biologia e os estudos socioculturais, há hoje, na antropologia, algumas pessoas falando de um paradigma ecológico. Isso tem a ver com a idéia de que não há programa inicial, mas uma interação com o ambiente. Você vê aí também um meio de ligar a biologia e o sociocultural...

Atlan

Sim, mas eu teria muito cuidado, aí, porque, mais uma vez, quando afirmamos algo assim, é como se não tivéssemos acesso às parcelas conscientes dos fenômenos humanos. É como se disséssemos: "Não. A consciência não desempenha nenhum papel. O planejamento não tem lugar nos fenômenos humanos. Tudo é mera auto-organização, sem um propósito." E esse não é o caso.

O. Velho

Um problema que vejo naqueles que trabalham em outros campos, quando dialogam conosco... O pessoal das neurociências, eles só querem saber do cérebro e do que acontece dentro dele, não querem discutir a interação. E parece-me que isso é algo importante, que deveríamos ser capazes de discutir...

Atlan

Certamente. Mas deve-se lembrar que tudo é intrinsecamente difícil. Já é bastante difícil lidarmos com muitos neurônios, e muito mais difícil ainda lidar com interações entre redes de neurônios. É verdade que nosso cérebro é uma rede de neurônios e que nossa consciência, autoconsciência, consciência do sujeito, a responsabilidade moral e legal e todas essas coisas são propriedades emergentes de nossas redes neuronais. Mas isso não significa que os problemas sociais devam ser tratados apenas no quadro da compreensão das interações entre famílias de redes neuronais. Tal abordagem não dará certo. Por exemplo, se você quiser descrever o que acontece num tribunal em que se julga uma ação legal, então fisicamente, ou biologicamente, e mesmo neurologicamente, você poderá dizer que tudo que está acontecendo ali é interação entre redes neuronais. Mas é claro que, se você tentar descrever o que realmente acontece no tribunal apenas em termos de redes neuronais, sinto dizer que estará desentendendo aquilo que está em discussão.

O. Velho

Uma questão que apareceu em nosso curso é esse interesse por Espinosa, que eu partilho – não, porém, há quatorze anos, talvez quatorze semanas. O que significa um tal interesse depois de a ciência já ter ido tão longe em outras direções? Não será voltar no tempo, procurar tão tardiamente, entre Descartes e Espinosa...

Atlan

Em primeiro lugar, Descartes vem antes de Espinosa, e Espinosa é um grande crítico de Descartes. Bem, na minha interpretação — e, claro, não sou historiador da filosofia —, Descartes foi aceito graças à facilidade do dualismo. É fácil ser dualista, porque corresponde à nossa percepção imediata, às nossas experiências imediatas. Nós temos a experiência de ter uma mente, uma mente não material, porque não sabemos como materializá-la, mas temos ao mesmo tempo a experiência de ter um corpo. E também experimentamos o fato de que, de alguma misteriosa maneira, algo que aconteça na mente pode produzir um efeito no corpo, como quando decidimos realizar um movimento. Como pode isso se dar?

Tudo isso corresponde à percepção imediata. Veio Espinosa e disse: "Não. Tudo isso é ilusão. Não há relação causal entre corpo e mente, e vice-versa; não por serem duas substâncias distintas, mas porque são a mesma. E uma vez que são idênticos, um não pode ser a causa da outra (e vice-versa)." Obviamente, isso é muito mais difícil de compreender, porque é preciso então compreender o que fazemos com nossas experiências de senso comum.

De mais a mais, é preciso recordar a influência da tradição filosófica idealista, que tem sido muito forte, especialmente depois de Kant. Kant moldou a história da filosofia moderna, tanto no plano da epistemologia como no da ética ou filosofia moral. É muito difícil chegar e pôr Kant de cabeça para baixo, e dizer: "Não, Espinosa estava correto, Kant estava errado". Pois muitos filósofos diriam: "Isso é voltar ao pré-criticismo". Não, isso não é retornar ao pré-criticismo. Recorrer a Espinosa é fazer a crítica do criticismo.

Muitos daqueles que estudaram Espinosa por algum tempo realmente sentem que esta é também a filosofia deles, como se fosse uma espécie de saber atemporal, embora seja também, em si mesma e em certa medida, temporal. As palavras, é claro, são as palavras do século XVII e mesmo as dos antigos escolásticos. Porém, como ele emprega tais palavras com novas definições, está jogando um jogo muito interessante. Ele subverte a temporalidade da filosofia e assim consegue, em certa medida, tornar sua filosofia atemporal. Em outros termos, deve-se fazer o esforço de entender o que aparentemente está além das suas palavras... Na verdade, não está além, pois isso implicaria um significado oculto. Não há significado oculto, porque ele o definiu. Mas está além do emprego usual daquelas mesmas palavras. Tome-se, por exemplo, "Deus". Espinosa está o tempo inteiro falando sobre Deus, mas não se esqueçam de que ele deu sua definição do que chama "Deus". Portanto, ele joga com o duplo sentido – mas um duplo sentido aberto. Ele não é um hipócrita, que usa o duplo sentido com segundas intenções, com sentidos ocultos; pois ele desvela para o leitor aquilo que quer dizer. Ele usa, de fato, palavras que para outras pessoas têm sentidos diferentes, e joga com isso. Se você mesmo conseguir também jogar com isso, poderá tentar verificar se as idéias ou conceitos são transponíveis para nosso espelho moderno, ou nossas experiências modernas. Assim, você pode usar Espinosa para entender melhor até mesmo a filosofia analítica, e certamente para criticar Kant.

Pergunta do público

Professor, você poderia falar um pouco sobre seus estudos a respeito do estoicismo e sua relação com as idéias de Espinosa?

Atlan

Eu me interessei pelo estoicismo, essencialmente, através de Espinosa. É claro que há muitas similaridades, mas também muitas diferenças, que ele mesmo enfatiza na introdução à quinta parte da Ética. Ele diz que os estóicos parecem ter uma filosofia semelhante, mas que são diferentes – e ele explica por quê.

Por outro lado, também é verdade que há muitas conexões entre alguns textos cabalísticos e o estoicismo. A maior parte da literatura cabalística é inspirada por uma espécie de combinação entre neoplatonismo e estoicismo. Portanto, a idéia de logos spermatikos, que é claramente um conceito estóico, está presente na literatura cabalística. Há diversos nomes para ele, mas é a mesma idéia. Esse, de fato, é o tema principal a que se refere o título de meu último livro, Centelhas do Acaso [Etincelles du Hasard]. O acaso de que falo, aí, é uma tradução literal do hebraico, que designa as gotas do esperma que Adão perdeu – assim como Eva, aliás – quando estiveram separados por 130 anos, depois da Queda. E o que aconteceu com essas gotas (que são gotas de acaso, ou centelhas do acaso, conforme chamadas, com base num jogo de palavras em hebraico), segundo essa tradição talmúdica medieval, é toda a história da humanidade. Essa tradição talmúdica veio dar na literatura cabalística.

O. Velho

Que relação você vê entre seu trabalho e o de Varela, que é outro biólogo pelo qual se interessam os cientistas sociais?

Atlan

Bem, Varela e Maturana deram um enfoque diferente a esse mesmo problema da auto-organização. Eles enfatizam o que chamam de "fechamento informacional", o fato de que, para possuir auto-organização, você deve ter uma dinâmica interna, e essa dinâmica interna é o que produz as mudanças e o que eles chamam "autopoese", a "criação de si mesmo". Já eu enfatizo um aspecto diferente, a saber, o da novidade, que aparece para nós como acaso e ruído, e que vem tanto de dentro como de fora.

O. Velho

Já se disse que essa também pode ser considerada a diferença entre Bateson e N. Luhmann. Bateson estaria mais próximo desta sua posição.

Atlan

É o que penso.

O. Velho

E como você veria a questão do entrelaçamento em nossa linguagem do que Espinosa chamava atributo do pensamento e atributo da extensão?

Atlan

A idéia é que isso é algo ao mesmo tempo estranho e muito familiar. Podemos percebê-lo quando pensamos no que aconteceu com a noção de logos spermatikos em nossa linguagem. É claro que não encontramos pessoas na rua falando em logos spermatikos, mas ouvimos pessoas falando sobre idéias seminais, que é outra expressão estóica. O que está por trás dessas palavras? Parece haver uma noção de que não há separação entre o que se passa na mente – inclusive a razão, logos – e o que se dá no sexo. São tidos como a mesma coisa, o que, para nós, é algo difícil de compreender. Estamos habituados a entendê-lo de maneira metafórica. Dizemos: "OK. É uma analogia", por exemplo quando falamos de conceitos. O conceito é o mesmo que um conceptus, tanto biológico, quanto intelectual. Bem, e o que isto quer dizer? É isso que em nossa linguagem permaneceu das velhas tradições, nas quais tudo isso era apreendido imediatamente como uma realidade unificada. Para os estóicos não há diferença: a mente é material e, portanto, tudo que acontece é material; o que acontece no corpo é igual ao que acontece na mente. É portanto natural que, se experimentamos a criação por meio do intelecto, essa experiência seja igual à experiência corporal da criação. Conceber uma idéia é exatamente como conceber uma criança. Os resultados podem nos parecer diferentes, mas o processo é o mesmo e aquilo que se passa em nós é igual.

Todas essas lendas que encontramos nos velhos mitos, inclusive os mitos judaicos, a Bíblia, o Talmude e a Cabala, se passam nessa espécie de universo, onde não há diferença entre o intelectual e o corporal, onde as coisas são as mesmas e se dão da mesma maneira em ambos os planos. A mesma visão está por trás da lenda das gotas de esperma que são chamadas "gotas de acaso" em hebraico – um jogo de palavras que nos faz entender que estão se referindo ao mesmo tempo ao esperma e ao acaso. Essa lenda e o episódio bíblico da árvore do conhecimento descrevem fenômenos que acontecem ao mesmo tempo num mundo material e num mundo espiritual ou intelectual. Na Bíblia, o "conhecimento", como vocês sabem, tanto é intelectual quanto sexual. Quando se diz em hebraico que Adão teve relações sexuais com Eva, diz-se que Adão conheceu Eva, e o significado é exatamente aquele. Na história da serpente, a serpente é algo material e também intelectual. A serpente é, obviamente, uma representação do sexo, mas, ao mesmo tempo, a palavra hebraica para serpente significa adivinhar, significa o conhecimento fortuito. Isso é que torna a leitura dessas lendas algo tão estranho e difícil, pois há sempre esse vaivém entre um domínio e outro. É difícil para nós entender, num primeiro olhar, do que é que elas estão falando. Estão falando agora de aventuras intelectuais ou sexuais? Elas transitam entre os dois domínios.

O. Velho

Bem, está na hora. Devo, em nome de todos nós, agradecer muito ao professor Atlan por nos ter oferecido essa admirável exposição de seu pensamento. Acho que Espinosa diria que nada acontece por acaso [risos]. Isso tem muito a ver com aquilo que temos discutido...

Atlan

Um momento! Espinosa não diria que algo acontece, ou não acontece, por acaso; ele diria que não conhecemos as causas e, portanto, devemos ser cuidadosos na interpretação que damos às coincidências.

O. Velho

Justamente.

Bibliografia selecionada de Henri Atlan

1992 [1972]. L’Organization Biologique et la Théorie de l’Information. Paris: Hermann.

1992 [1979]. Entre o Cristal e a Fumaça: Ensaio sobre a Organização do Ser Vivo. Rio de Janeiro: Zahar.

1994 [1986]. Com Razão ou Sem Ela: Intercrítica da Ciência e do Mito. Lisboa: Piaget.

1991. Tudo, Não, Talvez, Educação e Verdade. Lisboa: Piaget.

1999. Les Étincelles de Hasard. Tome I: Connaissance Spermatique. Paris: Seuil.

1999. La Fin du "Tout Génétique"? Vers de Nouveaux Paradigmes en Biologie. Paris: INRA Editions.

2002. La Science est-elle Inhumaine? Essai sur la Libre Necessité. Paris: Bayard.

Tradução: Amir Geiger

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2003
  • Data do Fascículo
    Abr 2003
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