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Les ouvriers d’une vigne stérile: les jésuites et la conversion des indiens au Brésil (1580-1620)

RESENHAS

Beatriz Perrone-Moisés

Professora, USP

CASTELNAU-L’ESTOILE, Charlotte de. 2000. Les Ouvriers d’une Vigne Stérile: Les Jésuites et la Conversion des Indiens au Brésil (1580-1620). Lisboa/ Paris: Centre Culturel Calouste Gulbenkian/Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. 557 pp.

Até serem expulsos de todo o Brasil pela política pombalina, em meados do século XVIII, os jesuítas tiveram um papel central na história da Colônia. Encarregados de primeira hora da conversão dos gentios, justificativa de toda a colonização, foram alternadamente apoiados ou perseguidos pelas autoridades coloniais, entraram em choque diversas vezes com os colonos, influenciaram a política e a legislação indigenistas. A história dos jesuítas no Brasil, em larga medida dominada pela obra monumental de Serafim Leite, carecia de um novo olhar. É o que propõe esse livro, originariamente uma tese de doutorado, em que Charlotte de Castelnau-L’Estoile busca "compreender antropologicamente a missão", isto é, a partir das categorias dos próprios jesuítas (:13-14, 21). As fontes utilizadas são muitas, e diversas: correspondência administrativa, cartas e catálogos, regulamentos, relatos e textos "literários", textos fundadores da Ordem (Constituições e Exercícios Espirituais de Loyola).

O livro divide-se em cinco partes. Na primeira, a autora nos conduz em uma "visita" à província do Brasil, guiada pelos relatos da viagem de Cristovão de Gouveia, em 1582, na companhia de Fernão de Cardim. A própria instituição da visita periódica de representantes do centro da Ordem às províncias, com o objetivo de fiscalizar o andamento das missões e a atuação de seus membros, conduz a uma análise das relações entre centro e periferia – centrada nas negociações entre a província e os superiores da Ordem quanto a uma "norma missionária" –, a que se dedicam a segunda e a quarta partes do livro, esta última focalizando as práticas catequéticas. A terceira parte, cujo intuito é estabelecer um perfil dos "obreiros" da vinha brasileira, vale-se de métodos de história quantitativa, ao passo que a quinta e última parte analisa a auto-apresentação da obra missionária, a partir de seus relatos e de suas encenações.

Dentre os temas que atravessam o livro, destacam-se os obstáculos que os missionários enfrentam no Brasil, "vinha estéril, laboriosa e perigosa" nas palavras de Aquaviva, Superior da Ordem. Com o objetivo expresso de "estudar o projeto missionário jesuítico e suas reformulações diante das dificuldades encontradas na empresa de conversão dos índios do Brasil, na virada do século XVI para o XVII" (:9), o livro apresenta, na terceira parte, uma província carente de missionários. A análise quantitativa de dados retirados de catálogos produzidos para a matriz em Roma permite qualificar os jesuítas no Brasil quanto à idade e naturalidade, e delinear uma política de "recursos humanos" da Companhia, sob a formulação bíblica da repartição dos talentos. Rende pouco além de constatações como a de que o conhecimento do tupi e a conversão dos índios estão intimamente ligados. Em termos qualitativos, a análise das tabelas sugere a hipótese da "especialização negativa" dos encarregados da conversão dos índios. Estes, "especialistas" nos termos da autora, seriam aqueles cujo único talento é a conversão, por saberem a língua. Porque a missão exigia, dizem os documentos, "poucas letras e muita virtude" (:92), já que as aldeias eram local perigoso em termos espirituais, os padres das aldeias costumavam ter uma formação mais rápida nos colégios. Aqui, Castelnau-L’Estoile identifica um dos vários paradoxos que povoam sua análise: os missionários propriamente ditos, aqueles que se encarregam dos índios, que são a própria razão de ser da Ordem, são subordinados e subalternos, e, por falta de talento e formação, nunca chegam às posições "mais prestigiosas". Diante disso, a conversão dos índios aparece como uma espécie de condenação dos menos qualificados e a "vocação do Brasil", algo raro e desvalorizado. Parece, de fato, estranho que uma hierarquia dos talentos dentro de uma ordem missionária coloque no topo o administrador, e no ponto mais baixo o missionário. De qualquer modo, os administradores poderiam ser igualmente caracterizados por uma "especialização negativa": basta olhar para as tabelas para perceber que os jesuítas que nelas aparecem com talento para a administração jamais têm talento para a conversão, de modo que o administrador também poderia ser definido como aquele que não tem talento para as línguas, ou resistência física para os descimentos, ou paciência para suportar o trabalho de Sísifo que é a conversão dos "brasileiros". Como a própria autora desconfia (:235), talvez os catálogos mais confirmem e justifiquem a repartição dos obreiros pela vinha do que reflitam "talentos reais". Talvez não haja, afinal, paradoxo algum na posição dos missionários.

Outro tema recorrente são as relações entre os missionários no Brasil e seus superiores na Europa. A visita periódica de representantes do centro às províncias, com o objetivo de reforçar a unidade do corpo disperso da Companhia, é uma das instituições jesuíticas analisadas desse ponto de vista. Apresentada como instituição burocrática, segundo a definição de Weber, a Companhia é considerada original quanto à relação entre matriz e "filial" revelada pela correspondência. Percebe-se nesta o constante diálogo entre a regra proposta ou aprovada pela matriz e suas (im)possibilidades de aplicação, explanadas pelos missionários in loco. A segunda e a quarta partes do livro apresentam vários exemplos dessas "negociações" entre a periferia e o centro, de que os jesuítas da província brasileira emergem como "pragmáticos" que beiram a desobediência – especialmente surpreendente em jesuítas, o que leva a autora a apontar mais um paradoxo, este central.

Entretanto, sob várias formulações, a análise alude ao (notável) princípio inaciano, segundo o qual "as regras devem ser aplicadas, a não ser que as condições locais imponham que não o sejam" (:63). E essa expressão do "princípio de adaptabilidade [que se encontra] no cerne da instituição jesuíta" (:83) parece dissolver a contradição que Castelnau-L’Estoile localiza na afirmação conjunta da união da Ordem e da diversidade local das missões. Nos vários documentos que expressam a centralização hierárquica da Ordem, e portanto sua unidade – aos quais respondem relatos, pedidos, consultas e justificativas que remetem a especificidades locais –, propõe-se ver uma "tensão entre a aceitação da diversidade e a exigência da uniformidade" (:83). Note-se, porém, que a união virou uniformidade, e o paradoxo foi criado na formulação. Pois a citação que se encontra logo acima dessa interpretação, justamente, lembra a máxima: aplicar a regra "na medida do possível", e é essa parte da regra jesuítica que não parece ser levada em conta. Tanto é que a idéia da abertura das Constituições à adaptação, na formulação do próprio Inácio de Loyola – "são [as Constituições] feitas de tal modo que podem ser introduzidas e adaptadas em alguma medida, sem que nada seja feito contra elas" (:90, ênfase minha) –, aparece em nota (n. 26). Tudo aponta para a centralidade dessa "medida do possível" no "modo de fazer" próprio da Companhia de Jesus, ordem voltada para o mundo e para a missão. A discussão dos regulamentos das aldeias, da política de aprendizado da língua, da utilização de intérpretes, que a autora restitui com riqueza através dos documentos, bem como os debates sobre o que se pode ou não tolerar dos costumes bárbaros durante o período de civilização e conversão, que aparecem menos, podem todos ser lidos como exemplos de negociação dessa "medida", mediante a troca de informações, pedidos e decisões entre o centro e a periferia. "Tensões", "paradoxos", "contradições", "oposições", termos que retornam tantas vezes para analisar díades como centro-periferia, regra-ação, ortodoxia-pragmatismo, unidade-diferença, dificilmente se concebem diante dessa abertura programática da Companhia de Jesus. O leitor se pergunta, afinal, em que medida cabe falar em "afastamentos" ou "não-aplicações" da regra tal qual ditada pelo centro, em "autonomização da província brasileira", ou mesmo em "dissolução da identidade jesuíta", problemas que preocupam a autora

Das várias formas locais da missão jesuítica, os aldeamentos são a mais notável. Apresentados como "marca original da experiência missionária brasileira" (:81), expressam, segundo a autora, mais uma contradição: a missão, que por definição seria deslocamento, estaria aqui fixada. Contudo, a sedentarização, como modelo de missão, não se apresenta como solução, ou foco de debate, somente no Brasil. Colocam-se aqui, como em outras partes da América povoadas pela "terceira categoria de bárbaros" da classificação de José de Acosta – sem fé, nem lei, nem rei, "nômades" etc. –, dificuldades específicas ao trabalho de conversão. Diante do mesmo tipo de situação, em outras regiões e momentos, missionários – e não apenas jesuítas – também acreditariam nas "reduções" como único meio de sedentarizar, civilizar, "policiar" e, posteriormente, converter e manter na fé ovelhas esquivas e inconstantes. A política de aldeamento, enquanto fixação dos missionários e dos índios, não é, pois, exclusiva do Brasil, embora a província brasileira tenha sido pioneira na tentativa de aplicação dessa solução.

Original, de fato, na forma brasileira do aldeamento, parece ser aquilo que a liga à administração colonial e justifica sua existência legal: sua concepção como reserva de mão-de-obra indígena livre para os colonos. Esse aspecto fundamental não aparece na análise quando se afirma que o trabalho dos índios se restringe às aldeias (:135), não é explorado quando surge na documentação (:139), e é equivocamente negado numa interpretação parcial da Lei de 1596 (:264). Contudo, é justamente aí que se encontra algo que torna os aldeamentos brasileiros únicos e realmente "paradoxais". Não é o fato de serem missões sedentárias, mas aldeamentos oficiais a cargo de missionários, que coloca a contradição no cerne dos aldeamentos jesuíticos e explica em grande parte o problema que levantam para a Ordem.

Essa imbricação da atuação jesuítica com a colonização portuguesa que se expressa na forma híbrida dos aldeamentos, multiplicando os dados a serem integrados à reflexão, representa uma das dificuldades inerentes a qualquer análise da história da Companhia de Jesus. Exemplar desse tipo de dificuldade é a desqualificação da relação da missão ao Maranhão, escrita pelo Pe. Figueira (1609), como fonte historiográfica, por conter, segundo a autora, "evidente anacronismo": a referência a um documento que só poderia ser a Lei de 1609 na narrativa de uma expedição de 1607 (:440). No entanto, o próprio texto da Lei de 1609, sobre a Liberdade dos Índios, menciona uma Carta Régia de 1605, que se refere precisamente à liberdade dos índios a que se dirigia a missão do Pe. Figueira. De modo que não há anacronismo aí, e a relação, além de seu aspecto edificante, mostra-se fidedigna em termos históricos. A proposta da autora de analisar as atividades da Companhia de Jesus ao mesmo tempo do ponto de vista de sua inserção no contexto colonial e "de dentro", por sua vez, gera dificuldades suplementares. Em vários pontos, teria sido necessário olhar com mais atenção para além da Companhia.

Mas é quando a análise se centra na própria Companhia, e nas "categorias de análise e de percepção dos jesuítas", que ela atinge seu ponto mais interessante, mais fluente e mais rico. A partir do que chamaríamos de "conceitos nativos" da consolação, da edificação e do próprio ato de escrever como atividade espiritual prevista pelas Constituições, Castelnau-L’Estoile analisa três relatos de missão e uma biografia de Anchieta. Iluminados pela correspondência administrativa e por seus conceitos fundamentais, os textos em que a missão é apresentada e representada pela Companhia de Jesus vêem revelada a dimensão espiritual intrínseca aos papéis dessa "burocracia missionária". No Epílogo, a instigante análise da festa de celebração da canonização de Loyola e Francisco Xavier, na Bahia, em 1622, mostra em forma de alegoria os conceitos norteadores da missão jesuítica, sua auto-imagem e seu marketing, remetendo à idéia da "festa" como outra das características locais da estratégia jesuítica no Brasil.

Explorando a missão jesuítica no Brasil sob vários ângulos, o trabalho de Castelnau-L’Estoile reabre um capítulo fundamental da história colonial. Diante da profusão de questões colocadas pela atuação dos jesuítas no Brasil, e dos desafios apresentados, o livro mostra que esta vinha, extremamente laboriosa, é também fértil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2003
  • Data do Fascículo
    Abr 2003
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