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No habrá flores en la tumba del pasado: la experiencia de reconstrucción del mundo de los familiares de desaparecidos

RESENHAS

Silvina Merenson

Universidad Nacional de Quilmes, Comisión de Investigaciones Científicas/PBA, Argentina

CATELA, Ludmila da Silva. 2001. No Habrá Flores en la Tumba del Pasado. La Experiencia de Reconstrucción del Mundo de los Familiares de Desaparecidos. La Plata: Ediciones Al Margen.

Passados mais de 25 anos do golpe de Estado de 1976, os relatos e representações da violência política na Argentina convivem, gerando discursos plurais. Redundantes ou elusivos, todos se referem a memórias encontradas, recordações antagônicas em função de um presente que trama diversas perspectivas sobre o passado e de políticas que induzem a tensões entre a vontade e as possibilidades de recordar, encerrar e esquecer. Sem dúvida, esse livro faz eco a esse marco referencial, apresentando, ao longo de cinco capítulos, o modo como os familiares de desaparecidos políticos residentes na cidade de La Plata, capital da província de Buenos Aires, transmitem hoje suas estratégias de sobrevivência diante das rupturas causadas, na esfera íntima, pelo terrorismo de Estado em todas as suas formas. Esse livro – que no ano de 2000 recebeu o prêmio ANPOCS/CNPq de melhor tese de doutorado em ciências sociais – começa formulando uma pergunta inquietante: como é possível que, apesar das traumáticas e terríveis perdas de entes queridos, as respostas dadas pelos familiares de desaparecidos não apelem à violência ou à vingança como estratégia social?

A socialização dos familiares na experiência do desaparecimento conduz a autora a problematizar as temporalidades como uma dimensão da análise etnográfica. Desse modo, "La invención del mundo" e "Rompecabezas", os dois primeiros capítulos, acompanham a lógica dos fatos vinculados à desaparição. Descrevem um tempo individual e coletivo, ligado ao deslocamento maciço da ordem considerada normal, produzido pelo desaparecimento. Esse período – que começaria com os seqüestros e compreenderia o início da presidência de Raúl Alfonsin, em dezembro de 1983 – é o do reconhecimento dos familiares como pares na busca de respostas vinculadas tanto ao destino final dos desaparecidos, como àqueles elementos que permitiriam explicar os novos papéis e status adquiridos.

A abertura de um tempo de "espera", "ilusão" ou "esperança", induzido pelo seqüestro, em oposição ao da "morte", conjuga-se com um terceiro, vinculado às estratégias e ações políticas de caráter grupal, iniciado com a primeira ronda das "Mães" na Praça de Maio em 1977, e cuja última expressão, até o momento, foram os atos públicos que buscam identificar e tornar visíveis os implicados na repressão e no regime ditatorial. As manifestações desse tipo, denominadas escraches [escrachos], foram idealizadas pelo H.I.J.O.S., grupamento que reúne os filhos de desaparecidos e assassinados durante a última ditadura militar. O ingresso destes últimos na cena política – na maioria dos casos com a mesma idade que seus pais no período de sua militância ou seqüestro – implica, como observa Catela, novas fórmulas, estratégias e ressignificações vinculadas ao modo de conceber tanto a ação quanto os sentidos da recordação.

Em "Desaparición", o terceiro capítulo, a atenção dirige-se à categoria "desaparecido" e às maneiras como os familiares conferem significado a esse novo status da pessoa. Esta categoria, como uma instância em que a vida se evidenciaria "incompleta" ou, para citar Jonathan Parry, como o correlato de uma espécie de "predação negativa", impõe um sistema de práticas, crenças e representações que redunda em uma reatualização do campo de agentes e instituições implicadas. Seguindo um caminho que parte da unidade mínima do testemunho, o passo da busca individual à busca coletiva dos familiares de desaparecidos será, nesse texto, o passo do particular ao geral, especialmente nos dois últimos capítulos, denominados "Territorios de Memoria" e "Justicia y Verdad". Neles, a autora põe em jogo a viabilidade de pensar a família como metáfora da nação e, com isso, a possibilidade de nacionalizar e universalizar as perguntas que o "processo de desaparecimento" das vítimas desencadeia no seio de uma sociedade que disputa espaços físicos para as memórias, pondo em ato homenagens e reconhecimentos levados a cabo em diversos âmbitos públicos. Nessas instâncias de interação, representação e ressignificação da história individual e coletiva, Catela observa uma série de substituições, símbolos e emblemas que adquirem em cada geração participante um sentido particular. Cada um desses "lugares simbólicos", em sua correspondência com um evento ritualizado, expressa a força de capitais políticos e culturais diretamente vinculados à ausência do corpo e à falta de uma tumba.

Levando em consideração práticas, representações e discursos, em um contexto de proximidade cultural e afetiva com a comunidade estudada, a autora introduz uma série de problemáticas e contribuições teóricas que excedem o contexto pós-ditatorial argentino, para inscrever-se em um horizonte teórico-disciplinar muito mais amplo, que nem sempre logra responder às perguntas que surgem na análise dos dados empíricos, os quais supõem recordações inscritas em temporalidades individuais e sociais marcadas por silêncios, pactos e posicionamentos de ordem moral e ética. Esse tipo de relato, repondo diálogos com os familiares ausentes, sempre onipresentes, se torna particularmente complexo quando se percebe que as intenções de seus narradores, tornados protagonistas nas entrevistas realizadas pela autora, se enraízam na superação dos dilemas políticos abertos pelo terrorismo de Estado e a violência política nos anos 60.

A pergunta de que parte o livro remete diretamente às modificações operadas na Argentina nas formas de fazer política no período que se estende dos anos 60 até o presente. Ela nos leva a uma reflexão necessária acerca da pertinência que, nesses estudos que privilegiam a análise do que se tem chamado as "memórias da repressão", adquire a possibilidade de pensar uma longa duração do cultural, capaz de captar as continuidades e descontinuidades políticas. Neste caso, para contextualizar e dar sentido às leituras que os familiares das vítimas realizam a respeito da violência política nos anos 70 e o regime estatal de desaparecimento.

Se toda recordação pertence, ao mesmo tempo, tanto ao passado quanto ao presente, e encontra-se modificada por este último, poderíamos perguntar-nos se a ausência de "flores na tumba do passado" não obedece, mais do que às dificuldades que todo desaparecimento impõe aos que devem elaborar o luto, à impossibilidade de construir, significar e situar o passado que estaria nela depositado. Esta observação aponta para a necessidade de atentar criticamente para a historicidade sustentada nos encontros das dimensões éticas e políticas que propõem os testemunhos, fundamentalmente como estratégia interpretativa para evitar a redução da política e da história à linguagem das emoções familiares.

A centralidade que adquire a categoria "desaparecido" no texto manifesta a construção de um sistema classificatório contingente das dimensões éticas e políticas, assim como das experiências vividas pelos familiares que, desde o começo dos anos 80, se autodefiniram como "diretamente afetados pelo terrorismo de Estado". Cada um dos esquemas elaborados pelos 27 familiares entrevistados pela autora constituiria em si mesmo um ato político-moral, por meio do qual os agentes parecem introduzir uma "vontade de bem" que tenta ser salva a partir de uma operação supondo dois movimentos simultâneos: de um lado, a invisibilização do processo político nos anos 70 e, de outro, o descrédito em instituições como a Justiça ou a Igreja. Esta operação – que relembra a oposição central assinalada por Mary Douglas entre pureza e contaminação – busca realizar uma seleção entre os fatos narrados cujo epicentro estaria em uma série de concepções acerca do politicamente "puro" e "impuro" que entram em diálogo com os modos de viabilizar a política na Argentina nos anos 70. Vale destacar que essas concepções não se originam do nada, fora de um processo histórico, mas são parte de um repertório cultural incluindo consensos e dissensos que, ao longo de mais de 25 anos, fizeram das vozes dos familiares testemunhos socialmente legítimos e autorizados no momento de dar conta do terrorismo de Estado na Argentina, obliterando outros possíveis.

É nesse caminho que os familiares logram conformar uma espécie de "sociedade discursiva", na qual ingressam apenas aqueles que possuem suas chaves interpretativas. As condições de fechamento de alguns discursos, e de produção ou reprodução de outros, depois de períodos ditatoriais como os atravessados pela Argentina, põem em ação uma dinâmica que permite resgatar a figura da vítima de uma concepção essencialista que, ao mesmo tempo que redime, reifica as ausências em um território íntimo, marcado pela pureza dos laços de consangüinidade. Essa condição, que autorizaria pensar as vítimas como "doadores de identidade" a partir de uma sutura histórica que põe no centro das diferenciações a violência política, construiria silêncios e omissões que permitiriam costurar uma descontinuidade que deveria permanecer aberta. No caso argentino, como foi assinalado por Rosana Guber, a paradoxal obturação que reproduz a equívoca linhagem matrilinear "Avós da Praça de Mayo" – "Mães da Praça de Mayo" – "HIJOS" (já que as avós e as mães pertencem à mesma geração e não a duas gerações sucessivas, como sugeririam as denominações de suas organizações) tende a anular a brecha criada pela ausência da geração dos desaparecidos, situando os HIJOS no "lugar vazio" de seus pais. O esforço analítico deveria, então, centrar-se em indagar que pactos, lutas, vitórias ou derrotas são postas em jogo nesse tipo de processo, fornecendo aos relatos uma perspectiva histórica capaz de contextualizar e questionar as teorias nativas para avançar, ainda mais, na interpretação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2003
  • Data do Fascículo
    Abr 2003
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