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A history of the modern fact: problems of knowledge in the sciences of wealth and society

RESENHAS

Marcia Anita Sprandel

Pesquisadora, Núcleo de Antropologia da Política da UnB

POOVEY, Mary. 1998. A History of the Modern Fact: Problems of Knowledge in the Sciences of Wealth and Society. Chicago/London: The University of Chicago Press. 419 pp.

Mais conhecida no Brasil por seus estudos feministas, especialmente pelo artigo "Feminism and Deconstruction" (Feminist Studies, 1988), Mary Poovey é crítica literária e historiadora cultural, autora de Uneven Developments: The Ideological Work of Gender in Mid-Victorian England e Making a Social Body: British Cultural Formation, 1830-1864, ambos publicados pela University of Chicago. Dirige o Institute for the History of the Production of Knowledge, iniciativa inovadora da New York University que, desde 1997, encoraja os estudantes a investigar as configurações em transformação de disciplinas, metodologias e tecnologias que dividiram os diversos campos do conhecimento no mundo antigo e moderno.

Em A History of the Modern Fact, Poovey busca identificar o momento histórico em que o fato se tornou a unidade de conhecimento por excelência da modernidade. Partindo do exame do primeiro manual britânico sobre livros-caixa, de 1558, e chegando aos textos que institucionalizaram a estatística na década de 1830, a autora analisa o processo de separação entre a descrição e a teoria, levado a efeito pelos precursores da economia e da ciência social.

Lendo documentos do século XIX sobre cidades da Grã-Bretanha, Poovey percebeu que as narrativas interpretativas se combinavam com tábuas numéricas que pretendiam descrever mais ou menos as mesmas circunstâncias, aparentemente sem comentários analíticos. Em lugar de analisar as interpretações, ela ficou intrigada com os números. Mas em vez de analisar o que estes mostravam sobre a miséria urbana, como provavelmente fariam os historiadores, sua curiosidade voltou-se para o que o seu uso revelava sobre o que os britânicos pensavam dos números naquele período.

Após anos de pesquisa, a autora percebeu que, em vez de explorar os significados históricos ou os usos das representações numéricas, deveria ter se colocado uma questão epistemológica: como o conhecimento era entendido, uma vez que parecia consistir ao mesmo tempo de descrições numéricas aparentemente não interpretativas e de sistematizações que derivavam dessas descrições? Descobriu então que as duas funções – descrição e interpretação –, que pareciam ser separadas naqueles textos do início do século XIX, são coincidentes na maioria dos projetos de conhecimento produzidos durante o longo período da modernidade. Descobriu que, mesmo naqueles textos, a descrição e a interpretação somente parecem diferentes, porque um modo de representação (os números) era graficamente separado dos comentários narrativos. Descobriu, finalmente, que naqueles textos do século XIX, como em muitos outros que pretendem descrever o mundo material, os números também são interpretativos, pois contêm hipóteses teóricas sobre o que deveria ser contado, sobre como se poderia entender a realidade material e sobre como a quantificação contribui para o conhecimento sistemático do mundo.

Tais figuras, que simultaneamente descrevem particularidades e contribuem para o conhecimento sistemático, a autora chama de fato moderno. A história do fato moderno, por sua vez, é a história de como a descrição veio a ser percebida como algo separado da interpretação ou da análise teórica, a história de como um tipo de representação (os números) veio a ser percebido como imune à teoria ou interpretações. No âmbito dessa lógica de rompimento da conexão entre a descrição e a interpretação, teria se dado uma progressiva diminuição da importância da política na interpretação da realidade. Para Poovey, é um equívoco aceitarmos friamente o que os números pretendem mostrar. Devemos, ao contrário, identificar o que seu uso revela e qual o seu interesse para os governantes. Nesse sentido, sua teoria torna-se extremamente útil para analisarmos muitos dos discursos oficiais com os quais lidamos em nossas próprias investigações.

Exemplifico com um tema que retornou com força ao cenário político nacional: a pobreza. O instrumental analítico de Poovey permite que questionemos as teses sobre pobreza baseadas em quantificações e focalizações tão caras aos organismos internacionais. Não se trata aqui de desqualificar a importância dos números para a elaboração de políticas públicas, mas de ficarmos atentos à primazia quase hegemônica e desproblematizada que eles tendem a assumir em relação a discursos outros que, historicamente, vêm buscando refletir sobre as mazelas do país. Em um momento brilhante do livro, no qual analisa o surgimento das categorias "homem", "humanidade", "sociedade", "pobreza", "mercado" e "economia", a autora argumenta que quando um tema se torna "uma questão" ou "um problema", dificilmente conseguimos nos debruçar sobre o passado e analisá-lo com isenção, distantes de seus atuais significados.

Ilustremos tal afirmação falando do Brasil. Um pesquisador que procurar analisar historicamente "a pobreza" no país, tendo como referência o tratamento contemporâneo dado à questão (que se fundamenta em indicadores sociais como o Índice de Desenvolvimento Humano [IDH] criado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento [PNUD]), encontrará sérias dificuldades. Embora se possa aventar a hipótese de que "a pobreza" exista em nosso país há mais de quinhentos anos, o "problema da pobreza", ou a pobreza como problema, é uma preocupação historicamente bem mais recente. Nos debates do final do século XIX e das primeiras décadas do século XX, o "problema da mestiçagem" e a necessidade de se "organizar social e politicamente" um país "sem povo", apareciam como os grandes problemas nacionais. Ou seja, embora detalhadamente descrita em muitos textos, a pobreza figura no mais das vezes como uma conseqüência do clima, da mestiçagem, da doença, da desorganização social ou mesmo da falta de condições objetivas para uma revolução popular em nosso país.

O livro, além da análise do reconhecimento social da importância dos números, de sua inserção cada vez maior no discurso político e da gênese das categorias abstratas universais citadas, examina também o aparecimento dos especialistas e da opinião pública. O método que a autora utiliza para fazê-lo é uma das grandes inspirações que seu livro produz no leitor interessado no tema. Sua narrativa afasta-se da história convencional de muitas maneiras. Diferentemente da maior parte dos historiadores das idéias, Poovey não está interessada apenas na influência das idéias de um indivíduo sobre as idéias de outro, nem no desenvolvimento de abstrações específicas. Sua preocupação maior é identificar como essas abstrações adquiriram vitalidade suficiente para produzir efeitos materiais. Acredita, nesse sentido, que a forma como um argumento é conduzido constitui o próprio argumento, porque não existem idéias fora de sua enunciação. Ou seja, enquanto a maioria dos relatos históricos é uma crônica do desenvolvimento de uma idéia e de uma série de eventos bem conectados, Poovey explicitamente toma uma rota circular, espiralada, por entender que seu objeto de análise é abstrato.

Tal abstração, que poderia desagradar historiadores tradicionais por não trazer nenhum traço que reconhecem como evidências documentais, permite a Poovey expor conexões entre projetos de conhecimento tão diferentes quanto a retórica, a filosofia natural, a filosofia moral e versões antigas das ciências sociais modernas. Para a autora, o que conecta tais projetos é a hipótese epistemológica comum de que o conhecimento sistemático precisa ser superior aos dados não interpretativos coletados sobre as particularidades observadas. Dessa forma, mostra como um conjunto de práticas que foram desenvolvidas para servir a diferentes agendas também ajudou a elaborar tal hipótese sobre o conhecimento.

Para Poovey, sobretudo, estudar unidades epistemológicas como o fato moderno permite que repensemos a natureza da evidência. Uma história do fato moderno, como preconiza, revela os princípios organizacionais dos tipos de conhecimento através dos quais os sujeitos do mundo moderno manejam suas relações com os outros e com a sociedade. Em suas palavras, "se aceitarmos – como aceito – que modos de representação enformam o que não podemos conhecer, e se aceitarmos também – como aceito – que modos de representação incorporam ou articulam modos de organizar e dar sentido ao mundo, então, para entender o potencial e as limitações do que conhecemos, necessitamos de ferramentas para investigar as condições que fazem o conhecimento possível [ ] o fato moderno nos dá essa ferramenta" (:XV). Ferramenta que permitiu a Poovey demonstrar que a crença – apareça esta quer como crédito, credibilidade ou credulidade – permanece essencial para a produção do conhecimento.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2003
  • Data do Fascículo
    Abr 2003
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