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Qual prevenção? Aids, sexualidade e gênero em uma favela carioca

RESENHAS

José Carlos Rodrigues

PUC-Rio

MONTEIRO, Simone. 2002. Qual prevenção? Aids, sexualidade e gênero em uma favela carioca. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 148 pp.

O ponto de partida fundamental deste trabalho foi uma investigação de campo sobre representações e práticas associadas à sexualidade. A pesquisa envolveu rapazes e moças de uma favela carioca, Vigário Geral, e teve por foco principal a questão da proteção à saúde.

Na busca do entendimento de tais manifestações, a autora procurou identificar os núcleos simbólicos do sistema de proteção "nativo", almejando obter informações que contribuíssem para uma reflexão sobre os parâmetros a partir dos quais seria possível esperar a adesão dos jovens pesquisados ao discurso preventivo oficial.

Os resultados da investigação revelaram um apreciável descompasso entre esse discurso preventivo, que normalmente é orientado por um ideário "moderno" no qual se sustenta uma relação simples e direta entre conhecimento e prática, por um lado, e os dados do contexto etnográfico analisado, por outro, em que se observa o peso de uma visão de mundo "tradicional", baseada na localidade, nas relações de vizinhança e no parentesco.

Segundo Simone Monteiro, as campanhas educativas de prevenção contra a AIDS inspiram-se em geral na idéia de igualdade de direitos individuais. Esta idéia se materializa em propostas de planejamento e de negociação igualitária entre os parceiros a respeito da prática de sexo seguro, visando produzir acordo quanto ao uso de preservativos e/ou sexo sem penetração. Contudo, os dados da pesquisa apresentaram um quadro governado por valores bastante contrastantes com essas premissas: revelou-se um panorama de crenças e práticas associadas ao conhecimento do e à confiança no outro, além de baseadas no vínculo amoroso, na curiosidade e na oportunidade.

Pelos discursos dos informantes, prevaleceram as assimetrias de gênero. A maternidade e a paternidade mostraram-se valores extremamente importantes, cruciais mesmo, para a definição das identidades de 'mulher' e de 'homem'. Na prática, essas concepções correspondem a relações heterossexuais, em geral genitalizadas e desprotegidas. Materializam-se também, de modo coerente, em críticas ao auto-erotismo e em condenações à homossexualidade, especialmente feminina.

Uma das teses centrais do trabalho é a de que no campo da saúde as práticas cotidianas não decorrem apenas de decisões individuais racionais, controladas pelos indivíduos ­ como pressupõe o discurso preventivo oficial ­, mas das condições simbólicas e materiais da existência. Apoiando-se em conhecida distinção sustentada por Roberto DaMatta, a autora afirma que a lógica de proteção "nativa" se ancora na combinação das categorias 'casa', 'outro mundo' e 'rua' ­ que atuam na definição geral dos cuidados da saúde, assim como na prevenção de infecção por HIV em particular.

Essas categorias definem a hierarquia dos riscos. Nas relações com alguém da 'rua', os métodos preventivos encontram chance maior de se fazerem presentes. Naquelas com alguém da 'casa' (namorada, moça de família, conhecido), tornam-se praticamente negligenciáveis. Assim, a camisinha e outros métodos de proteção se fazem indispensáveis no grupo pesquisado apenas quando o sexo é concebido como extremamente perigoso ­ isto é, quando praticado com alguém muito distante da 'casa'. Entretanto, mesmo neste caso arriscado, será sempre possível contar com a proteção das forças do 'outro mundo'.

Estrategicamente, Simone Monteiro optou pelo método etnográfico. Certamente, este era o mais indicado e, mesmo, o mais necessário, para o enfrentamento das questões que se colocou. Contudo, a exemplo do que se pode ver em muitos e muitos textos antropologicamente inspirados que derivam de teses sustentadas em instituições tradicionalmente pertencentes às áreas científicas "duras" ou "verdadeiras" (no caso, de doutoramento apresentada à Escola Nacional de Saúde Pública), constata-se aqui a dificuldade da autora em levar o método etnográfico e, sobretudo, a observação participante às suas últimas conseqüências.

Uma resultante disso é que a pessoal, única e insubstituível experiência do pesquisador ­ em sua relação direta, face a face e na primeira pessoa com seus informantes ­ termina por se apresentar no texto disfarçada como objetividade neutra e distante e mascarada repetidamente sob as formas lingüísticas da voz passiva ("descrevem-se aqui as trajetórias...") e do sujeito indeterminado ("constata-se que..."). Desse modo, em vez de aproveitá-la em sua positividade, maquiam-se, mas apenas retoricamente, os riscos de a subjetividade do pesquisador se insinuar.

Não obstante, muito além dessa observação pontual, de abrangência bem mais ampla do que o texto em questão, as páginas de Qual prevenção? nos fazem meditar sobre o alcance efetivo de nossos métodos e técnicas de pesquisa para desvendar temas e problemas concernentes à relação entre representações e práticas. Penso sobretudo nas dificuldades que encontramos quando tentamos investigar assuntos que articulam os universos do público, representado pelo pesquisador, e do privado, relativo a pensamentos, sentimentos e ações de seus informantes. Por exemplo, no caso específico do trabalho em pauta ­ para efeitos de compreensão etnográfica do grupo pesquisado e mesmo para a eficácia dos projetos preventivos ­, até que ponto se pode considerar a ausência de relatos de homoerotismo pelos informantes como significando inexistência de práticas efetivas? Ou, quanto de credibilidade devemos atribuir às declarações dos rapazes sobre o número de suas parceiras sexuais? Ou às informações verbais sobre a freqüência de suas relações? Ou, ainda: que grau de realidade fornecer às afirmativas dos jovens pesquisados que condenam as práticas masturbatórias?

Ao mesmo tempo, podemos fruir deste livro como uma bela apreensão sociológica de um problema técnico específico de intervenção social. Por este caminho, Simone Monteiro nos leva a especular sobre dilemas interessantes, relativos aos limites éticos, técnicos e políticos das ciências sociais aplicadas. Sua leitura será certamente de grande relevância para estudantes e profissionais que se dedicam ao estudo da antropologia do corpo, bem como para aqueles voltados para a investigação das questões atinentes à comunicação no campo da saúde coletiva.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Nov 2003
  • Data do Fascículo
    Out 2003
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