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Beyond the visible and the material: the amerindianization of society in the work of Peter Rivière

RESENHAS

Marcela Coelho de Souza

PPGAS-MN-UFRJ

RIVAL, Laura M. e WHITEHEAD, Neil L. (orgs.). 2001. Beyond the visible and the material: the amerindianization of society in the work of Peter Rivière.Oxford: Oxford University Press. 301 pp.

Os treze artigos reunidos neste volume são um tributo a Peter Rivière. O prefácio de David Parkin salienta as contribuições do homenageado à antropologia em geral, mas o livro apresenta-se sem rodeios como uma exploração das veredas abertas por seus trabalhos na selva sul-americanista. Como indica o título, trata-se de uma antropologia cuja maior contribuição "teórica e metodológica" tem sido mesmo o "amerindianizar" ­ entenda-se, deformar etnograficamente ­ a "sociedade" ­ entenda-se, o conceito antropológico de sociedade.

É apropriado que este livro tenha como um de seus temas centrais o significado da afinidade e da consangüinidade para os povos das terras baixas sul-americanas. Poucos fizeram tanto quanto Rivière para que compreendêssemos o quanto a "amerindianização da sociedade" passava por uma investigação profunda dessas categorias. O desafio é encarado de frente pelos dois primeiros capítulos, o de E. Viveiros de Castro e o de A.-C. Taylor.

Estes autores convergem em ver na afinidade o esquema privilegiado da relação no universo ameríndio e na consangüinidade, uma não-relação (:25, 51, 53). Essa proposição se enraíza, no caso de Viveiros de Castro, em um projeto de amplo escopo, do qual seu capítulo neste livro representa uma apresentação muitíssimo compacta. Resumir projeto e capítulo tomaria, no mínimo, toda esta resenha. Atenho-me a duas indicações. Primeiro, quanto à relação com a produção anterior do autor, faz-se aqui a ponte entre a reflexão sobre o parentesco e aquela sobre a cosmologia perspectivista dos ameríndios, reformulando o conceito de afinidade (potencial) como uma dimensão de virtualidade ­ o dado ­, cuja atualização é o que produz ­ constrói ­ o parentesco ou consangüinidade. A segunda indicação refere-se às possibilidades que este trabalho abre para investigações futuras: a metaestrutura proposta é feita para ser lida em duas direções ­ a da atualização da afinidade e construção do parentesco, aqui enfatizada, mas também na direção inversa, a de um "contrafluxo [...] guiado pelo princípio dominante da afinidade" (:29), a que se podem conectar relações, eventos e processos que remetem à ordem do ritual (ver várias das aplicações da estrutura sugeridas pelo autor). A dinâmica da conexão entre essas "duas linhas" aqui esboçada ilumina muito a relação entre, de um lado, a construção da comunidade de parentes na vida diária e, de outro, o ritual, o xamanismo e o mito ­ entre o 'ordinário' e o 'extraordinário', em suma, questão em torno da qual os americanistas adoramos polemizar.

O artigo de Taylor expressa um ponto de vista semelhante, mas a partir de uma análise extremamente original das conceitualizações jívaro da conjugalidade e da germanidade, da parentalidade e da procriação (filiação). Focalizando as representações das formas relacionais subjacentes aos laços vividos do parentesco, ela conduz uma discussão fina e densa das atitudes ou disposições afetivas ("sedução", "predação") subjacentes a esses laços, bem como do modo como se articulam a uma concepção "dividida" da pessoa. Pessoa que se revela constituída a partir de uma relação interna com uma figura de alteridade ­ um inimigo, no caso masculino, um animal, no feminino ­, um desdobramento que informa igualmente os modelos reprodutivos e a concepção da filiação. Da análise decorrente, a autora extrai a conclusão de que a consangüinidade só se torna propriamente social, isto é, só deixa de ser uma auto ou uma não-relação (clonagem), quando se articula à afinidade (:53). Não se trata de que as relações de procriação não sejam por si mesmas reprodutivas no sentido estrito, mas o que faz delas reprodução de novas entidades, o que "as torna dinâmicas e introduz diferenciação em um processo que de outra forma seria a replicação do mesmo [à l'identique]" (:53), é a afinidade.

O capítulo seguinte, de Laura Rival, contrapõe-se aos dois precedentes. Considerando a consangüinidade amazônica menos bem compreendida que a afinidade, a autora explora as noções de procriação depreensíveis das práticas agrícolas makuxi. A conexão que ela procura assim fazer é inegavelmente interessante, e sua descrição bastante rica. Mas seu esforço de mobilizá-las polemicamente não é tão bem-sucedido. O objetivo é claramente restabelecer a dignidade ferida da consangüinidade, salvá-la da "nothingness" a que teria sido reduzida pelos "estruturalistas", restituir a centralidade das relações de procriação ("em pelo menos um sistema de pensamento indígena amazônico" [:77]), reconhecer seu "poder de criar uma nova vida em vez de apenas replicar a do próprio sujeito" (:77). Evitando o ar rarefeito em que plana Viveiros de Castro, Rival opta por enfrentar o problema contestando a associação simbólica proposta por Taylor entre a propagação da mandioca por clonagem e o modelo de engendramento do Mesmo que constituiria o "resíduo não-afim da consangüinidade", argumentando que as práticas agrícolas makuxi envolvem uma clara ênfase na preservação e fomento da diversidade da mandioca via a fertilização periódica das linhas clonadas por plantas reproduzidas a partir de sementes. O problema é que sua descrição da maneira como os Makuxi asseguram essa diversidade pode ser lida no sentido contrário ao pretendido, i.e., como uma demonstração da distinção entre dois modelos reprodutivos e da necessidade de fazer intervir um princípio "afim" ­ plantas selvagens vistas como o "afim sem parentes, improdutivo, infértil que perdeu todo o potencial para a socialidade" (:74), que devem ser devidamente domesticadas antes de poderem produzir alimentos ­, para que as plantas domesticadas (às vezes domesticadas demais, dizem os índios) possam continuar gerando mais de si mesmas...

Enfim, talvez estejamos diante da tradicional dificuldade de tradução entre as línguas teóricas faladas nos dois lados da Mancha. A diferença não está na interpretação mais ou menos correta que nos é oferecida dos fatos, mas, parece-me, no quanto se permite que estes venham amerindianizar nosso vocabulário. Mesmo nesses termos, possivelmente, o julgamento das posições em confronto depende de, digamos, gosto. Permanece todavia o fato de que, diante do ataque conjunto dos dois primeiros artigos, a defesa de Rival revela-se insuficiente. Mas a bola continua em campo.

A questão dos significados da afinidade e da consangüinidade atravessa praticamente todos os capítulos do volume, cuja diversidade de temas atesta a variedade de interesses do homenageado. A dimensão simbólica da cultura material (e a fecundidade do idioma botânico) é explorada por Chaumeil e Erikson a partir das zarabatanas yagua e matis, respectivamente. O primeiro nos conduz da zarabatana a outros "tubos" ­ ossos, flautas, palmeiras e, em última instância, pessoas ­, conectando caça, guerra, xamanismo e iniciação para revelar um modelo "pneumático" da (pro)criatividade, baseado na propagação de uma energia auto-reprodutiva e em um princípio de clonagem, relevante para a compreensão da visão indígena da ancestralidade como uma 'relação' de auto-identidade. Esse modelo se opõe a um modelo (heterossexual) da reprodução como uma exteriorização de energia que envolve a abertura dos tubos e a exposição a riscos exógenos (:97-98). Vê-se como essa descrição pode ser conectada à discussão anterior.

O objetivo de Erikson é explicar a retenção pelos Matis de uma tecnologia abandonada por outros Pano seus vizinhos, e o uso da zarabatana é examinado em relação ao complexo da caça, da classificação animal e de suas armas. Somos confrontados, mais uma vez, com a conexão zarabatana-palmeiras-ancestrais, nos quadros de um dualismo (expresso no sistema de metades) que associa esses valores ao interior e ao masculino e os opõe ao exterior e ao feminino a que remetem os arcos e as relações com inimigos-estrangeiros. Mais uma vez, diferentes modos de relação e criatividade: filiação/consangüinidade, conjugalidade/afinidade.

As contribuições de Århem e Lea situam-se em um registro mais imediatamente sociológico, tratando de composições e histórias residenciais. Lançam mão também, direta ou indiretamente, da noção lévi-straussiana de Casa. Para analisar a emergência de uma categoria social e forma de organização local nova entre os Makuna, a comunidade de aldeia, Århem, evocando as duas leituras da "maloca" ou casa-grande barasana, a Descent House e a Consanguineal House, identificadas por Stephen Hugh-Jones, supõe a alternância de dois modelos indígenas de socialidade, o da descendência (patrilinearidade, hierarquia, exogamia), cuja prevalência seria subjacente à forma de organização centrada na maloca, e o da aliança (aliança simétrica, competição igualitária, endogamia local), que, realizado tradicionalmente na forma dos grupos locais de malocas aliadas, se concretizaria hoje na comunidade de aldeia. A análise da evolução e composição de diferentes comunidades makuna permite ao autor demonstrar a crescente importância dessa nova forma.

Lea, por sua vez, reafirma o argumento de que as casas uxorilocais kayapó consistem em entidades de caráter corporado, detentoras dos nomes, ornamentos e prerrogativas rituais que constituiriam os "aspectos partíveis" da pessoa; sua complementaridade define a sociedade kayapó como totalidade ideal e sua interdependência matrimonial e ritual solda empiricamente as aldeias. Esse argumento, resolutamente ancorado nas preocupações da antropologia feminista, se pretende uma crítica de interpretações que ­ como a de Terry Turner ­ lêem a uxorilocalidade centro-brasileira em termos da dominância exercida pelos sogros sobre os genros através das respectivas filhas e esposas e procura restituir à agência feminina o lugar que essas perspectivas lhe teriam recusado. Vale sublinhar o trabalho diferente que a Maison é chamada a desempenhar nos dois contextos, Noroeste Amazônico e Brasil Central. No primeiro caso, tratava-se de possibilitar a descrição do modo como a identidade categorial de um "nós exclusivo" (descendência) é temperada (pela alternância ritual e substituição histórica) por um "nós inclusivo" (aliança) que opera dissolvendo fronteiras essencializadas. No caso de Lea, é quase o oposto: constituintes da pessoa são erigidos em propriedade de grupos a que se quer restituir não apenas o caráter "corporado" mas o estatuto de partes discretas de uma totalidade predefinida que seria a "sociedade" ideal. Em outras palavras, a função do conceito é, lá, dissolver fronteiras; aqui, estabilizá-las ­ ambigüidade que aliás pode ser remetida ao desenvolvimento que o próprio Lévi-Strauss dá ao conceito de maison, como notara aliás Rivière ao tomar a idéia de Casa para pensar as sociedades das Guianas.

Menos do que a adequação ou inadequação do conceito, interessa notar como sua mobilização, sobretudo na forma das "leituras alternativas" propostas pelos tukanólogos, responde à necessidade de conceitualizar o modo como consangüinidade e afinidade operam articuladamente na constituição de coletivos na Amazônia. A questão subjaz aos capítulos seguintes, centrados no ritual. Chernela discute uma forma de diálogo praticado em cerimônias de troca entre grupos locais (nos Wanano e outros grupos tukano orientais) ligados seja por afinidade, seja agnaticamente, para revelar como fronteiras grupais concebidas como essenciais e permanentes são redefinidas por meio desses ritos. Henley, abordando o papel que, no rito de iniciação masculina dos Panare (Guianas), desempenham os panakon, visitantes de outra aldeia caracterizados por um comportamento e parafernália específicos (e selvagem), mostra-nos o modo como a construção da pessoa depende das operações rituais sobre o corpo, a centralidade desses processos do ponto de vista da reprodução social e, particularmente, a sua dependência da intervenção de diversas figuras da alteridade.

Entre estas últimas emergem, alhures nas Guianas, os feiticeiros homicidas kanaima ou itoto. O capítulo de Butt Colson é centrado no modo como os homicídios perpetrados por esses personagens (em corpo ou espírito) operam na dissolução de laços políticos e de parentesco. Whitehead descreve o complexo dos Kanaimà mais como um culto xamânico da morte, do qual ele explora dois aspectos: primeiro, sua "endosemiose", o simbolismo dessa forma de morte ritual e a desconstrução física do corpo que implica, como aspecto de uma economia política da morte que liga a sociedade a seus inimigos externos; segundo, sua "exosemiose", o modo como o culto remete a um campo mais amplo de significação que envolve outros grupos amazônicos assim como as sociedades nacionais que os cercam, revelando-o como sintoma da "localização da modernidade" e permitindo ver sua violência não apenas como destrutiva, mas como constitutiva de um certo tipo de corpo político.

O capítulo de Thomas Griffiths, sobre as relações entre cosmologia e trabalho entre os Uitoto, penetra um território relativamente pouco explorado: se, como ele mostra, as dimensões políticas e sociológicas das atividades produtivas têm sido bastante tematizadas pela etnologia tropical, o modo como o trabalho (work) envolve as relações entre humanos e não-humanos e os processos de diferenciação que sustentam a identidade dos primeiros carece ainda de maior atenção ­ e sobretudo a merece. Tomando seriamente as afirmações indígenas sobre o papel do trabalho na manutenção e reprodução das condições metafísicas e físicas (ambientais) para a existência humana, bem como na criação e retenção de um corpo e de uma identidade humanas, sua discussão é um bem-vindo exemplo do tipo de abordagem exigido pela adaptação da noção de uma economia política de pessoas a um universo como o ameríndio, onde, como advertira no início do volume Viveiros de Castro, há mais pessoas no céu e na terra do que sonham nossas antropologias (:23).

A contribuição de Lorrain, por fim, igualmente salutar, reflete sobre algumas questões epistemológicas suscitadas pelo confronto do que chama o "viés hierárquico" e o "viés igualitário" nas análises das relações de gênero na Amazônia. O esforço por limpar um terreno tão conturbado quanto já o foi aquele que vimos percorrendo até aqui merece ser continuado, para que a questão do englobamento da hierarquia pelo igualitarismo ou vice-versa, levantada pela autora ao final, possa receber uma resposta mais sofisticada, quer dizer, uma formulação mais interessante, do que as disponíveis até aqui.

O capítulo introdutório dos organizadores, nem balanço da obra de Rivière ­ o que aliás seria mesmo inapropriado, uma vez que esta continua em desenvolvimento ­ nem reflexão original sobre o estado atual do campo, pouco tem a acrescentar. De todo modo, como não pode haver melhor testemunho da fecundidade de uma obra que a amplitude e riqueza dos interesses despertados pelos objetos e conexões que propõe, esta coletânea contribui decididamente para ilustrar e manter vivo o impulso que o americanismo tropical recebeu e recebe da atividade incansável de Peter Rivière.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Nov 2003
  • Data do Fascículo
    Out 2003
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