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O fim da religião: dilemas da liberdade religiosa no Brasil e na França

RESENHAS

GIUMBELLI, Emerson. 2002. O fim da religião: dilemas da liberdade religiosa no Brasil e na França. São Paulo: Attar Editorial. 456 pp.

Marcelo Camurça

Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião/UFJF

O fim da religião, título impactante, à primeira vista parece sugerir um parentesco do livro que apreciamos com a célebre obra de Marcel Gauchet, onde este defende a "saída da religião" de sua condição estruturante da sociedade, embora se mantendo presente nas mentes dos homens. Na obra de Giumbelli, sem dúvida, pode-se estabelecer uma remissão à problemática gauchetiana, mas, para nosso autor, a idéia de "fim" está relacionada à finalidade da religião na sociedade contemporânea, e se há um sentido de finalização, este está na ruptura com a idéia de oposição entre religião e modernidade. O argumento do livro visa demonstrar que religião e modernidade entretecem uma rede viva de relações, mesmo que mediadas pelo conflito, relativizando o postulado da separação de competências.

Aliás, a chave de entrada na questão são as controvérsias que envolvem todos os agentes pertinentes às duas dimensões. Assim, Giumbelli retoma uma perspectiva (e uma metodologia) que já estava presente no seu livro anterior, O cuidado dos mortos, e que vem se tornando uma marca distintiva do seu fazer antropológico em que, além de eleger a perspectiva de explorar controvérsias, procura se demarcar de posturas "clássicas" de uma antropologia da religião que segmenta a religião em relação ao seu entorno, priorizando-a a partir de conceitos-chave como mito, rito, magia etc., e do trabalho de campo, fundado na permanência do pesquisador no meio pesquisado como forma de obter inteligibilidade de suas crenças e práticas, condição para generalizações posteriores.

Em relação à demarcação em face da primeira postura, não há na sua "etnografia" um campo ou objeto privilegiado, mas vários: minorias religiosas, Estado, associação de familiares, mídia, cientistas sociais, reunidos em torno (de forma controversa) de sua problemática. Aqui podemos situar sua démarche tanto dentro do enfoque de uma "antropologia das sociedades complexas" quanto de uma "antropologia das mediações e de códigos compartilhados" (mesmo que pela disputa e controvérsia). No que tange à demarcação vis-à-vis a segunda postura, o autor opta pelo recurso a fontes textuais e discursivas, exaustivamente trabalhadas em arquivos, bibliografia "nativa", imprensa etc., deixando claro a recusa em tomar os textos como "totalidades autocontidas e auto-suficientes" (:59) e a decisão de abordá-los em termos das condições de sua produção e dos efeitos que geram entre os agentes e na sociedade.

Além disso, o empreendimento da pesquisa dos textos realizado na França revela a desenvoltura de um pesquisador brasileiro em "trabalho de campo" (à sua maneira, bibliográfica) no exterior, o que remete a uma questão acadêmica em discussão na "antropologia brasileira": o fazer antropologia fora do país. Aliás, este é o tema de outro fascículo da mesma coleção em que se encontra inserido nosso livro resenhado: Movimentos religiosos no mundo contemporâneo, organizado por Otávio Velho, e que conta, entre outros, com um capítulo de Giumbelli. Acresce-se, ainda, a forma ousada do autor ao criticar os próprios cientistas sociais franceses, no que chama de sua "renúncia epistemológica" -no tratamento da controvérsia entre as minorias em causa, o Estado e seus acusadores -, pelo seu envolvimento nas disputas, ora complementando, ora se contrapondo ao discurso "anti-seitas" hegemônico na sociedade francesa (:176).

Por intermédio de dois estudos de caso panorâmicos - o das chamadas "seitas" na França (Cientologia, Hare Krishna, Meninos de Deus, 'seita Moon' etc.) e da (neo)pentecostal Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) no Brasil -, Giumbelli procura situar no debate sobre a "liberdade religiosa" as polêmicas que envolvem poderes públicos, setores diversos da sociedade e os próprios grupos em foco. A resultante dessa análise das controvérsias aponta para duas generalizações: a primeira visa compreender os "dispositivos de regulação do religioso" que se produziram nas sociedades modernas, particularmente a francesa e a brasileira; e a segunda, mais de fundo, busca demonstrar a relação visceral entre modernidade e religião (para além das compartimentações que aponta a "teoria da secularização"), em que a modernidade se constitui no processo de definição e balizamento da religião, e esta funciona como um dispositivo para revelar muito da sociedade moderna na qual se engendra.

Na escolha dos seus dois casos exemplares, convém notar a honestidade intelectual do autor ao afirmar não poder "assegurar que Brasil e França constituam os melhores laboratórios para pesquisar o assunto" (:92). De fato, as controvérsias propiciadas pelos grupos "suspeitos" e a sociedade maior também eclodem em diversos países e regiões do mundo, e Giumbelli inventaria uma relação extensa deles. O interessante, no caso, é a constatação de uma afinidade do método utilizado com a história de sua própria pesquisa, que não se reduz a um produto da aplicação de um modelo geral a um objeto, mas é resultado de um percurso, em que o ocasional e o singular dão a tônica para a reflexão mais geral. Sua ida à França em busca de uma bibliografia teórica para os estudos da questão apenas na realidade brasileira, a partir da constatação de quão crucial e concreta esta era também na França, ensejou a abertura de outra "frente de trabalho" empírico e a proposta comparativa.

Para o caso francês, afirma o autor, o enquadramento de um grupo como "seita" é o resultado de uma "relação de forças" (:118), fazendo-nos recordar uma formulação dos anos 70 de Nicos Poulantzas. Fruto do embate entre distintos atores sociais, há uma convergência capitaneada pelas forças majoritárias para a definição que se consagrou de "seita". A imputação deste epíteto no discurso dominante é justificada pelo argumento de que tais grupos, julgando-se resguardados pela "liberdade religiosa" e utilizando-se da "máscara" de religião, visam extrapolar suas fronteiras para os campos "terapêutico", "pedagógico", "comercial" etc., para auferirem seus verdadeiros "interesses" de lucro financeiro e de reprodução de poder (em torno de um guru). Ou, ainda, as "seitas" são vistas como produto de uma "alienação" totalitária que, confundindo os avanços civilizatórios das liberdades em distintas instâncias da sociedade, do público e do privado, resultaria no retorno a um comunitarismo aprisionador, marcado pela obrigatoriedade à "tradição" ("lei" religiosa), tudo isto trazendo resultados danosos à "ordem pública" e às "liberdades individuais".

A trajetória da ação do Estado, associado aos grupos de familiares e ex-adeptos, é meticulosamente reconstituída pelo autor, dos anos 70 aos 90, culminando com o agenciamento da legislação vigente e de uma logística entre Ministérios para detectar e monitorar as seitas (através de elaboração de listas), procurando obstaculizar o que supõem ser sua ação anti-social e antiliberdade do indivíduo. Tudo pode ser sintetizado por um subtítulo do livro, onde o autor faz um trocadilho com uma expressão foucaultiana: "vigiar é punir"! (:103)

No caso brasileiro, a caracterização "evangélicos" (:229), ou mesmo "neopentecostais" (:342), ao contrário da de "seitas", terminou sendo a terminologia pela qual a questão tomou forma -o que agrega um caráter afirmativo a ela, pois tanto recobre a maneira como são designados pela sociedade, como o modo como o grupo sob questionamento se reconhece. No entanto, para o autor, isto não elimina os mecanismos de regulação do Estado em relação a ele e a essa modalidade de religião, mas apenas expressa outra configuração de que a regulação se reveste. A ausência de uma legislação geral de regulação das religiões pelo Estado brasileiro faz com que todas as iniciativas de monitoramento e controle institucional -iniciativas que envolvem atores dos campos intelectual, jurídico, religioso e jornalístico -se realizem nos terrenos específicos das diversas conjunturas e modalidades. Nesse sentido, nem os intelectuais, repercutindo uma agenda estabelecida pelo campo social e midiático, alcançam um distanciamento da problemática em que estão inseridos. Ao seu modo acadêmico, mantêm afinidades e participam das mesmas preocupações de outros campos quanto à necessidade de enquadramento do fenômeno (:312).

Quanto à questão da regulação do religioso pela sociedade moderna, enquanto na França há coordenação, no Brasil há dispersão, para lembrar a clássica visão gramsciana da "guerra de posição" e "guerra de guerrilha". Com isso, a IURD multiplica suas pendências em várias esferas da sociedade, multiplicando também sua visibilidade e parecendo "estar em toda parte!"

O livro resulta em um tratado com suas 456 páginas compactadas e acompanhadas por uma profusão de notas que indicam esmero e rigor no trabalho e conectam a argumentação do autor com múltiplas obras de referência. Embora seja leitura para um público mais "interno" ao tema, sua narrativa, por via da reconstituição de uma seqüência de conjunturas e fatos, é envolvente e esclarecedora. Pode ser lido a partir de três entradas, uma mais geral, que problematiza o estatuto e o lugar da religião na modernidade à luz dos casos francês e brasileiro, e outras duas mais concretas, servindo tanto para interessar os estudiosos do fenômeno "new age" quanto para engrossar a vasta e recente lista de trabalhos sobre a "Igreja Universal do Reino de Deus". No primeiro caso, acrescenta a um tema em geral associado a pós-modernidade, um viés voltado para clivagens em um "campo minado", para retomar uma imagem de Patricia Birman; e, no segundo, acrescenta um olhar diferenciado aos esquemas que vêem a IURD amplificando certas características de um chamado neopentecostalismo, preferindo tomá-la como um caso emblemático que desperta distintas percepções sobre a regulação do "religioso" no Brasil atual.

Após finalizar uma densa leitura, fica uma questão ecoando: afora a abordagem empreendida por Giumbelli de mapeamento da dinâmica do "campo de controvérsias" e de sua recolocação no quadro da problemática entre religião e modernidade, uma apreciação mais substantiva e direta dos aspectos em jogo (mesmo que, e principalmente, acadêmica) conseguirá escapar ao círculo inclusivo desse campo?

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jun 2004
  • Data do Fascículo
    Abr 2004
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