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Religião como tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil colonial

RESENHAS

POMPA, Cristina. 2003. Religião como tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil colonial. Bauru, SP: EDUSC/ANPOCS. 444 pp.

João Azevedo Fernandes

Departamento de História, UFPb

Quando se observa o panorama atual da história indígena no Brasil, seja no que se refere aos livros publicados, seja no que tange aos trabalhos apresentados em congressos, é fácil perceber que este campo de estudos passa por um vigoroso processo de amadurecimento e profissionalização. Até os anos 80, pelo menos, seria quase impossível encontrar um historiador disposto a ver nos índios algo mais do que "vítimas", passivas e quase irrelevantes, do grande processo de integração do território brasileiro ao "sistema mundial".

Hoje, graças a trabalhos de autores como John Monteiro, Ronaldo Vainfas, Ronald Raminelli e Maria Regina Celestino (para citar apenas alguns historiadores), é cada vez mais difícil deixar de reconhecer que as sociedades indígenas, e suas dinâmicas sociais e culturais, representaram um fator crucial na formação da América colonial portuguesa e, por extensão, na formação da própria sociedade brasileira. É nesse contexto que devemos comemorar a publicação da tese de doutorado - vencedora, em 2003, do Concurso CNPq-ANPOCS de Obras Científicas e Teses Universitárias em Ciências Sociais - de Cristina Pompa, tese que, embora defendida em uma pós-graduação de Antropologia (Unicamp), representa uma inestimável contribuição à historiografia brasileira.

Munida de um sólido conhecimento da bibliografia antropológica, e de uma admirável proficiência no mister do historiador, a autora escreveu uma história da evangelização dos povos indígenas no Brasil colonial, tarefa a que se dedicaram, em períodos e com objetivos muito distintos, autores tão díspares quanto Serafim Leite ou Luiz Felipe Baêta Neves. Diferentemente de ambos, porém, Cristina Pompa não vê nesse processo de evangelização uma imposição - positiva ou negativa - do colonizador sobre uma massa amorfa e indefesa de indivíduos inconscientes da catástrofe que se lhes abatia.

A autora critica, com veemência, o binarismo vencedor x vencido e vê na evangelização, mais do que uma imposição, um complexo processo de traduções mútuas, no qual os missionários europeus liam as práticas e discursos indígenas com chaves de interpretação retiradas dos textos bíblicos e do paganismo clássico, enquanto os próprios índios percebiam nos missionários seres semelhantes aos seus pajés e caraíbas, com extraordinários poderes de cura e de comunicação com a alteridade. A contribuição mais original de Cristina Pompa, porém, é perceber que, durante esse longo processo de evangelização/tradução, não apenas se trocaram sentidos e imagens, mas se criaram novos paradigmas de interpretação da realidade espiritual da colônia, paradigmas que representam o surgimento de uma verdadeira lógica mestiça (para usar, tal como faz Pompa, a expressão de Serge Gruzinski).

Dessa forma, os missionários construíram - com os tijolos dos mitos e ritos nativos, e com as estruturas do paganismo clássico e do milenarismo medieval - toda uma religião indígena, com seus "deuses" (como Tupã, figura menor na cosmogonia tupi), seus dilúvios e apocalipses, e seus "sacerdotes", em uma atitude absolutamente necessária para a superação da principal dificuldade encontrada pelos missionários no Brasil: a ausência de uma religião pagã, como tinham Incas e Astecas, com a qual pudesse o cristianismo tridentino se defrontar e, gloriosamente, derrotar.

Os nativos, por seu turno, mostraram-se admiravelmente propensos a aceitar essas construções dos missionários, mas modificando-lhes os sentidos, e colocando-as para trabalhar em seus próprios termos. Assim, as "santidades" dos Tupinambá (com suas "igrejas", "papas" e "mães de Deus"), bem como a "Roma" dos tapuias (em que se adorava o "deus" Varakidzan), representam traduções indígenas dos ritos e da mitologia cristã, traduções que funcionavam como um jogo de espelhos, o qual, por um lado, ajudava a anular a exclusividade européia do contato com a alteridade espiritual e, ao mesmo tempo, contribuía para a construção de novas identidades indígenas (e mestiças) em um contexto de radical mobilidade e desestruturação sociais.

A divisão do livro em duas partes, sendo a primeira dedicada à missão entre os Tupinambá e a segunda à catequese dos tapuias, representa mais do que uma conveniência didática ou uma imposição cronológica. Pompa demonstra, com abundância de argumentos e fontes, que a segunda fase foi construída sobre as bases formuladas durante o contato com os povos de línguas tupi da costa brasileira. Quando os missionários se defrontaram com a miríade de povos que habitavam os sertões, o fizeram a partir das chaves de interpretação que haviam desenvolvido nas missões do litoral.

A própria noção de tapuia era herdeira direta da antropologia (e dos preconceitos) dos Tupinambá: os povos do sertão eram "bárbaros" por serem, em quase tudo, inversões do ser Tupinambá. Eram nômades, não cultivavam a mandioca, não bebiam cauim de vegetais cultivados (como a mandioca ou o milho), devoravam os próprios mortos e eram adeptos de um tipo de guerra voltada ao extermínio do inimigo, características que os diferenciavam dos habitantes nativos do litoral. À distinção totalizante europeu (cristão) x nativo (pagão), com a qual os missionários iniciaram seu proselitismo, sucedeu-se a dicotomia litoral (incluindo-se aí os índios aliados) x sertão, em que o segundo termo representava o lugar do pecado - um riffugium peccatorum, como diz a autora (:275) - e da desumanidade.

É nessa segunda parte, aliás, que o livro de Cristina Pompa atinge seu ponto mais alto. Ao contrário do que ocorre para os Tupinambá - em que a relativa abundância documental permitiu o surgimento de toda uma bibliografia mais ou menos especializada -, o multifacetado conjunto de povos que os próprios Tupinambá denominavam "tapuias" representou, até agora, um verdadeiro buraco negro para a historiografia. Na maior parte dos casos, os historiadores limitaram-se à difícil tarefa de tentar identificar alguns desses povos, no seio da confusão "etnonímica" de documentos e relatos de valor etnológico muito variável.

Cristina Pompa também realiza esse tipo de análise, mas vai muito mais além. De posse de documentação inédita - como a notável Relation, de Bernard de Nantes -, além de documentos já publicados, mas de difícil acesso à maioria dos pesquisadores brasileiros (como as muitas cartas jesuíticas publicadas em latim), a autora escreve algumas páginas memoráveis no campo da antropologia histórica. Sua análise da "capitulação" assinada, em 1692, pelo governador-geral do Brasil e por Canindé, "rei" dos tapuias Janduins, mostra o alcance da adaptação tapuia ao cerimonial e às regras diplomáticas dos colonizadores, mas mostra também como os próprios colonizadores adaptavam suas práticas ao sabor das circunstâncias: afinal, jamais se pensou em assinar tratados ou capitulações com os Tupinambá, durante as guerras dos séculos XVI e XVII.

É no tratamento das práticas evangelizadoras, contudo, que a metodologia utilizada por Cristina Pompa atinge seus resultados mais profícuos. Tal como ocorreu durante a experiência missionária entre os Tupinambá, os religiosos europeus procuraram, em meio às crenças "ridículas" (:348) dos índios, elementos que configurassem a presença de uma "crença", não apenas em algo, mas em alguém (:349). Pompa faz, então, uma "arqueologia" da religião dos tapuias (no caso, dos Kariri), tal como apresentada nas descrições dos capuchinhos franceses, mostrando que os ritos nativos foram "cristianizados" pelos missionários e, o que é ainda mais interessante, cristianizados a partir de uma leitura tupinizada do cristianismo.

Isto fica claro, por exemplo, quando se percebe que, nos catecismos escritos em língua kariri pelos franceses, o nome de Deus é "Tupã", enquanto Badzé (personificação tapuia da fumaça do tabaco, entendida como um veículo de comunicação entre as esferas humana e supra-humana) é chamado de "Pai Grande", o paí-guaçu da língua geral, termo pelo qual os bispos eram traduzidos no idioma dos Tupi (:352). Buscava-se, tal como foi feito entre os Tupinambá, conexões entre as "crenças" dos tapuias e as tradições judaico-cristãs, na esperança de se confirmar a tese da unidade do gênero humano e a visão dos índios como o genus angelicum, que deveria ser convertido para que se pudesse chegar ao fim dos tempos, tal como descrito pelas profecias milenaristas que tanto influenciaram o projeto evangelizador na América.

Muito mais poderia ser dito a respeito das qualidades deste livro: poderia citar, por exemplo, a belíssima descrição das formas pelas quais os nativos do sertão se apropriaram - "tapuizaram", poder-se-ia dizer - do cristianismo "tupinizado" que os missionários lhes ofereciam, bem como as excelentes análises de alguns equívocos cometidos pela antropologia e pela historiografia no trato da documentação e dos relatos sobre o contato interétnico no Brasil dos primeiros séculos. Sua desconstrução do mito da "Terra sem Mal" noção cuja popularidade na bibliografia acadêmica é inversamente proporcional ao seu lastro documental - é lapidar, bem como sua crítica corrosiva dos equívocos e omissões (às vezes deliberadas) existentes nas traduções e transcrições dos textos clássicos.

Em suma, Religião como tradução oferece-nos não apenas uma visão original a respeito de um tema crucial para a historiografia e para a antropologia histórica no Brasil, mas também abre uma série de portas para novas pesquisas que aprofundem os caminhos abertos pela autora, especialmente no que diz respeito à catequese no sertão, e a seu papel na construção da cultura e das religiosidades populares. A abertura de novos horizontes representa, a meu ver, a principal qualidade deste livro, e se é verdade que algumas obras já nascem clássicas, esta é, certamente, uma delas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jun 2004
  • Data do Fascículo
    Abr 2004
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