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Famille et individualisation

RESENHAS

SINGLY, François de (org.). 2001. Famille et individualisation. Paris: Harmattan. 2 vols. 199 pp.

Rogéria Campos de Almeida Dutra

Doutoranda, PPGAS/MN/UFRJ

Esta coletânea representa parte significativa das discussões suscitadas no colóquio internacional sobre "Família e Individualização", organizado por François de Singly - professor da Universidade de Paris V - junto com um grupo de jovens doutores e doutorandos do Centre de Recherches sur les Liens Sociaux. São dois volumes e 27 capítulos, caracteristicamente curtos e heterogêneos, que apresentam como propósito a melhor compreensão das famílias contemporâneas ocidentais em face de uma nova concepção de indivíduo, sua relação com grupos de pertencimento e, em particular, com a família.

É no percurso histórico do período moderno-contemporâneo que assistimos à consolidação do individualismo; à construção do indivíduo pelo desprendimento interior e exterior das formas de vida social em um processo gradativo, e não linear, de conquista da independência individual e da diferença pessoal. Os autores apresentam como recurso de reflexão sobre as relações entre indivíduo e sociedade nas sociedades contemporâneas a distinção entre "autonomia" e "independência" (conceitos de Alain Renaut). A "autonomia" refere-se ao desenvolvimento da autoridade fundada na razão e na vontade, com a qual o indivíduo resgata para si a responsabilidade sobre o próprio destino. A "independência" associa-se à construção do indivíduo auto-suficiente, "sem depender de ninguém", em uma atitude excessivamente autocentrada. Não são distinções estanques, mas momentos de um mesmo fenômeno que revelam a complexidade e o caráter muitas vezes paradoxal do processo de individualização. A exacerbação da independência pode gerar, em última instância, o comprometimento da própria autonomia, ao possibilitar a existência do indivíduo des-conectado, do subjetivo sem o inter-subjetivo. A própria dinâmica social apresentada neste conjunto de pesquisas nos sugere que o individualismo é vivenciado na busca do equilíbrio entre estas duas instâncias, diante do "outro".

Como bem observa F. de Singly, os indivíduos das sociedades contemporâneas ocidentais não são iguais aos das gerações precedentes, dado o imperativo de tornarem-se indivíduos originais. O mito da interioridade, a busca do "verdadeiro eu", tem como condição imprescindível o "olhar do outro". A família também se modifica para produzir esses indivíduos, apresentando dois momentos distintos, ao longo do século XX, nesse processo de modernização. No primeiro, até a década de 60, apesar de já se verificar forte tendência à nuclearização, a família ainda permanece como uma unidade totalizadora, a serviço da qual agem seus membros. A demarcação nítida de papéis vem reforçar este intuito - missão de pai, provedor; missão de mãe, a educação dos filhos e a manutenção da ordem do lar -, conferindo-lhes uma autoridade indiscutível. O segundo momento, a partir da década de 60, caracteriza-se por uma nova concepção dos indivíduos em relação a seu grupo de pertencimento, na medida em que se tornam, como membros, mais importantes que o conjunto familiar: o indivíduo original, cuja "verdadeira natureza" deve ser respeitada. Esta valorização, contudo, não representa a extinção do grupo familiar. A função deste seria justamente cuidar dessa "permanência do eu", o trabalho sobre si sendo assistido pelos outros. O espaço privado estaria a serviço dos indivíduos, composto por gerenciadores do eu individualizado, delineando-se um modelo autônomo e relacional. A autoridade parental dilui-se na noção de respeito à originalidade do ser, valorizando-se qualidades outras que não a obediência, como a iniciativa e a autonomia. Dessa forma, a educação no seio familiar deixa de definir-se pela imposição de valores, substituindo-se pela negociação e pelo diálogo. Uma tensão contínua acompanha esse novo modelo, na medida em que a família se torna simultaneamente desejada (a vida privada como espaço do cultivo do eu) e instável, pois sua duração depende da satisfação recíproca. Nas palavras de F. de Singly, não se trata somente de "estar juntos", mas de "estar juntos e livres". A liberdade constitui-se valor fundamental nesse novo contexto, marcado pela cultura psicológica. Ela é condição básica e fim último do processo de individualização, por conjugar autenticidade, independência e autonomia.

O primeiro volume, Être Soi parmi les Autres, aborda os desafios intrínsecos a se tornar um "indivíduo individualizado" no âmbito das relações sociais. Subdivide-se em três partes que procuram ilustrar situações sociais nas quais se dramatizam o diálogo constante entre o "eu estatutário" - o papel social atribuído - e o "eu íntimo" - o espaço da subjetividade, construído pelo empenho no aperfeiçoamento de si. A primeira parte trata basicamente da inserção do indivíduo adulto dentro da família, sendo esta relação marcada pela ambigüidade inerente a esta instituição, como, simultaneamente, fator fundamental para a individualização e obstáculo para sua efetivação. Para fazer validar seu projeto pessoal, os indivíduos operam com uma margem de manobra, sendo necessária a adaptação do coletivo familiar a novas normas. Os autores destacam estratégias diferenciadas de preservação da individualidade, traçadas por um sujeito consciente, de vontade própria, capaz de manter-se autêntico. A conjugação de momentos de integração conjugal com os de afirmação pessoal, fundamental para a existência do grupo familiar, é identificada em situações diversas: na construção do amor moderno, que se pretende imune a processos simbióticos pela manutenção do território pessoal; nas comunicações relacionais via telefone, que possibilitam a construção da identidade pessoal distinta do casal; no retorno compulsório dos desempregados ao espaço familiar, que precisam negociar a distância entre si e o grupo para efetivarem sua recomposição identitária; no desafio de conciliar-se a adesão e a ruptura à rotina doméstica, ao ritual das refeições, de forma que não se comprometa a autonomia; nos deslocamentos cotidianos dos membros do grupo familiar, e principalmente no sentido que estes lhes conferem, se fruto da iniciativa pessoal ou responsabilidade coletiva.

A segunda parte trata de situações concretas em que se verifica a mediação entre estes dois campos: o público e o privado. A busca de autonomia pode ser viabilizada por meio de investimentos em diferentes espaços exteriores à família, revelando-nos a presença de um ator social coerente com a busca da expressão de si como pessoa: a mediação das relações entre seus membros por uma coletividade ou instituição nas férias familiares; a relativização do pertencimento primário de mulheres imigrantes por sua participação em associações civis; a reprodução dos papéis familiares no espaço público (associações beneficentes); a mobilização familiar na trajetória profissional de filhos de imigrantes.

A situação conflitiva vivenciada por idosos no seio de instituições tais como as casas de repouso é analisada na terceira parte, que marca o confronto existente entre a individualidade e os regulamentos necessários para a vida em comum. Diante da padronização instituída, o reconhecimento pessoal se estabelece através da relação com a família, demarcando-se a singularidade pelo grupo de pertencimento.

A afirmação de si como ser original não se restringe a um momento; ao contrário, percorre todas as idades. O conhecimento de si é um processo infindável, e por isso envelhecer não deve excluir a exploração de si. Essa busca de autenticidade, contudo, gera contradições, uma vez que sua exacerbação potencializa a desestabilização relacional. No segundo volume, Être Soi d'un age à l'autre, são investigados os processos da formação de si nas diferentes fases da vida. A primeira parte dedica-se à análise da construção da norma de individualização na infância. A adoção é tema de dois capítulos, os debates parlamentares sobre a possibilidade legal de ocultamento da origem materna (em oposição ao direito infantil de conhecer sua origem) e a irreversibilidade da adoção, que de processo voluntário torna-se, depois de efetivada, compulsório. Benoît Heilbrunn discute o processo de individualização da criança em termos econômicos: o respeito à autonomia confere-lhe não só poder de compra como também de influência sobre o consumo familiar. Muriel Darmon examina, a partir da literatura "psicológica" de aconselhamento aos pais, o processo de construção da diferença entre gêmeos do mesmo sexo.

A segunda parte trata particularmente da individualização dos jovens em relação a seus pais. Nas situações em que esses moram com a família, observa-se que os momentos em que os pais se ausentam são estratégicos para a utilização tanto do espaço coletivo quanto do pessoal. A cerimônia de casamento é uma das possíveis formas de se vivenciar a autonomia, quando os jovens noivos articulam diferentes grupos de pertencimento. O processo de individualização dos jovens pode ser encorajado e endossado pela própria sociedade, como acontece na Suécia, onde o apoio do Estado para este projeto substitui o apoio familiar.

A individualização em todas as idades é o tema da terceira parte, cuja análise está centrada na recomposição do vínculo intergeracional em diferentes contextos. A alternância entre autonomia e dependência nas relações familiares durante visitas aos museus, a aproximação e o afastamento estratégicos do papel de avó e as preferências afetivas, a questão do afeto construído entre avós e netos, são temas contemplados, demonstrando-nos a força da norma de individualização que se impõe aos indivíduos.

A sociologia da família pretende não se contentar somente em observar as mudanças ocorridas durante a segunda metade do século XX, mas fazê-lo segundo uma orientação teórica. Este talvez seja o maior mérito deste livro, dando, inclusive, maior visibilidade ao trabalho de jovens pesquisadores.

De caráter eminentemente sociológico - a ênfase na dimensão das interações sociais -, este trabalho em muito se enriqueceria se houvesse maior preocupação comparativa. Em primeiro lugar, relacionando individualismo com seu oposto complementar, o holismo. O individualismo, como ideologia hegemônica da sociedade moderna, pode atuar como horizonte, muitas vezes almejado, mas nem sempre conquistado, por diversas circunstâncias englobantes, o que se verificaria pela análise dos processos sociais, não somente como sistemas de atitudes, mas também como sistemas de valores. Em segundo lugar, a comparação com outras sociedades ocidentais protegeria o livro da freqüente referência às representações de setores das camadas médias letradas e cultivadas na França como "a" representação ocidental da modernidade, o que nos causa certo estranhamento, aqui na América Latina, acostumados que estamos à convivência visível de formas outras, mais variadas, do processo de modernização.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jun 2004
  • Data do Fascículo
    Abr 2004
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