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Etnodesenvolvimento e políticas públicas; Estado e povos indígenas; e Além da tutela: bases para uma nova política indigenista

RESENHAS

SOUZA LIMA, Antonio Carlos de, e BARROSO-HOFFMANN, Maria (orgs.). 2002. Etnodesenvolvimento e políticas públicas; Estado e povos indígenas; e Além da tutela: bases para uma nova política indigenista. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria. 3 vols. 160 pp., 109 pp., 124 pp.

Stephan Schwartzman

Environmental Defense

Em menos de uma geração, os povos indígenas do Brasil - e da Amazônia brasileira em particular - passaram da iminência de extinção, situação descrita no panorama traçado por Darcy Ribeiro em 1957, à conquista do reconhecimento de seus direitos sobre 12% do território nacional, incluindo mais de 20% da Amazônia. No censo de 2000, a contagem oficial da população indígena mais que dobrou, quando 400 mil habitantes citadinos aproveitaram a oportunidade para se declararem índios - algo inimaginável há algumas décadas. Os volumes Etnodesenvolvimento e políticas públicas; Estado e povos indígenas; e Além da tutela, todos subintitulados Bases para uma nova política indigenista e organizados por Souza Lima e Barroso-Hoffmann, reúnem observações e reflexões de estudiosos, juristas e indigenistas com ampla experiência, compreensão crítica e participação direta nessa notável mudança. O grupo de autores inclui muitos dentre aqueles mais comprometidos com esses avanços e com o esforço de garantir sua consolidação, bem como com a visão, traçada na Constituição de 1988, de uma nova base para a relação entre sociedade nacional e povos indígenas - base esta que, na prática, permanece ainda mais virtual que real. Fruto de um seminário realizado em 1999, na conclusão do projeto Política Indigenista e Políticas Indígenas no Brasil: Um Mapeamento Prospectivo, financiado pela Fundação Ford e voltado para alimentar os debates em curso sobre a política indigenista, esta trilogia representa um sumário do estado-da-arte do pensamento antropológico e jurídico sobre esses temas.

Embora o seminário mencionado tenha reunido líderes indígenas, representantes de agências doadoras e outros participantes cujas contribuições não foram publicadas, isso não é em parte alguma explicado. Fica-se assim com a falsa impressão de que os organizadores optaram por discutir as bases para uma nova política indigenista entre, exclusivamente, indigenistas profissionais, sem fornecer razões para essa escolha. Sem dúvida, a opção por publicar apenas estes trabalhos, e não as demais contribuições, pode ser perfeitamente razoável, mas deveria ter sido melhor explicada.

Os três volumes abarcam um vasto terreno, e resultam em um importante recurso para a comunidade acadêmica, assim como para o governo, entidades de assistência e ONGs envolvidas na política indígena. Os artigos sobre direitos jurídicos e legislação são particularmente fortes. Os textos de Araújo e Leitão sobre os direitos indígenas pós-1988, de Juliana Santilli sobre a proteção do conhecimento indígena da biodiversidade (incluindo um catálogo da legislação e das políticas nacionais e internacionais correntes), de Aurélio Rios sobre a questão fundiária, e de Carlos Marés sobre a Constituição, serão por muito tempo referências obrigatórias em suas respectivas áreas. Atias, Mendes e Verdum também fazem contribuições importantes à análise e avaliação da assistência internacional aos povos indígenas. O artigo de Pacheco de Oliveira lança uma luz muito bem-vinda sobre o obscuro processo de consulta à sociedade civil na formulação de políticas do Banco Mundial. Azanha e Santilli sugerem novas e bem ponderadas abordagens para a organização do apoio e financiamento de projetos indígenas. As introduções sintéticas de Souza Lima e Barroso-Hoffmann enquadram com eficiência as questões em seus contextos intelectuais e históricos.

Diversos temas atravessam os três volumes. Um deles é a separação radical entre a situação dos povos indígenas na Amazônia, de um lado, e fora dela, de outro - como nota Carlos Marés, a situação destes últimos é bem mais desesperadora, em termos de conflitos fundiários, abuso de direitos humanos, violência e condições de vida drasticamente empobrecidas (vol. 3:55). Outro tema é o da assistência internacional, oficial e não-oficial, aos povos indígenas. O fato de os grupos amazônicos serem relativamente menos pobres e marginalizados que aqueles do Nordeste e do sul do país reflete, como notam vários autores, a concentração da assistência internacional na Amazônia. Mesmo ali, porém, essa assistência é, sob vários aspectos, problemática: como dizem Souza Lima e Barroso-Hoffmann: "é necessária uma ação concertada entre as fontes de financiamento em seus variados perfis e as demandas indígenas reais: fornecer recursos para que as sociedades indígenas cumpram os destinos desejados pelos países doadores é a marca mais segura da (ir)racionalidade que permite a auto-reprodução do desenvolvimentismo sob novas roupagens" (vol. 1:28) Ou, em outras palavras, como será que índios e doadores compreendem uns as intenções dos outros, quando se encontram na floresta de projetos e parcerias que vêm florescendo desde o fim dos anos 80? Giannini levanta a mesma questão pela outra ponta, detalhando os debates que conduziram ao projeto xikrin de manejo da exploração do mogno: "Explicitamos o desempenho dos diferentes agentes sociais no contexto da sociedade Xicrin. Cada representante [ ] tem uma proposta para os índios atrelada a um jogo de interesses" (vol. 1:112) A questão do que índios, indigenistas e doadores pensam ser os interesses uns dos outros chama a atenção para um imenso campo potencial de investigação antropológica, o qual, tanto quanto sei, permanece praticamente intocado pela literatura (o ensaio de Souza Lima, "Problemas de qualificação de pessoal para novas formas de ação indigenista" [vol. 2] constitui, sob vários pontos de vista, uma notável exceção). Um conceito que precisaria ser examinado em uma tal investigação, também central para as discussões das políticas nessa área, é o de "sustentabilidade".

Os interesses nas áreas indígenas da Amazônia por parte dos países doadores do Programa Piloto do G7 - e também, expressamente, do Banco Mundial - estão hoje, em larga medida, ligados à idéia de sustentabilidade - uma noção, como notam Souza Lima e Barroso-Hoffmann, de linhagem mais distinta e recente que "etnodesenvolvimento". A razão pela qual mais dinheiro internacional vai para a Amazônia do que para qualquer outra parte é que os países doadores e os bancos multilaterais foram, nos anos 80 e 90, levados à conclusão de que proteger as terras indígenas seria bom para a floresta. A preocupação ambientalista com as terras indígenas precede, de fato, a "aliança dos povos da floresta" que Souza Lima e Barroso-Hoffmann (vol. 1:15) várias vezes mencionam. A primeira audiência no parlamento americano sobre o impacto ambiental de projetos de desenvolvimento financiados por bancos multilaterais, em 1983, apresentou, entre outros, o antropólogo David Price falando da situação dos Nambiquara. A mesma preocupação esteve presente ao longo de todas as campanhas ambientalistas norte-americanas junto aos bancos de desenvolvimento multilaterais desde então. Os organizadores da trilogia argumentam que, em virtude da virada ambientalista das agências doadoras, "[ ] pouco a pouco a especificidade dos problemas dos povos indígenas, assim como as suas soluções, foi equacionada sob a condição de conservação e utilização racional e sustentável do meio ambiente com ênfase quase exclusiva na região e nas populações indígenas amazônicas, em detrimento da pluralidade de situações indígenas e ecológicas existentes no Brasil" (vol. 1:15.). Isso parece, curiosamente, supor que se os ambientalistas não tivessem assumido a luta pelos direitos territoriais indígenas na Amazônia, a pluralidade de situações teria sido melhor abordada pelas agências de desenvolvimento e pelo governo. De todo modo, enquadrar os direitos fundiários indígenas como um problema ambiental (o que indubitavelmente são) não resolveu, como notam vários autores, o dilema da negligência oficial das áreas indígenas não-amazônicas. Mas isso cria um dilema correspondente para as próprias bases de apoio ambientalistas que levaram Paulo Paiakan ao Banco Mundial e Davi Yanomami às Nações Unidas, em defesa da proteção da floresta e dos direitos indígenas. O destino das terras indígenas da Bahia ou do Mato Grosso do Sul, em termos políticos e legais, é tão relevante para o futuro das terras indígenas da Amazônia quanto aquele das terras do Pará, e isso depende, em última instância, da vitalidade e integridade dos povos e culturas que as defendem. O movimento ambientalista e as agências doadoras precisam ir além da mentalidade que conduziu a Rainforest Action Network a recusar um pedido de financiamento do Conselho Indígena de Roraima porque Raposa do Sol não fica na floresta tropical A pobreza absoluta e a marginalização social não são de modo algum bases para o desenvolvimento sustentável, e, no final das contas, as terras indígenas sobreviverão ou cairão todas juntas. Nesse sentido, o etnodesenvolvimento deveria ser visto como uma condição da sustentabilidade.

O ponto comum de todos os ensaios reunidos nesta trilogia é a idéia de autonomia indígena. Etnodesenvolvimento, direitos coletivos, educação intercultural específica, tudo isso tem como objetivo último preservar a possibilidade de que os próprios povos indígenas escolham - na medida em que é dado a qualquer povo fazê-lo - seu futuro coletivo. Gilberto Azanha cita uma frase contundente de Iara Ferraz: "E o desafio permanente consiste em se reproduzirem como sociedades etnicamente diferenciadas e lidar, ao mesmo tempo, com condições materiais de existência cada vez mais adversas e multifacetadas" (vol. 1:31). O complemento disso é expresso na crítica de Pacheco de Oliveira da política do Banco Mundial para os povos indígenas: "Falta nos documentos alguma afirmação mais positiva [ ] indicando a importância das sociedades indígenas no mundo contemporâneo, qualificando a preservação de seu patrimônio cultural e a sua sociodiversidade como dever moral e intelectual da humanidade" (vol. 3:119) Ferraz está indubitavelmente correta em dizer que as condições materiais de existência dos povos indígenas se tornarão cada vez mais difíceis - a pressão sobre suas terras, bem como aquelas exercida pelos interesses que buscam obter acesso a seus recursos naturais, se tornarão maiores, não menores, para considerar apenas uma das dimensões do problema. A afirmação de Pacheco de Oliveira explica, assim, a organização dos volumes: o problema dos povos indígenas é a nossa sociedade, não as sociedades deles. Se tal compreensão tem sido explícita na antropologia brasileira desde Darcy Ribeiro, permanece o fato de que reformular a política indigenista é uma questão nacional, uma tarefa que cabe à sociedade majoritária. Mas, afinal, a política indigenista sempre foi um assunto menor no contexto das relações mais gerais entre nossas sociedades e minorias indígenas.

O que está faltando nessa discussão é alguma análise da política antiindigenista - o PPA, os mercados de soja, o desenvolvimento hidrelétrico, para não mencionar a grilagem, o narcotráfico e a extração ilegal de madeira -, assim como das perspectivas de alterar, ou pelo menos de influenciar substantivamente, a matriz mais ampla de forças reunidas contra os projetos de autonomia dos povos indígenas. Em última instância, a não ser que possamos conceber a possibilidade de tornar nossas próprias sociedades de mercado globalizadas mais sustentáveis e eqüitativas, todos os projetos de conservação/desenvolvimento integrados existentes no universo serão de pouca valia para a autonomia e sustentabilidade das sociedades indígenas. O problema não é, como afirma Paul Little, que imaginamos os índios como "selvagens ecologicamente nobres" (vol. 1:40), mas, antes, que falhamos em nos imaginar como outra coisa além de simples bárbaros sociais e ecológicos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jun 2004
  • Data do Fascículo
    Abr 2004
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