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Moinhos de vento e varas de queixadas: o perspectivismo e a economia do pensamento

Resumos

O artigo passa em revista uma série de confrontos entre o que poderíamos chamar de percepções "perspectivistas" e "naturalistas" do mundo: o processo de cristianização do ocidente medieval, o declínio da magia européia, o apogeu e crise da caça às bruxas no início da Idade Moderna e o argumento de um clássico, o Dom Quixote de Miguel de Cervantes. Trata-se, em cada caso, de motivos característicos da grande narrativa do triunfo da razão e do contraste entre o pensamento racional e seus contrários que, examinados em detalhe, mostram porém a coexistência de pensamentos, o caráter imediato e reversível de suas transformações. A noção de perspectivismo permite assim agilizar a descrição histórica das reformas epistemológicas e dessubstancializar as noções antropológicas de "racional" e "não-racional". No final do texto são sugeridas algumas vias de estudo sobre o encontro entre os xamanismos ameríndios (o universo do qual é tomada a noção de perspectivismo tal como aparece no artigo) e suas reelaborações recentes.

Perspectivismo; Literatura; Cervantes; Cosmologia; Ocidente


The article reviews a series of confrontations between what we could dub 'perspectivist' and 'naturalist' perceptions of the world: the process of Christianization of the medieval west, the decline of European sorcery, the apogee and crisis of witch-hunting at the dawn of the Modern Age and the publication of Miguel de Cervantes' Dom Quixote. Each case deals with themes characteristic of the grand narrative of the triumph of reason and the contrast between rational thinking and its opposites which, when examined in detail, actually reveal the co-existence of modes of thinking, as well as the immediate and reversible character of their transformations. The notion of perspectivism thus enables a more nuanced and versatile historical description of these epistemic reforms and the de-substantialization of anthropological notions of the rational and the irrational. The text concludes by suggesting some ways to study the encounter between Amerindian shamanisms (the universe from which the notion of perspectivism as it appears in the article is taken) and their recent re-elaborations.

Perspectivism; Literature; Cervantes; Western culture; Cosmology


ARTIGOS

Moinhos de vento e varas de queixadas. O perspectivismo e a economia do pensamento* * No que se refere à sua "coda ameríndia" este texto está baseado essencialmente nas minhas pesquisas de campo entre os Yaminawa em 1993, auspiciadas pela Fapesp, e entre os Yawanawa em 1998, dentro do projeto TSEMIM financiado pela União Européia. A Miguel Carid e Laura Pérez, alunos do PPGAS-UFSC, devo valiosas informações complementarias em ambos casos. Agradeço também a MCN sua leitura, seus comentários e correções à primeira parte do artigo.

Oscar Calavia Sáez

Oscar Calavia Sáez é professor de antropologia do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFSC. E-mail: <occs@uol.com.br>

RESUMO

O artigo passa em revista uma série de confrontos entre o que poderíamos chamar de percepções "perspectivistas" e "naturalistas" do mundo: o processo de cristianização do ocidente medieval, o declínio da magia européia, o apogeu e crise da caça às bruxas no início da Idade Moderna e o argumento de um clássico, o Dom Quixote de Miguel de Cervantes. Trata-se, em cada caso, de motivos característicos da grande narrativa do triunfo da razão e do contraste entre o pensamento racional e seus contrários que, examinados em detalhe, mostram porém a coexistência de pensamentos, o caráter imediato e reversível de suas transformações. A noção de perspectivismo permite assim agilizar a descrição histórica das reformas epistemológicas e dessubstancializar as noções antropológicas de "racional" e "não-racional". No final do texto são sugeridas algumas vias de estudo sobre o encontro entre os xamanismos ameríndios (o universo do qual é tomada a noção de perspectivismo tal como aparece no artigo) e suas reelaborações recentes.

Palavras-chave: Perspectivismo, Literatura, Cervantes, Cosmologia, Ocidente

ABSTRACT

The article reviews a series of confrontations between what we could dub 'perspectivist' and 'naturalist' perceptions of the world: the process of Christianization of the medieval west, the decline of European sorcery, the apogee and crisis of witch-hunting at the dawn of the Modern Age and the publication of Miguel de Cervantes' Dom Quixote. Each case deals with themes characteristic of the grand narrative of the triumph of reason and the contrast between rational thinking and its opposites which, when examined in detail, actually reveal the co-existence of modes of thinking, as well as the immediate and reversible character of their transformations. The notion of perspectivism thus enables a more nuanced and versatile historical description of these epistemic reforms and the de-substantialization of anthropological notions of the rational and the irrational. The text concludes by suggesting some ways to study the encounter between Amerindian shamanisms (the universe from which the notion of perspectivism as it appears in the article is taken) and their recent re-elaborations.

Key words: Perspectivism, Literature, Cervantes, Western culture, Cosmology

Os guias de leitura dos clássicos caem com freqüência em uma paródia involuntária. E as paródias involuntárias dessa paródia complexa e cheia de intenções que é o Quixote têm sido, em geral, simples e sisudas em excesso. A mais antiga é a que entende o livro como uma sátira contra os romances de cavalaria. De fato, é esse o propósito manifesto do autor já no prefácio, e os contemporâneos parecem ter lido sua obra (um grande sucesso de vendas) desse modo. Mas essa interpretação afunda na obviedade: se, no mesmo ano (1605) em que sai a público a primeira parte do livro, as figuras de Dom Quixote e Sancho já aparecem como máscaras em festas de estudantes, se paródias da cavalaria andante já existiam na época, é porque a matéria já estava carnavalizada1 1 A leitura do Quixote que apresento aqui deve muito a uma dessas guias, a de Martín de Riquer (1970) que, apesar de ser enfática nessa interpretação do Quixote como sátira que estou a rejeitar, oferece um útil roteiro de leitura, oferecendo a profanos em filologia (como o autor destas páginas) informações sobre o contexto, sobre as sutilezas do texto, etc. Evitarei citar a cada momento, no meu resumo do Quixote, essa fonte, que de outro lado, devido à fidelidade ao texto que se supõe própria da profissão, evita no geral exegeses mirabolantes. Não é esse o caso de Américo Castro (2002) filólogo também, mas filólogo talvez por falta de uma antropologia espanhola condizente com a sua imaginação. Dele está tirada a ênfase na subjetividade como clave do Quixote, e sua interpretação se estende também sobre questões que apenas serão sugeridas aqui, como a inserção dessa literatura e dessa subjetividade no universo dos outcast conversos espanhóis. De resto, e abundando na interpretação satírica do romance, que como dissemos não é inferida, mas tomada literalmente deste, deveríamos lembrar que ela não parece ser incompatível com o aberto elogio (cf. capítulo VI) de algumas das obras mais características do gênero de cavalaria, incluído o seu paradigma, o Amadis de Gaula, que deveria ser o objeto por excelência do ataque. . O autor do Quixote apócrifo2 2 O êxito editorial do primeiro Quixote suscitou a aparição de uma continuação, cujo autor (sobre o qual tem se tecido hipóteses infindáveis) assinava com o pseudônimo de Alonso de Avellaneda. O episódio foi importante, sobretudo porque empurrou Cervantes a escrever a segunda parte do livro, muito mais complexa e enriquecida, num traço "vanguardista", com os comentários do personagem à sua falsa biografia. , comentando uma das aventuras do cavaleiro, revela-nos que era comum dar espaço a loucos nos torneios festivos de começos do século XVII. Zombar da épica não era mais novidade. Compreende-se que Cervantes justificasse uma obra extravagante com um álibi moral, mas não é cabível que esbanjasse inventiva, e se tornasse um clássico, arrombando portas abertas.

Menos trivial, embora algumas vezes mais obtusa, é a interpretação legada pelo romantismo, que se perpetua na acepção atual do termo "quixotesco": as aventuras do fidalgo encenariam o duelo entre o ideal e a razão prática, o sonho e a realidade etc. O dilema pode se tornar deprimente quando, em aliança com um certo nacionalismo espanhol — talvez reagindo ao trauma de ver um louco consagrado como herói e arquétipo pátrio —, passa a identificar o pólo do ideal e o sonho com a Espanha castiça, derrotada sob os golpes de uma Europa moderna, pragmática e burguesa (é o que faz, por exemplo, Miguel de Unamuno). Apesar do seu entusiasmo, é uma leitura pouco gentil com uma obra extraordinariamente ambígua, e que de resto teve seus seguidores mais ávidos não na Espanha, mas na Inglaterra, cabeça do pragmatismo e da modernidade. Pouco gentil também com o autor, marginalizado pelo status quo político e literário de sua época, pouco entusiasta de Felipe II, da Inquisição e do regime castiço da idade clássica espanhola. Dom Quixote, longamente celebrado como uma figura moral pró-moderna ou antimoderna, é um personagem cuja complexidade deveria talvez lhe garantir um lugar não na história do bom senso ou dos bons sentimentos ocidentais, mas, entre outras coisas, da reflexão sobre o conhecimento.

O Quixote como drama do sujeito

Dom Quixote, todo mundo sabe, é um solteirão já de idade que, mergulhado na leitura de livros de cavalaria — uma literatura não tão distante, malgrado o óbvio anacronismo, do atual universo dos Jedis, de Tolkien ou dos role games —, passa a ver as coisas de outro modo: em lugar de moinhos movidos pelo vento, vê gigantes movendo os braços; em lugar de rebanhos de carneiros, vê exércitos entrando em batalha; em lugar de odres de vinho, cabeças ameaçadoras de mais gigantes; e em lugar de um fidalgo pobre, fraco e provinciano, vê em si mesmo um cavaleiro andante.

Mas essa alienação não é mecânica. Na maior parte do tempo, o fidalgo é perfeitamente racional, e inclusive um exemplo de bom senso, o que os personagens do romance reconhecem melhor que o leitor extraviado por leituras convencionais. As percepções alteradas de Dom Quixote não se repetem indefinidamente. De fato, limitam-se a alguns episódios — iniciais e relativamente poucos, dada a extensão do livro —, e o protagonista evolui4 4 Isso faz a enorme diferença entre o Quixote de Cervantes e alguns predecessores (como o personagem do "Entremés de los Romances", que se identifica vertiginosamente com uma série infindável de heróis, ou o Quixote "apócrifo" de Avellaneda, reduzido a um desastrado guignol de disparates e pancadarias). Depois dos primeiros capítulos, em que a identidade do cavaleiro se mostra instável, Dom Quixote age com um certo sistema. Sobre os antecedentes da paródia cervantina cf. Mancing 1975. . No começo da segunda parte do livro (publicada em 1616), assiste-se a uma inversão dos papéis consagrados na primeira. Sancho, o rústico "escudeiro" do fidalgo, fracassa na tarefa, que o seu amo lhe tinha encomendado, de entregar uma carta a Dulcineia, sua amada imaginária; mas mente, e diz tê-la entregado. Para ocultar a falta, quando Dom Quixote teima em se encontrar de fato com a amada, improvisa um estratagema: vendo aproximar-se um grupo de camponesas, Sancho anuncia que se trata de Dulcineia e suas damas. O diálogo que se segue é uma inversão exata dos diálogos que Dom Quixote e Sancho mantêm na primeira parte, nas aventuras dos moinhos ou dos rebanhos: Sancho diz ver princesas onde Dom Quixote, desta vez porta-voz do bom senso, vê camponesas, que além de tudo cheiram a alho. Sancho, com a lição bem aprendida, resolve explicar que esse equívoco deve ser fruto do mesmo encantamento que outrora tinha revelado os gigantes como moinhos ou odres de vinho: Dulcineia está encantada, transformada em lavradora. Tão logo seus interlocutores identificam a chave de sua loucura, Dom Quixote não precisa mais ser louco, porque todo mundo — o seu escudeiro, os seus vizinhos e os aristocratas blasés com que topa na sua caminhada — conspira para trazer suas fantasias para o mundo real. É mais que dúbio que isso constitua um duelo entre realidade e ficção. Isso acontece no apócrifo de Avellaneda, cuja trama reitera até o fastio encenações grotescas às quais o cavaleiro responde como um autômato crédulo até acabar encerrado em um hospício. O Dom Quixote autêntico — o de Cervantes — não é refutado, mas vencido dentro do próprio roteiro que ele conseguiu impor, derrotado em duelo por um bacharel cuja propensão a se fantasiar de cavaleiro andante, com o pretexto de trazer Dom Quixote de volta ao senso comum, resulta suspeita. A seu modo, o fidalgo triunfa sobre os bacharéis e os duques que dele zombam, fazendo-os recriar ad hoc o mundo que ele está postulando. Se a derrota e a melancolia do final parecem expressar a vitória da dura realidade, não seria demais lembrar que a literatura arturiana, modelo último de Dom Quixote, é também o relato de um fracasso: o reino de Artur dissolve-se, seus cavaleiros acabam sua vida como penitentes e a Igreja fica como guardiã única dos símbolos.

É bom ressaltar que os verdadeiros antagonistas de Dom Quixote não são, a rigor, os autores das burlas, senão aqueles que se negam a participar do jogo, especialmente clérigos que, como o capelão dos duques, estendem à mascarada a mesma censura que a Igreja esgrimia contra a desenfreada imaginação dos romances de cavalarias5 5 O pendant ortodoxo de Dom Quixote é Ignácio de Loiola, que decide ser santo lendo vidas de santos: o paralelo não passou desapercebido aos comentaristas, especialmente o basco e católico Unamuno. As vidas de santos ­uma literatura, aliás, não menos descabida que a que secou o cérebro do cavaleiro­, são o antídoto que alguns personagens do livro recomendam para a intoxicação literária de Dom Quixote. Sobre Loyola e a épica cf. Garcia Mateo 1991. . A antítese não se dá entre a imaginação e a realidade crua, mas entre dois contrapontos imaginários dessa realidade: o da epopéia cavaleiresca e o da religião. É interessante destacar que o universo religioso, registro dominante da sociedade espanhola da época (mas um campo minado para escritores independentes), está singularmente ausente da obra. Dom Quixote só se dedica verdadeiramente à religião na hora da morte, já de volta à sensatez.

O dilema de Dom Quixote é perpendicular à dicotomia realidade/representação, que ocupa o centro da reflexão européia do século XVII. Em duas ocasiões o fidalgo enfrenta-se não com a "realidade", mas com representações teatrais: teatro de títeres — muito semelhante aos que ainda hoje podem ser vistos em ação no teatro de puppi na Sicília — e o auto sacramental de "Las cortes de la muerte". Em ambos os casos ele sabe perfeitamente que se trata de teatro, e até aproveita a ocasião para dar fé de empirismo: "es menester tocar la apariencia con las manos para dar lugar al desengaño", embora em algum momento caia na tentação de entrar ele mesmo na ação. A loucura de Dom Quixote pouco tem a ver com a amálgama barroca da vida com o sonho ou com o teatro, essenciais em Calderón ou Shakespeare; ele, definitivamente, não é um cartesiano, nem todo o contrário. O que lhe interessa é descobrir agência, mesmo nos objetos inertes.

O de Dom Quixote é um universo de sujeitos, em que mesmo os moinhos e os carneiros, produtos passivos por excelência da física aplicada e da zoologia aplicada, são convertidos em protagonistas violentos. Atrás dessa interpretação está a certeza de que as coisas não têm uma natureza estável, mas sim um ser que depende de um desígnio próprio. Atrás de cada moinho de vento ou de cada odre de vinho que se mostra como gigante, para se reduzir depois à matéria, está a vontade de um mago, capaz de alterar o ser de todo o existente; e diante desse demiurgo malévolo ergue-se o cavaleiro-herói capaz de identificar suas tergiversações. O mundo em que Dom Quixote traça suas aventuras é um mundo de conflitos pessoais — raptos, tiranias ou prisões —, travados entre pessoas, no qual não têm lugar os conflitos mediados pelo poder objetivo das "coisas" (as riquezas, ou as condições inatas da natureza humana).

O dramatismo do livro reside no fato de que toda essa subjetivação do mundo se destaca contra o pano de fundo de uma outra interpretação que poderíamos chamar naturalista, nesse sentido agro que a palavra tomará no século XIX. Os seus sinais encontram-se já no próprio título original: se Dom Quixote é um "engenhoso fidalgo", anotam os filólogos, é em alusão a uma das categorias da caracterologia da época (Martín de Riquer 1970; Halka 1981; Heiple 1979); esse dessecamento do cérebro devido às leituras pode nos parecer uma metáfora expressionista, mas tem um sentido bem mais concreto na fisiologia contemporânea dos humores. Dom Quixote, nesse caso, teria se transformado em um "louco da cultura" porque já haveria uma causa "física" para essa degeneração. À margem dessas pinceladas de paleopsicologia, a Mancha onde a ação acontece — um cenário longe das florestas nórdicas povoadas de símbolos da Matéria de Bretanha — é essa paisagem rasa de prosaísmo desolador, feita de necessidades básicas, miséria e cinismo, que costumamos identificar à realidade dura e crua. Se a narrativa naturalista do século XIX celebrou essa percepção como o começo de uma noção científica do ser humano, as "novelas picarescas" do XVII espanhol, conquanto artificiosas e sem álibis científicos, já tinham pintado essa mesma paisagem de marginais, fracassados e cínicos, bem no século em que é cunhada a noção moderna de natureza. A obra de Cervantes não é melhor que elas só porque sabe retratar a natureza humana com mais fidelidade que outros, senão também porque não se deixou fascinar por ela.

Os críticos literários — seguindo a pauta de Ortega y Gasset (1914), que toma de Nietzsche o conceito —, têm chamado "perspectivismo" a esse modo de relação com a realidade que descobrimos em Dom Quixote. O mérito que coloca a obra de Cervantes no nascedouro do romance moderno está aí resumido: a trama do relato não é mais responsabilidade de algum destinador (Deus, a Fatalidade, a Natureza), mas do encontro de uma multidão de sujeitos, cada um com sua intenção e com sua verdade. A intriga do livro é mínima, e a rigor dissolve-se em um desfile de episódios quase independentes: o que movimenta a obra é a flutuação dos pontos de vista. É por adotar um certo olhar sobre as ações, mais do que pelas ações como tais, ou pelos seus atributos natos, que os personagens, inumeráveis, ganham sua individualidade6 6 As excelências renovadoras do Quixote, aqui resumidas, seguindo a Ortega e Castro, ao seu "perspectivismo" tem sido desdobradas pela maior parte dos críticos ­nem sempre seduzidos por essa démarche "filosófica"- em uma pluralidade de achados sobre o estatuto da ficção na obra, sobre o uso da língua e da psicologia, etc. O Quixote aqui apresentado é um Quixote obviamente reduzido para o uso comparativo que seguirá. .

Mas o perspectivismo tem outras versões. Toda a descrição anterior das visões quixotescas não deixará de evocar aos familiarizados com a literatura etnológica o conceito de perspectivismo ameríndio que Viveiros de Castro (1996) tem definido como o corolário etnoepistemológico de uma cosmologia animista cujo tecido se encontra nos mitos e cujo formulador por excelência é o xamã. O xamã (tantas vezes descrito como um louco pelos seus comentadores) é capaz também de ver sujeitos onde os outros homens só costumam ver objetos, em particular, ele sabe ver os animais como pessoas. Porém, à diferença do que em princípio acontece com Dom Quixote, essa sua visão é entendida por seus concidadãos como uma visão privilegiada, gnoseologicamente superior à dos profanos.

Dom Quixote — será necessário descartar uma simplificação tão extravagante? — não é um xamã. E não só porque os seus contemporâneos lhe neguem a primazia na interpretação da realidade — como vimos, ele consegue reverter isso até certo ponto. O perspectivismo dos xamãs ameríndios, sempre segundo a exposição de Viveiros de Castro, situa a especificidade dos seres no corpo; o corpo é ativo, é a sede viva dos afetos. Não é o caso de Dom Quixote: a sua aventura situa-se dentro de um paradigma que estabelece a pesada fisicidade do corpo, e em que o ponto de vista é função de uma alma incorpórea. O corpo de Dom Quixote é um corpo com necessidades, que precisa se alimentar e descansar, que fica doente, vomita ou tropeça; de outro lado, é um corpo indiferente, que não intervém nos amores de Dom Quixote, tristemente ascéticos, e que atravessa sem fraturas nem danos maiores uma série terrível de espancamentos, apedrejamentos, feridas, quedas. O corpo de Dom Quixote — bom cristão, afinal — é uma carga que não mostra nem demonstra nada. Levado às suas últimas conseqüências, Dom Quixote transforma-se no Cavaleiro Inexistente de Ítalo Calvino, uma armadura vazia mas animada pela vontade. A única exceção encontra-se nos capítulos XXV-XXVI da primeira parte, quando Dom Quixote, seguindo o roteiro de uma de suas aventuras favoritas, decide imitar a loucura de Orlando: essa ocasião em que o cavaleiro se esfalfa dando cambalhotas e exibindo suas partes íntimas é uma nova inversão do seu modelo, é a obra de um louco fazendo-se de louco, e só aí o corpo se torna significativo. O perspectivismo de Dom Quixote é uma antítese do incipiente naturalismo do seu século, embora isso não o identifique necessariamente com outras antíteses; como perspectivismo, porém, coincide em alguns aspectos essenciais com o perspectivismo ameríndio.

O fim da epopéia e o declínio da magia

Outra das linhas clássicas de interpretação do Quixote é a que identifica nele um testemunho do final da epopéia (Alonso 1970), ou do declínio do "pensamento mágico" (Caro Baroja 1990:186-196), ou, em termos mais gerais, do divórcio entre as palavras e as coisas (Foucault 1966). Claude Lévi-Strauss7 7 Diga-se de passagem, um estímulo inicial deste artigo foi uma longa entrevista oferecida por esse autor (Eribon 1989), onde Lévi-Strauss especula sobre a possibilidade de escrever um livro inspirando-se no Quixote. Infelizmente, essa reflexão não viu por enquanto a luz, e, embora distante das linhas gerais que Lévi-Strauss sugere a seguir, está em alguma medida inspirada por elas. dedicou, na sua extensa obra sobre os mitos ameríndios, um interessante capítulo à morte dos mitos e à sua transformação em romance. O Quixote está, de fato, repleto dessas toxinas que mataram os mitos: o apagamento das grandes oposições (o protagonista e seus oponentes têm dimensões muito modestas), a serialidade dos episódios, a predominância dos matizes sobre os grandes caracteres etc. Se essa morte do mito está exemplarmente figurada nas novelas do ciclo arturiano, o Quixote a recapitula e a amplifica; ainda mais, a encena e a tematiza; é uma morte consciente. Mas prossigamos: o fim dos heróis é contemporâneo do fim dos mágicos. Julio Caro Baroja identifica no relato de Cervantes a falência do "pensamento mágico"; uma falência, é verdade, que merece algumas restrições, seja pelo periódico retorno dos magos, seja pelo novo "ciclo bretão" que inunda hoje mesmo a indústria cinematográfica. Sem esperar por isso, o próprio Cervantes, aponta Caro Baroja, mostra uma espécie de recuo arcaizante em sua última obra, Persiles e Sigismunda, uma novela bizantina na qual abunda o recurso à magia e à licantropia, inspirada na literatura clássica ou nos relatos fabulosos sobre as regiões setentrionais. Tudo isso pode querer dizer que o livro protomoderno de Cervantes indica não a morte natural do pensamento mágico, do mito e da épica, mas uma morte orquestrada, e que ele se interessa menos por essa morte que pelas formas em que mito e magia são capazes ainda de viver8 8 As páginas que Foucault dedica ao Quixote ­capítulo III, item I-, destinam-se a ilustrar a transição entre duas epistemes, e para isso utiliza uma versão simplificada do personagem, sempre empenhado em desvendar, na realidade opaca, os signos da épica moribunda, embora também, na segunda parte do livro, encarne o poder sobre essa realidade dos signos, agora em forma de literatura. O propósito deste artigo é em substância o oposto, isto é, mostrar alternativas que perpassam as grandes periodizações, e para esse fim é valioso observar, como já fizemos, que Dom Quixote pode se mostrar também capaz de interrogar os signos a partir da experiência; ou que o desterro dos signos a um espaço virtual não os priva totalmente de eficiência. .

Dois episódios famosos do Quixote lembrarão sem dúvida, aos especialistas em sociedades exóticas, feições típicas das viagens do xamã. Um deles é o da Caverna de Montesinos, onde Dom Quixote se interna, pendurado em uma corda, para ser içado, sumido em profundo sono, horas mais tarde. Ao despertar, assegura ter ficado três dias na caverna, e relata os episódios que pôde contemplar, protagonizados por heróis da antiga épica — mas também, em uma curiosa inversão, episódios grotescos encenados pelos sujeitos da sua própria fantasia, especialmente por Dulcineia. O episódio da caverna é rodeado de toda uma cortina de ceticismo pelo autor do livro (que adverte que se trata provavelmente de uma aventura "apócrifa") e pelos personagens, especialmente por Sancho, que embora já habituado a levar a sério os devaneios do seu mestre, dessa vez não tem pejo em duvidar deles. O outro episódio é o de Clavileño, o cavalo voador. Dom Quixote e Sancho, vítimas de mais uma burla dos seus anfitriões, os Duques, são empurrados a partir em uma viagem estelar sobre um cavalo mágico. Ambos têm os olhos vendados e montam um cavalo de madeira. Os comparsas dos duques criam a ilusão da viagem agitando a engenhoca, mimando com foles e tochas o vento das alturas e o calor das estrelas. Acabada a burla, Sancho declara para diversão de todos que ao longo da viagem, por uma fresta que lhe deixava aberta a venda dos olhos, tinha podido ver a terra desde as alturas, e alguma constelação encarnada na sua forma simbólica, e mantém sua história apesar das argüições da duquesa e do próprio Dom Quixote, muito cético: "ou Sancho mente, ou Sancho sonha". No final do capítulo, Dom Quixote chama à parte a Sancho e lhe diz: "Sancho, pues vos quereis que se os crea lo que hábeis visto en el cielo, yo quiero que vos me creais a mi lo que vi en la cueva de Montesinos. Y no os digo más".

Em uma obra repleta de referências às artes mágicas, essa exortação enigmática é uma chave. O perspectivismo quixotesco não é o resultado de uma visão diferente: isto é, os olhos do louco, como os do xamã, não estão feitos de uma outra matéria. A compreensão de Dom Quixote por Cervantes corre de algum modo em paralelo à compreensão do pensamento primitivo ao longo da história da antropologia: depois da explosão da loucura nos primeiros capítulos, o autor descobre que ela não segrega o cavaleiro da racionalidade; ele permanece um "louco entreverado" em que os disparates se articulam com o bom senso. Mais tarde, descobre que, apesar de tudo, a percepção desse louco entreverado não carece necessariamente de eficácia, porque permite afinal entender o mundo, e mesmo destacar aspectos deste ocultos ao olhar comum; finalmente, nas furtivas palavras dirigidas a Sancho que acabamos de citar, sugere que essa percepção não depende de comprovações ou refutações da empiria, mas de um acordo intersubjetivo sobre o que seja a realidade. Por caminhos muito diferentes, Dom Quixote encontra a mesma combinação de ceticismo e exercício mágico do xamã Quesalid, cuja história foi relatada por Boas e comentada em um célebre artigo por Lévi-Strauss (1985).

Mas se o Quixote incorpora uma reflexão implícita sobre a magia, ou sobre o seu declínio, o faz de um modo curiosamente indireto. O livro elude, como já dissemos, qualquer alusão de relevo à religião, e isso em uma sociedade obsessivamente religiosa; mas, do mesmo modo, se mantém afastado da feitiçaria contemporânea. A magia que aparece no Quixote é uma magia livresca, tomada de livros de aventuras arcaizantes, e não a magia que de fato praticavam na época inumeráveis saludadores ou feiticeiras, tantas vezes chamados a prestar contas ante os tribunais da Inquisição, e que aparece muito mais reconhecível em outros clássicos da literatura espanhola, como a Celestina. De fato essa magia não servia aos propósitos de Dom Quixote: ela não era (não era mais?) uma visão alternativa do mundo.

A magia contemporânea de Dom Quixote existe em uma sociedade que tem estabelecida uma divisão entre feitiçaria e religião, cujo critério definidor é fundamentalmente moral. Essa dicotomia é, em última instância — apesar do persistente bias maniqueísta —, uma relação hierárquica, em que a feitiçaria é subalterna: não possui um conjunto completo de códigos, mas recorre à cosmologia, ao panteão e em parte ao ritual da religião dominante, distinguindo-se dela fundamentalmente pelos seus agentes, pela maior parte de suas práticas e pela marginalidade moral de uns e outras9 9 Como Caro Baroja indica, a maior parte dessa magia está ligada à resolução de questões eróticas, ou de modestos casos de micro-política. . Essa hierarquia, aliás, se estabelece sobre um gradiente, sem marcos bem definidos. Entre o terreno altamente especializado da ortodoxia teológica e os baixos fundos estigmatizados e criminalizados da feitiçaria estende-se uma série infinita de religiosidades ortodoxas porém imperfeitas, e de "erros populares" que contam (sempre que não se articulem em torno de uma heterodoxia) com uma ampla margem de tolerância. Enfim, toda essa configuração é resultado de uma operação, já milenar naquela época, de transferência de poder em direção a um centro ocupado pela Igreja.

Os primórdios dessa operação são bem conhecidos, registrados como estão em uma série de obras de evangelizadores da Antiguidade tardia ou da primeira Idade Média às quais os folcloristas europeus têm recorrido sempre para localizar as raízes pagãs da religião popular. Na península ibérica temos, por exemplo, o De correctione rusticorum, de Martinho de Braga, que no século VI traça um verdadeiro programa de expropriação simbólica do que viemos depois a chamar natureza: os "rústicos" do título, embora superficialmente evangelizados, continuam dando culto a árvores, animais, fontes, pedras, aos quais atribuem personalidade, vida e um poder que, para que a cristianização seja efetiva, deve ser inteiramente transferido para as figuras do panteão cristão10 10 De fato, Martinho de Braga (Barlow 1950) afirma que foram os demônios os que ocuparam a matéria desses entes naturais, induzindo os humanos a render-lhes culto. .O texto de Martinho, como outros equivalentes contemporâneos, poderia sem muito esforço ser adaptado para o uso desses evangelizadores que ainda hoje tentam erradicar erros animistas das populações indígenas deste ou daquele continente11 11 No século XVI, o primeiro manual de extirpação de idolatrias, o de Andrés de Olmos, dedicado aos índios mexicanos, é uma adaptação direta do manual de Fray Martín de Castañega dedicado já à bruxaria setentrional espanhola. .

Os resultados desse programa pouco mais de um milênio mais tarde — na época em que Dom Quixote inicia suas atividades — são muito mais difíceis de resumir. Primeiro, porque são indizivelmente ambíguos, e também porque os pesquisadores, na sua maior parte, têm se interessado por eles com o olhar dirigido às origens. Farei aqui referência às minhas próprias investigações sobre uma região setentrional da Espanha, em boa parte apoiadas em documentos dos séculos XVI e XVII que descrevem fenômenos cuja longue durée pode validar estas observações séculos antes ou depois (Calavia Sáez 1991; 1997; 2002).

Apesar de Martinho de Braga e seus sucessores, a religião "popular" continua infestada de árvores, santos, ursos, serpentes, cervos e fontes. Uma rápida revisão permite constatar uma tensão entre a tendência clerical de fazer deles uma decoração natural atrás das figuras do panteão cristão e as versões mais "populares" ou "arcaicas", ou simplesmente menos clericais, que outorgam a todos eles um protagonismo em continuidade com o que lhes atribuem os contos folclóricos. Um bom exemplo pode ser o da relação entre as imagens de Nossa Senhora e as árvores. Embora tenham acabado como simples pedestais sobre os quais a Virgem aparece (é o caso da azinheira de Fátima, já no século XX), as árvores têm nas versões mais "arcaicas" um papel muito mais ativo, como uma espécie de ventre gerador da imagem, ou como vagas metonímias de espíritos florestais; ou se vêem inscritas em uma mitologia implícita do mel e das abelhas não tão distante da que se pode encontrar entre os ameríndios (Lévi-Strauss 1982 [1966]); a ursa que resgata a Santa Coloma dos seus torturadores é uma ursa, sem que ninguém lembre de fazer dela um anjo do céu; e não haveria como fazer anjos do céu dessas leoas e tigresas que assistem às pregações de São Formério no deserto e depois o alimentam com seu leite.

Além dessa parcela do antigo sistema simbólico precariamente incorporada ao domínio da religião oficial, estendem-se os domínios do diabo, para onde fora remanejada, como sabemos, a parte menos assimilável do universo pagão. Mas o mundo dos demônios não é uma área de preservação de velhos deuses; muito pelo contrário, enquanto na área dos santos mantém-se pacificamente boa parte dos velhos atributos, o mundo dos demônios é submetido a uma maior intervenção por parte da Igreja, e se vê sujeito a radicais transformações em poucos séculos; em certo sentido, o inferno é a mais cristã das regiões do cosmos católico.

Restringindo-nos a essa parte maldita (Calavia Sáez 1991), podemos perceber que durante longo tempo (entre a época tardo-romana e a alta Idade Média) o diabo se manifesta como uma alteração corporal do possesso, preso a uma espécie de antidisciplina feita de maus gestos, gritos, espasmos e sujidade. É o seu ingresso no corpo humano que dá realidade ao diabo, muito antes que se comece a lhe atribuir uma forma corporal específica — feita da acumulação de extremidades animais sobre um tronco humano — e antes que o mundo diabólico comece a constituir-se como esse universo autônomo, com suas leis, suas hierarquias etc. que já encontramos na literatura do século XIII. Transplantado assim para uma dimensão sobrenatural, o diabo deve redefinir suas relações com o natural, e aqui, nas narrações que já no século XVII se dedicam à possessão diabólica, se observa uma curiosa mutação: o espalhafato e a violência dos antigos possessos continuam, mas agora são classificados como melancolia, entenda-se, como o efeito anímico de um desequilíbrio dos humores corporais. A possessão diabólica, por sua parte, não está ausente, mas seus resultados são agora diametralmente diferentes: ela produz perturbações interiores, delírios, tristezas, aflições da alma, em soma. No panorama das aflições contemporâneas do Quixote encontramos vários elementos novos: a aparição de um domínio interior, o da alma, e o definitivo espólio da atividade de um invólucro, o corpo, cujas manifestações a partir daí decorrerão de condições puramente físicas. O triângulo ortodoxo de natureza, sobrenatureza e humanidade está bem traçado, embora apareça borrado nas precárias versões "populares".

Essa dicotomia entre natural e sobrenatural (com o humano servindo de fronteira ou dobradiça) já está estabelecida bem antes de a "física" ser capaz de dar conta suficientemente dos fenômenos físicos. A categoria de "milagre" é, por isso, vital para selar as frestas que se abrem entre uma ordem simbólica apenas recalcada, em que todos os seres gozam em princípio de subjetividade, e uma nova ordem divina, cuja ação se mostra no funcionamento regular de uma natureza privada de autonomia. Essa nova ordem é a que começa a se formular nas doutrinas de Santo Agostinho 12 12 As referências ao milagre se encontram sobretudo em dois textos, De Trinitate e De Genesi ad litteram. ou de Gregório o Grande: o milagre faz parte da ordem da natureza, só a nossa ignorância o afasta dela. O milagre é, no limite, um signo, um artifício pedagógico de uma divindade cuja ação é com freqüência ininteligível. A partir daí inicia-se o monopólio do poder por um único sujeito divino: a potência dos santos ou mesmo de Nossa Senhora, limite do monoteísmo prévio à Reforma, se verá reduzida a conseqüência do único poder real, o divino, do qual todos eles são, no máximo, mediadores. O destino do Diabo é mais delicado, mas, em último termo, não diferente: ele agirá sob sua própria responsabilidade mas com a "permissão" de Deus, e o mal deverá ser entendido como negatividade, não como uma realidade consistente. As obras diabólicas devem ser por isso ilusórias, erros de percepção sem substância13 13 Numa passagem muito conhecida de A Cidade de Deus (XVIII) Santo Agostinho narra o caso de umas mulheres que, na Itália, eram capazes de transformar seus hóspedes em jumentos, sugerindo, porém, que essa transformação não deveria ser física, mas uma ilusão criada pelo diabo. .Por volta do século X, essa doutrina já estava bem definida no célebre Canon Episcopi, que, em síntese, descarta como heréticas as doutrinas que outorgam realidade às metamorfoses e outras obras diabólicas, levando muito perto da sua conclusão a oposição entre natura non naturata naturans (ou seja, Deus) e a natura naturata (naturans ou non naturans; ou seja, as criaturas vivas ou não) de que falava Escoto Erígena; o passo seguinte será essa natureza determinante mas inerte da visão positivista em sentido lato. Como bem mostrou Keith Thomas (1991), a religião tomou a si o trabalho de erradicar o pensamento mágico — um trunfo que depois a Ilustração usurpou —, deixando como herança a dicotomia entre humanidade e natureza e convertendo a sobrenatureza em um resíduo.

Na época de Dom Quixote, quando a Contra-Reforma começa a divulgar por todos os meios essa dicotomia erudita entre populações deficientemente catequizadas, a magia popular a tem assimilado já em boa medida, enquanto a magia culta se aproxima no possível dos recursos da ciência (Caro Baroja 1990). A rigor, a magia não declina: transforma-se em magia "naturalista". Corpo e alma são entidades bem separadas, e toda uma mitologia tecida nas relações entre humanos e os seres de aí em diante "naturais" deve ser relegada ao âmbito do absurdo, da crendice e do erro popular (ou do milagre acontecido lá e quando Deus teve por bem permitir tais coisas). Trunfo da Razão avant la page, essa reorganização do mundo simbólico tem o inconveniente de uma radical concentração do poder simbólico e cognitivo em poucas mãos, preferencialmente clericais; uma concentração pouco alvissareira para os gostos nômades do cavaleiro.

Às voltas com o recalcado

Mas esse processo não foi uniforme nem linear. Há, por exemplo, uma certa reversão nesse momento da Idade Média em que, como indica Le Goff (1985), se produz um florescimento do imaginário que levará, entre outras coisas, à literatura arturiana. A cultura simbólica dos laicos, que nunca se conformou totalmente com o monopólio clerical, pode ser rastreada, por exemplo, nas mitologias das casas nobiliárias, que exibem muito à vontade sua vinculação com seres prévios à consagração das dicotomias, do tipo das sereias, que desde a literatura e a arte disputarão o lugar com a cosmovisão teológica (Le Goff 1977; Prieto Lasa 1994). Essas aparições de Melusinas ou Andramaris (seres mistos de humano e animal, ou vegetal, ou mineral) preludiam, de resto, o uso que dois séculos mais tarde se dará às figuras da mitologia clássica.

Há um outro episódio, tristemente espetacular e surpreendente, que desenvolverá essa mesma operação em um âmbito muito mais extenso: trata-se das famosas epidemias de bruxaria, ou de caça às bruxas, que têm lugar principalmente entre os séculos XVI e XVII. Conquanto uma vastíssima bibliografia já tenha se dedicado ao caso (Caro Baroja 1973; Cohn 1980; Trevor-Roper 1985; Mandrou 1968, entre centenas), tem aspectos que ainda vale a pena resumir e examinar à luz do presente argumento. Notemos que, se todo esse processo de desencantamento do mundo se leva a termo no essencial durante a Idade Média, é precisamente no início da Idade Moderna que, por um tempo, se abole aquela relação hierárquica entre a religião e a magia e se restabelece até certo ponto a dicotomia entre Deus e Diabo, restringindo em certa medida o monopólio do primeiro. A operação pode ser entendida nas páginas do famoso e nefasto Malleus Maleficarum, escrito pelos inquisidores Sprenger e Kraemer como um manual completo de perseguição às bruxas. O Malleus apresenta-se, desde as suas primeiras páginas, como uma refutação do Cânon Episcopi e de toda a tradição que desembocava neste. Com todos os circunlóquios necessários ao caso (era preciso desenvolver o argumento sem cair em doutrinas perigosas, como o maniqueísmo, o que aconteceria caso se concedesse ao Diabo um poder substantivo), o que Sprenger e Kraemer fazem é reivindicar a realidade da feitiçaria ­ ou, o que é mais, iniciar a sua restauração entanto que religião perversa mas completa, com sua doutrina, sua moral, seus rituais, seu sacerdócio (todos eles desenhados como uma inversão dos legítimos). O Malleus, com numerosas edições e epígonos não menos numerosos, funcionou de fato como uma obra aberta, que foi sendo completada durante mais de um século por inquisidores de todas as nações européias e de todas as acepções do cristianismo. Os inquisidores chegam a este resultado mediante uma bricolagem de citações de Pais da Igreja, autores clássicos, e notícias esparsas tomadas do que poderíamos chamar o folclore contemporâneo14 14 Ginzburg (2001) realiza a melhor indagação sobre as numerosas fontes do sabbath europeu, e o encontro ou conflito entre tradições populares e eruditas que o sustenta. .No seu auge, o modesto universo das bruxas rurais é elevado à categoria de seita diabólica, cujas instituições e rituais são réplica invertida dos da Igreja Católica. Durante um tempo, os caçadores de bruxas conseguem impor uma interpretação durante séculos banida da ortodoxia, atribuindo realidade à capacidade de transformação, às viagens noturnas e às ações mágicas, elementos que alguma vez, provavelmente, fizeram parte do universo simbólico pré-cristão, e que tinham sido abolidos no processo antes descrito.

Como sabemos, há quem tenha achado que todo esse universo não estaria abolido ou alterado e sim, simplesmente, oculto, e que os inquisidores não fizeram senão trazê-lo à luz de volta. Foi o caso de Margaret Murray, cuja teoria, passado seu tempo de auge, caiu em descrédito, vítima de interpretações construtivistas, e que muito depois foi objeto de uma reivindicação, parcial e matizada, da parte de Carlo Ginzburg (1988).

Mas parece claro que deveríamos entender a "seita das bruxas" como uma construção dos inquisidores que, paradoxalmente, lhe teriam dado uma vida virtual por meio de suas prédicas. O caso que deu origem a essa teoria construtivista é contemporâneo da publicação do Quixote, e de fato acontece no intervalo entre a publicação de sua primeira (1605) e segunda parte (1616). Como resultado das perseguições de Pierre de Lancre no Pais Basco francês, a partir de 1609, surgem rumores e acusações de bruxaria no lado espanhol da fronteira pirenaica, igualmente na região basca. A Inquisição põe-se à obra e descobre o que queria descobrir: que a seita dos bruxos está se estendendo nas montanhas bascas, que nelas celebra seus sabbaths (ou akelarres, para usar a expressão local), que neles praticam todo tipo de crime e ritual nefando etc. etc. Os inquisidores, seguindo o protocolo habitual, dão ampla publicidade aos crimes que estão perseguindo, e chamam à delação, garantindo clemência a quem confesse e revele os seus cúmplices. As acusações não se fazem esperar, e numerosos "bruxos" e "bruxas" são presos. O processo, celebrado em Logroño, acaba com a condenação à morte de sete réus, queimados depois do Auto-de Fé de 1614. O veredicto foi dado com o voto contra de um dos membros do tribunal, o inquisidor Alonso de Salazar y Frias, que pela rotação de cargos estava encarregado da continuação das pesquisas no ano seguinte, e que sustentava uma tendência "conservadora" fiel às posições do Canon Episcopi. No ano seguinte, Salazar y Frias levou a termo a sua investigação, elaborando um relatório que desautorizava as acusações, cancelava os processos, enfim, formulava em termos definitivos o que séculos depois seria a teoria construtivista (a mesma que aparece nas páginas da maior parte dos autores citados). A seita dos bruxos, segundo o cético inquisidor, não passava de uma sobreinterpretação, a partir de dados viciados — acusações interessadas, testemunhas frágeis ou desqualificadas, intimidações etc. — que tinham como fonte de inspiração a própria propaganda inquisitorial. A epidemia das bruxas era difundida pelos mesmos pregadores que tentavam erradicá-la, e o seu remédio estava simplesmente na neutralização dessas fontes de informação. O ponto de vista de Salazar impôs-se como doutrina oficial e, de fato, o processo de Logroño foi o ponto final da perseguição às bruxas na península. À inquisição espanhola — rigorosamente centralizada, à diferença de outras inquisições européias — atribuiu-se jurisdição exclusiva sobre assuntos de bruxaria. Na prática, isso significou que as bruxas, subtraídas à justiça civil (onde seu delito era motivo de pena capital), escapavam com penas leves de penitência ou desterro; um mérito que não se pode negar a um tribunal que, de resto, continuou sua perseguição implacável a heréticos (bem poucos já, naquele momento) e judaizantes (cada vez menos)15 15 O dia a dia do famoso tribunal, em um pais onde a sua ação havia chegado já a resultados contundentes, estava dedicado a assuntos mais prosaicos, como a blasfêmia: não estando aliada à heresia ou à condição de converso, este delito típico de cristãos velhos era tratado com muita leniência. Vários autores tem elaborado censos das vítimas da caça às bruxas. Por exemplo, Barstow (1995, apêndice B) para o período de 1500-1650, estima umas 50.000 execuções (entre 100.000 acusações) no Sacro Império Germânico, umas 5.000 (entre 10.000) na França, 2372 entre 5403 na Grã Bretanha (mais a Nova Inglaterra) etc. etc. No extremo oposto, na Espanha aparecem aproximadamente 100 execuções para um total de 3687 processos; na Itália, apesar dos mais de dois milhares de acusações, aparentemente ninguém é executado por bruxaria, o que sugere que a proximidade do papado levava aos poderes a um ponto de vista mais conservador nesta questão. .Talvez se possa extrair desse contraste entre o apetite diferenciado dos inquisidores de uns e outros países uma conclusão que paira entre Douglas e Foucault: em qualquer caso, havia a necessidade de magnificar um inimigo que, se na Espanha já estava claramente dado pelas suas minorias étnico-religiosas (cada vez mais imaginárias), na Europa — um tanto mais tolerante com as diferenças de consciência — devia se manifestar também em uma absoluta enteléquia. Por assim dizer, o velho xamanismo foi ressuscitado em todo o seu vigor na Europa para justificar uma perseguição cruel dos seus mirrados herdeiros e a glorificação inglória dos nascentes aparatos de poder.

Voltemos agora ao ponto de que há muito partimos, isto é, o gênero de magia que se insere na trama profunda do Quixote. Nessa aproximação entre duas alucinações de conseqüências tão diferentes, pode se observar que o processo que leva à loucura dos inquisidores e das suas vítimas corre em paralelo ao que leva à loucura de Dom Quixote: uns e outros são, por assim dizer, vítimas de leituras descontroladas; uns e outros articulam, a partir de elementos pinçados na literatura, uma epistemologia que os autoriza a ver um mundo que não existe e a crer-se quem não são (cavaleiros andantes, bruxas, debeladores do diabo). O remédio proposto é equivalente em ambos os casos: queimar a biblioteca de Dom Quixote, cancelar as prédicas que multiplicam as bruxas. Em ambos os casos, encontramos modos de articular dados culturais (velhas crenças, velhos mitos) que lhes dão um significado e um alcance diferentes: a saber, um perspectivismo que — filosofia, etnoepistemologia? — repovoa de sujeitos um mundo que vários séculos de trabalho simbólico iam já transfomando em natureza inerte. Em ambos os casos, também, vemos que essa releitura perspectivista não se produz em qualquer terra incógnita, senão, por assim dizer, nas vizinhanças da razão: o cavaleiro louco é também um homem sensato; os inquisidores e caçadores de bruxas são também agentes da expansão do poder do Estado, e elaboram seus delírios seguindo os métodos escolásticos. As semelhanças param por aí: o Quixote acaba sendo uma demonstração da conversibilidade das visões de mundo, enquanto a nefasta epopéia da caça às bruxas, realizada em pleno alvorecer da Era da Razão, acaba sendo fantasiada de paradigma da irracionalidade, e atribuída pelos racionalistas, anacronicamente, à Idade Média. Mas as idades nunca estiveram tão separadas quanto o grande relato moderno pretende.

O fio condutor que justifica este repasse de temas de sobra conhecidos é a aproximação entre o perspectivismo do Quixote e o perspectivismo ameríndio. Vemos que, em última análise, o clássico da literatura pode remeter a questões não tão diferentes das que surgem do estudo dos mitos de tradição oral das terras baixas sul-americanas, a saber, a subjetividade como instância difundida na "natureza" e como foco de um modo de conhecimento. Comparações desse tipo podem ter algo desse atrativo estético que resulta de uma justaposição imprevisível de elementos muito distantes; mas seus resultados intelectuais costumam ser exíguos. Não servem para demonstrar algo que já está demonstrado: a universalidade do pensamento humano. Também pouco podem dizer, porque as transições são quase infinitas, sobre as relações concretas entre universos simbólicos distantes como o ameríndio e o europeu, o dos caçadores e o dos Estados mercantilistas. O resultado pode ser mais interessante, porém, se observarmos que o comparado aqui não foi uma diversidade de Estados, de relatos ou de conjuntos simbólicos, senão uma série de transições, a saber: a que se dá nas culturas ameríndias entre o olhar do xamã e o olhar digamos "profano"; a que se dá entre a visão proposta pelo louco Dom Quixote e a visão "realista" dos sãos que o rodeiam; a que se dá entre a natureza animista do paganismo e a natureza dependente de um ser supremo que o cristianismo impõe; a que se dá entre a crença no poder das bruxas e a negação deste poder. Em todos os casos, encontramos duas alternativas em jogo: ora o mundo se entende como um vasto conjunto de sujeitos capazes de uma agência e uma visão específica, ora estes sujeitos são reduzidos a objetos mais ou menos inertes, dependentes de um sujeito superior concentrado no exterior deles — a razão humana, Deus etc. Uma e outra alternativa estão ligadas, aliás, a diferentes ritmos: à instabilidade no primeiro caso; à fixação das formas e dos atributos no segundo.

É este um modo, como tantos, de sintetizar, neste caso em torno do par sujeito-objeto, o contraste entre dois tipos de pensamento, chamados, respectivamente, de "mágico" (ou "primitivo", ou "pré-lógico", ou um longo etc.) e "racional" (ou "positivo", ou "científico" etc.). A mudança do primeiro para o segundo objeto de narrações bem conhecidas, em que os casos que nos ocuparam aqui costumam ser citados em destaque: o declínio da magia, o desencantamento do mundo, o advento das luzes etc. Todos esses grandes relatos costumam coincidir no sentido da narração, que sempre começa na magia e acaba nas luzes; coincidem também na fundamental irreversibilidade do processo (cujas reviravoltas não passam de episódios anômalos). Outro traço comum é a longue durée atribuída ao processo, adequada a uma transformação cujos passos concretos não estão claros (há exceções, como a do estudo já citado de Keith Thomas) e que, portanto, resulta mais verossímil quando apresentada como uma lenta expansão capilar, como uma maturação constituída de ínfimas mudanças. Como chegar do pensamento pré-lógico ao racional? Ambos estão distantes, a viagem deve ter sido longa. Os casos que temos examinado aqui nos indicam, porém, que os supostos pontos de partida e de chegada convivem na sincronia (algo que tem sido mostrado à exaustão na literatura antropológica); mostram igualmente (em termos hipotéticos no caso do Quixote, históricos no da caça às bruxas) que o caminho pode ser revertido, o que também não é a rigor uma novidade. Mas mostram, sobretudo, a economia de meios com que, no caso, um universo perspectivista pode ser feliz ou infelizmente reerguido a partir de um universo já consistentemente organizado em torno da dicotomia natural/sobrenatural. Se o perspectivismo pode ser (parafraseando livremente Viveiros de Castro 1996) entendido como uma epistemologia, e não necessariamente como uma epistéme, ou como uma visão de mundo, é porque sugere algo muito mais autônomo e portátil, porém socialmente mais denso (uma epistemologia precisa de agentes e de legitimação) que uma alternativa cognitiva (Sperber 1982).

O perspectivismo não é um atributo inseparável de um universo simbólico, por exemplo, animista; ele pode, como alternativa pragmática ou epistemológica, alicerçar um uso e uma compreensão diferente dos mitos, ou se desvencilhar deles aplicando-se a outro gênero de relatos. Um dos atrativos do Quixote é, precisamente, que ele mostra, quase sem querer, o fácil entrelaçamento de duas acepções aparentemente distantes desse mesmo conceito: o perspectivismo na narrativa e na transformação dos seres.

Coda ameríndia

Voltando o olhar para o mundo ameríndio, que até agora só foi citado como um pano de fundo imperceptível, essa autonomia de que acabamos de falar nos anima a examinar as múltiplas variantes em que esse perspectivismo se manifesta, e também as suas transformações quando confrontado a processos de cristianização ou de folclorização dos universos simbólicos indígenas. Não poderei aqui senão retomar exemplos que já tratei em outros escritos: sem sair de um campo cultural e lingüisticamente muito homogêneo, e povoado por uma mesma mitologia, será possível encontrar contrastes epistêmicos muito consideráveis. Duas mitologias tão próximas como a dos Kaxinawá de começos de século (Abreu 1941) e a dos Yaminawa dos finais desse mesmo século (Calavia Sáez 2001; 2002a; 2002b; 2004) podem, sendo as duas perfeitamente "perspectivistas", dar versões diversas dessa mesma teoria.

No caso kaxinawá, as relações entre os diversos domínios (humanos e não humanos) aparecem de fato como metamorfoses: os humanos que, por um motivo ou outro, decidem virar animais, conseguem-no se transformando fisicamente, adotando posturas e hábitos alimentares animais, ou fabricando para si membros animais — caudas, focinhos, cascos de quelônio —, a partir de galhos, argila ou tintas. O motivo da transformação é, em todos os casos, um certo hiato corporal que já existe entre o protagonista e o seu grupo, entendendo aqui a corporalidade em um sentido ampliado para incluir as trocas de substância. Assim, um aleijado que não consegue deslocar-se senão rastejando se transforma em jaboti, depois de pintar nas costas o padrão do casco do animal; ou uma viúva com filhos, e sem homem que possa lhe prover alimentos, se transforma em tamanduá com os seus rebentos, inserindo no ânus um galho de palmeira que imita a cauda do animal, habituando-se à sua dieta sóbria; ou todo um grupo frustrado pela atitude de um dos seus membros (uma jovem que se nega a casar) se transforma em vara de queixadas, comendo um cozido de paxiubinha e construindo com a ajuda de barro e pedaços de panela corpos e cabeças de porco selvagem. Em qualquer caso, trata-se de corpos que, por meio de processos descritos com um certo detalhe, adquirem novas formas e novas capacidades, ou, mais exatamente, que elaboram positivamente uma diferença física que já marcava negativamente sua situação anterior. Os artifícios aplicados no corpo constroem a partir de uma prévia diversidade de naturezas.

No caso yaminawa, as narrações prendem-se a essa multiplicidade prévia, e a transformação do corpo é residual: o que os mitos narram são essencialmente transladações da visão, obtidas mediante o uso de uma espécie de colírio mágico e a imersão em um domínio alheio — via de regra, o fundo das águas, mas também eventualmente o interior da floresta, ou o cume das árvores —, ou em um caso mediante o uso da ayahuasca16 16 Prinz (2003), retomando observações de Karl von den Steinen, refere-se também à "falta de detalhe" das metamorfoses xinguanas, que põem sempre em jogo duas formas discretas, original e final, sem contemplar um continuum de transformação. .O protagonista, com a ajuda do remédio pingado nos olhos, percebe as cobras, as queixadas ou os macacos como humanos, percebe os poções do rio ou os barreiros como aldeias humanas, sem que a rigor nada aconteça com os corpos ou os lugares em questão... Poderíamos até dizer que essa diferença evocaria a diferença cristã entre transformações reais e ilusórias, não fosse por esse "resíduo" corporal que de todo modo persiste nos relatos: o colírio muda o modo de ver, mas também permite ao protagonista respirar sob as águas. O protagonista de um dos mitos mais populares "vira queixada" só porque o colírio lhe deixa ver as queixadas como pessoas; mas depois da longa convivência que lhe é assim permitida, suas costas começam a ficar peludas e a sua postura curvada. O ponto de vista liga-se ao corpo, embora desse modo tênue, com a mesma fidelidade que, em outro sentido, faz com que nos contos fantásticos europeus uma princesa ou um empregado de comércio transformados em asno ou barata conservem, mal que pese a sua nova forma física, suas maneiras ou seus afetos de princesa ou de empregado, mantendo estável a relação entre o sujeito e o que dentro dessa tradição constitui sua subjetividade. Embora situadas inequivocamente no registro da percepção — e não no da metamorfose —, as narrativas yaminawa são por isso uma versão "óptica" do perspectivismo à ameríndia, e não uma versão amazônica do idealismo. A diferença entre as transformações kaxinawá e as transladações yaminawa é consistente com um outro contraste entre ambos os povos, bem conhecido pelos especialistas em etnologia pano ou pelos indigenistas do Acre: os Kaxinawá entregam-se a um cultivo social do corpo por meio de pinturas e rituais que falta entre aos Yaminawa17 17 Os rituais Kaxinawá são descritos, com ênfase especial na sua capacidade construtiva, por Kensinger (1995), McCallum (2001) e Lagrou (1998) .Essa diferença não pode ser facilmente reduzida a uma opção de preservação ou perda de acervo cultural; de fato, os Yaminawa têm um tipo de pintura corporal — chamada precisamente de yaminawa këne pelos vizinhos Kaxinawá — reduzida a pequenos grafismos sobre o rosto, cuja relação com as pinturas kaxinawá, que tendem a cobrir o corpo com a sua malha, é a mesma que os resíduos de corporalidade dos mitos yaminawa têm com a construção de corpos transformados na mitologia kaxi. A ênfase na ação sobre o corpo é a mesma na mitologia e na atividade ritual.

A mitologia dos Yaminawa caracteriza-se também por postular uma comunicação entre os domínios que não se restringe a determinados seres exemplares: em lugar de se articular em torno de algumas figuras arquetípicas (a onça, a sucuri, a queixada), ou definir "donos" dos animais que representem a subjetividade de seres menos significativos, põe em jogo diretamente uma série virtualmente infinita de seres (das sucuris às árvores, das cerâmicas aos barrancos do rio, do excremento aos cachorros, todos eles dotados de subjetividade). As narrações de transformação são, a rigor, um gênero ou uma fórmula padronizada a partir da qual é possível gerar, dedicar a qualquer ser um desses relatos. Poderíamos dizer que, em lugar de manter-se à sombra de determinadas transformações ou transladações paradigmáticas, o perspectivismo yaminawa impõe-se como uma chave narrativa e interpretativa de alcance virtualmente universal. Pode-se supor que essa peculiaridade seja congruente com a do modelo xamânico yaminawa. Entre os Kaxinawá, a atividade xamânica é a rigor iniciada pelos espíritos, cuja ação (habitualmente, na forma de uma doença) leva à prática, em grau mais ou menos especializado, um elevado número de sujeitos. Já o xamã yaminawa empreende sua carreira de modo voluntário, e a culmina só depois de um processo de aprendizado duro e longo, que impõe uma rígida restrição ao número de xamãs. Aparentemente, essa raridade, essa segregação e, definitivamente, essa "esoterização" dos xamãs yaminawa (Pérez Gil 2004) é um fenômeno recente, pois há referências a iniciações coletivas no passado, ou pelo menos a uma distribuição muito mais ampla dos saberes xamânicos. A comparação entre a atividade xamânica atual e as narrações sobre o xamanismo do passado sugere também que, com o desaparecimento de boa parte das velhas práticas bélicas, que implicavam de um modo mais amplo o corpo do agente e uma gama maior de fármacos18 18 O gesto agressivo do velho xamã, que muitas vezes vi ser imitado pelos Yaminawa, consiste em recolher do corpo, e especialmente das axilas, humores que, acumulados nas mãos, são então assoprados em direção ao inimigo. Segundo os Yawanawá, é a pimenta intensamente ingerida pelo xamã a substância base desses humores. ,o mundo do xamã yaminawa tem cada vez mais como eixo a experiência visionária fornecida pela ayahuasca19 19 Patrick Deshayes (2003) descreve um continuum do uso da ayahuasca, que vai desde a "purga" com efeitos sobre o corpo (relacionado ao predomínio de um dos componentes da decocção, precisamente o cipó Banisteriopsis) e um outro centrado na produção de imagens (e portanto do outro componente clássico, a Psichotria); o paradoxo de que seja o cipó, e não a Psichotria produtora das visões, quem tenha dado nome à bebida, desaparece se consideramos que o papel da visão se incrementa na medida em que nos afastamos do contexto original da prática, e só assume um quase monopólio nas religiões "de branco" inspiradas no xamanismo indígena. Em outra ordem de coisas, é bom notar que a mitologia Kaxinawa se confunde com a Yaminawa quando se trata da ayahuasca (como acontece em versões recentes de mitos; ver Lagrou 2000). ,e que esta mesma experiência, antes muito mais comum (em "bebedeiras" das quais participavam grupos inteiros, com as suas mulheres), vai se limitando a grupos cada vez menores de praticantes. A generalização desse "perspectivismo óptico" vai assim de encontro (se não é sua conseqüência) à ascensão de um xamanismo visionário e restrito, e fracamente vinculado a tarefas mais cotidianas de produção do corpo; a capacidade de generalizar uma teoria beneficia-se da sua concentração em poucas mãos. Não haveria razões para dizer que essa concepção visionária do mundo se deva a uma aproximação a noções universalistas mais ou menos ocidentais, e menos ainda a algum tipo de sincretismo — a mitologia yaminawa permanece definitivamente exótica —, mas é verdade que ela, chegando mais perto dessa ecumene visionária da Alta Amazônia, em que convivem xamanismos indígenas e mestiços e religiões próximas ao espiritismo, o catolicismo popular ou o kitsch neoplatônico, oferece algumas pontes a cosmologias mais próximas à nossa.

Em um ponto muito distante desse continuum, e para citar um caso já tratado por mim (Calavia Sáez 2001; 2002), vale a pena reparar na constituição por parte dos Yawanawá de um universo simbólico que, reciclando e enriquecendo os velhos temas, muda radicalmente sua economia. Neste caso, a elaboração tem a ver, sim, com uma experiência de cristianização, mesmo que o seja em termos de reação a ela: os Yawanawá foram durante um longo período alvo de uma missão fundamentalista — a Missão Novas Tribos do Brasil —, mas empreenderam nos últimos dez anos um processo de "recuperação" da cultura tradicional, centrado emblematicamente na revalorização do Saiti (um festival de danças-cantos-jogos, designado também com o termo "Mariri", um genérico acreano para os rituais indígenas) e das atividades xamânicas. De párias em uma sociedade cristianizada, os xamãs têm sido promovidos a "conselheiros" ou "assessores" do chefe, que, dando ao xamanismo um valor público decerto pouco tradicional, se esforça às vezes em levar suas atividades para uma casa ritual coletiva no centro da aldeia. Se pouco posso dizer aqui sobre o que aconteceu com as tradições locais durante o período missionário, é fácil ver que a sua recuperação está ligada a transformações dignas de nota. De um lado, assiste-se a uma decidida adoção das queixadas como metáfora da sociedade, que exalta sua unidade, sua energia gregária; o próprio etnônimo (em tempo, yawanawá vem a significar "gente-queixada") tem plenamente reconhecida sua carga semântica — o que raramente acontece com outros etnônimos pano. O mito que narra a transformação de homens em queixadas, muito semelhante ao narrado pelos Yaminawa ou pelos Kaxinawá, adquire no caso dos Yawanawa caráter de mito de origem do grupo. Enfim, os membros do grupo, ou pelo menos aqueles considerados como Yawanawa "legítimos", extraem de toda essa identificação um tabu alimentar referente à carne dos seus epônimos. Nesse sentido, a re-paganização do grupo apresenta-se como algo muito parecido à transformação do mito: os Yawanawa tornaram-se queixadas, ou pelo menos se tornaram mais queixadas que nunca. De outro lado, a recuperação dos velhos festivais, e sua consagração como marca de uma indianidade estabelecida, se faz à custa da exclusão de um dos seus episódios mais lembrados, precisamente aquele que encenava a transformação dos homens em queixadas (Carid Naveira 1999). A "brincadeira de queixadas" era, até poucos anos atrás, um jogo no qual os homens, lambuzados de barro e batendo coquinhos para imitar o som característico das mandíbulas dos animais, perseguiam as mulheres até isolar alguma delas. Ato seguido, a mulher capturada era levada para o mato, malgrado a resistência de suas companheiras. Os atos de licença sexual que aparentemente se seguiam, interpretados na lembrança como ocasião para os desejos excedentes de homens ou mulheres, mas que eventualmente podiam também dar lugar a matrimônios, implicavam que a brincadeira só pudesse ser realizada com propriedade entre grupos diferentes, isentos de vínculos de consangüinidade. Adverso ao gosto dos velhos missionários e dos novos aliados no mundo das ONGs e do ecobussiness, e também, talvez, alheio à noção de uma etnia discreta que a própria metáfora da vara de queixadas servia para ilustrar, o animado jogo ficou fora da cultura indígena recuperada20 20 As sessões de sexo seqüencial que eventualmente decorriam da brincadeira não tinham o caráter explicitamente punitivo que assumem alhures, por exemplo, quando associadas aos tabus sobre as flautas sagradas (Gregor e Tuzin 2001). Mesmo assim, podiam em alguns casos ser dirigidas a mulheres "orgulhosas", e não é por acaso que em várias versões do mito de origem das queixadas a transformação se produza precisamente como reação à atitude de uma jovem que recusa o matrimônio. Em qualquer caso, parece ter sido decisiva, na abolição da brincadeira, a oposição de mulheres ainda ligadas ao cristianismo dos missionários expulsos. .Com sua intrincada produção de equações e vínculos simbólicos (homens e mulheres como representantes de espécies diferentes; afins em posição relativa de caça e caçador; as queixadas, carne de caça em sentido alimentar, tornadas caçadoras em sentido sexual; a transformação ritual duplicando e invertendo a transformação narrada nos mitos etc. etc.), a "brincadeira de queixada" era um bom exemplo do alto rendimento de uma cosmologia perspectiva que tinha nos corpos seu principal campo de operação. Alterações muito econômicas, no entanto, conseguiram fazer dessa cosmologia algo assim como um totemismo no sentido clássico lévi-straussiano: mais um recurso classificatório que um discurso sobre a conexão entre os seres. Parafraseando o que diz Foucault no final do item dedicado ao Quixote em As palavras e as coisas, a questão não será mais a dessas conexões (Foucault diz "similitudes"), mas a das identidades e das diferenças. A partir daí, os mesmos símbolos passam a ser lidos de modo bem outro: os moinhos serão gigantes porque, como supunha Unamuno, representam a força hercúlea da modernidade; e as queixadas serão seres humanos porque representam a unidade tradicional de um povo indígena.

Notas

3 É interessante lembrar que a avaliação satírica foi também feita de um outro ponto de vista, eventualmente romântico, como no caso de Lord Byron: a irrisão cervantina seria responsável precisamente da decadência do heroísmo espanhol... A minha rápida avaliação não faz, nem aspira a fazer, justiça ao rico e complexo mundo da interpretação romântica do Quixote. Os interessados nesse assunto podem recorrer a Close 1978, Bertrand 1914 e 1953.

Recebido em 15 de dezembro de 2003

Aprovado em 15 de fevereiro de 2004

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  • *
    No que se refere à sua "coda ameríndia" este texto está baseado essencialmente nas minhas pesquisas de campo entre os Yaminawa em 1993, auspiciadas pela Fapesp, e entre os Yawanawa em 1998, dentro do projeto TSEMIM financiado pela União Européia. A Miguel Carid e Laura Pérez, alunos do PPGAS-UFSC, devo valiosas informações complementarias em ambos casos. Agradeço também a MCN sua leitura, seus comentários e correções à primeira parte do artigo.
  • 1
    A leitura do Quixote que apresento aqui deve muito a uma dessas guias, a de Martín de Riquer (1970) que, apesar de ser enfática nessa interpretação do Quixote como sátira que estou a rejeitar, oferece um útil roteiro de leitura, oferecendo a profanos em filologia (como o autor destas páginas) informações sobre o contexto, sobre as sutilezas do texto, etc. Evitarei citar a cada momento, no meu resumo do Quixote, essa fonte, que de outro lado, devido à fidelidade ao texto que se supõe própria da profissão, evita no geral exegeses mirabolantes. Não é esse o caso de Américo Castro (2002) filólogo também, mas filólogo talvez por falta de uma antropologia espanhola condizente com a sua imaginação. Dele está tirada a ênfase na subjetividade como clave do Quixote, e sua interpretação se estende também sobre questões que apenas serão sugeridas aqui, como a inserção dessa literatura e dessa subjetividade no universo dos outcast conversos espanhóis. De resto, e abundando na interpretação satírica do romance, que como dissemos não é inferida, mas tomada literalmente deste, deveríamos lembrar que ela não parece ser incompatível com o aberto elogio (cf. capítulo VI) de algumas das obras mais características do gênero de cavalaria, incluído o seu paradigma, o Amadis de Gaula, que deveria ser o objeto por excelência do ataque.
  • 2
    O êxito editorial do primeiro Quixote suscitou a aparição de uma continuação, cujo autor (sobre o qual tem se tecido hipóteses infindáveis) assinava com o pseudônimo de Alonso de Avellaneda. O episódio foi importante, sobretudo porque empurrou Cervantes a escrever a segunda parte do livro, muito mais complexa e enriquecida, num traço "vanguardista", com os comentários do personagem à sua falsa biografia.
  • 4
    Isso faz a enorme diferença entre o Quixote de Cervantes e alguns predecessores (como o personagem do "Entremés de los Romances", que se identifica vertiginosamente com uma série infindável de heróis, ou o Quixote "apócrifo" de Avellaneda, reduzido a um desastrado guignol de disparates e pancadarias). Depois dos primeiros capítulos, em que a identidade do cavaleiro se mostra instável, Dom Quixote age com um certo sistema. Sobre os antecedentes da paródia cervantina cf. Mancing 1975.
  • 5
    O
    pendant ortodoxo de Dom Quixote é Ignácio de Loiola, que decide ser santo lendo vidas de santos: o paralelo não passou desapercebido aos comentaristas, especialmente o basco e católico Unamuno. As vidas de santos ­uma literatura, aliás, não menos descabida que a que secou o cérebro do cavaleiro­, são o antídoto que alguns personagens do livro recomendam para a intoxicação literária de Dom Quixote. Sobre Loyola e a épica cf. Garcia Mateo 1991.
  • 6
    As excelências renovadoras do Quixote, aqui resumidas, seguindo a Ortega e Castro, ao seu "perspectivismo" tem sido desdobradas pela maior parte dos críticos ­nem sempre seduzidos por essa démarche "filosófica"- em uma pluralidade de achados sobre o estatuto da ficção na obra, sobre o uso da língua e da psicologia, etc. O Quixote aqui apresentado é um Quixote obviamente reduzido para o uso comparativo que seguirá.
  • 7
    Diga-se de passagem, um estímulo inicial deste artigo foi uma longa entrevista oferecida por esse autor (Eribon 1989), onde Lévi-Strauss especula sobre a possibilidade de escrever um livro inspirando-se no Quixote. Infelizmente, essa reflexão não viu por enquanto a luz, e, embora distante das linhas gerais que Lévi-Strauss sugere a seguir, está em alguma medida inspirada por elas.
  • 8
    As páginas que Foucault dedica ao Quixote ­capítulo III, item I-, destinam-se a ilustrar a transição entre duas epistemes, e para isso utiliza uma versão simplificada do personagem, sempre empenhado em desvendar, na realidade opaca, os signos da épica moribunda, embora também, na segunda parte do livro, encarne o poder sobre essa realidade dos signos, agora em forma de literatura. O propósito deste artigo é em substância o oposto, isto é, mostrar alternativas que perpassam as grandes periodizações, e para esse fim é valioso observar, como já fizemos, que Dom Quixote pode se mostrar também capaz de interrogar os signos a partir da experiência; ou que o desterro dos signos a um espaço virtual não os priva totalmente de eficiência.
  • 9
    Como Caro Baroja indica, a maior parte dessa magia está ligada à resolução de questões eróticas, ou de modestos casos de micro-política.
  • 10
    De fato, Martinho de Braga (Barlow 1950) afirma que foram os demônios os que ocuparam a matéria desses entes naturais, induzindo os humanos a render-lhes culto.
  • 11
    No século XVI, o primeiro manual de extirpação de idolatrias, o de Andrés de Olmos, dedicado aos índios mexicanos, é uma adaptação direta do manual de Fray Martín de Castañega dedicado já à bruxaria setentrional espanhola.
  • 12
    As referências ao milagre se encontram sobretudo em dois textos,
    De Trinitate e
    De Genesi ad litteram.
  • 13
    Numa passagem muito conhecida de
    A Cidade de Deus (XVIII) Santo Agostinho narra o caso de umas mulheres que, na Itália, eram capazes de transformar seus hóspedes em jumentos, sugerindo, porém, que essa transformação não deveria ser física, mas uma ilusão criada pelo diabo.
  • 14
    Ginzburg (2001) realiza a melhor indagação sobre as numerosas fontes do
    sabbath europeu, e o encontro ou conflito entre tradições populares e eruditas que o sustenta.
  • 15
    O dia a dia do famoso tribunal, em um pais onde a sua ação havia chegado já a resultados contundentes, estava dedicado a assuntos mais prosaicos, como a blasfêmia: não estando aliada à heresia ou à condição de converso, este delito típico de cristãos velhos era tratado com muita leniência. Vários autores tem elaborado censos das vítimas da caça às bruxas. Por exemplo, Barstow (1995, apêndice B) para o período de 1500-1650, estima umas 50.000 execuções (entre 100.000 acusações) no Sacro Império Germânico, umas 5.000 (entre 10.000) na França, 2372 entre 5403 na Grã Bretanha (mais a Nova Inglaterra) etc. etc. No extremo oposto, na Espanha aparecem aproximadamente 100 execuções para um total de 3687 processos; na Itália, apesar dos mais de dois milhares de acusações, aparentemente ninguém é executado por bruxaria, o que sugere que a proximidade do papado levava aos poderes a um ponto de vista mais conservador nesta questão.
  • 16
    Prinz (2003), retomando observações de Karl von den Steinen, refere-se também à "falta de detalhe" das metamorfoses xinguanas, que põem sempre em jogo duas formas discretas, original e final, sem contemplar um continuum de transformação.
  • 17
    Os rituais Kaxinawá são descritos, com ênfase especial na sua capacidade construtiva, por Kensinger (1995), McCallum (2001) e Lagrou (1998)
  • 18
    O gesto agressivo do velho xamã, que muitas vezes vi ser imitado pelos Yaminawa, consiste em recolher do corpo, e especialmente das axilas, humores que, acumulados nas mãos, são então assoprados em direção ao inimigo. Segundo os Yawanawá, é a pimenta intensamente ingerida pelo xamã a substância base desses humores.
  • 19
    Patrick Deshayes (2003) descreve um continuum do uso da ayahuasca, que vai desde a "purga" com efeitos sobre o corpo (relacionado ao predomínio de um dos componentes da decocção, precisamente o cipó Banisteriopsis) e um outro centrado na produção de imagens (e portanto do outro componente clássico, a Psichotria); o paradoxo de que seja o cipó, e não a Psichotria produtora das visões, quem tenha dado nome à bebida, desaparece se consideramos que o papel da visão se incrementa na medida em que nos afastamos do contexto original da prática, e só assume um quase monopólio nas religiões "de branco" inspiradas no xamanismo indígena. Em outra ordem de coisas, é bom notar que a mitologia Kaxinawa se confunde com a Yaminawa quando se trata da ayahuasca (como acontece em versões recentes de mitos; ver Lagrou 2000).
  • 20
    As sessões de sexo seqüencial que eventualmente decorriam da brincadeira não tinham o caráter explicitamente punitivo que assumem alhures, por exemplo, quando associadas aos tabus sobre as flautas sagradas (Gregor e Tuzin 2001). Mesmo assim, podiam em alguns casos ser dirigidas a mulheres "orgulhosas", e não é por acaso que em várias versões do mito de origem das queixadas a transformação se produza precisamente como reação à atitude de uma jovem que recusa o matrimônio. Em qualquer caso, parece ter sido decisiva, na abolição da
    brincadeira, a oposição de mulheres ainda ligadas ao cristianismo dos missionários expulsos.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Set 2005
    • Data do Fascículo
      Out 2004

    Histórico

    • Recebido
      15 Dez 2003
    • Aceito
      15 Fev 2004
    Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - PPGAS-Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Quinta da Boa Vista s/n - São Cristóvão, 20940-040 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel.: +55 21 2568-9642, Fax: +55 21 2254-6695 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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