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Tempo de Brasília: etnografando lugares-eventos da política

RESENHAS

BORGES, Antonádia. 2004. Tempo de Brasília: etnografando lugares-eventos da política. Rio de Janeiro: Relume Dumará. 194 pp.

Julieta Quirós

Mestranda, PPGAS/MN/UFRJ

Tempo de Brasília: etnografando lugares-eventos da política pode, talvez, a princípio, chamar a atenção do leitor pelo fato de transcorrer no terreno do inclassificado. Antonádia Borges poderia apresentar seu trabalho como uma etnografia sobre "política", sobre "políticas públicas", sobre "políticas de moradia", sobre "clientelismo". Afortunadamente, contudo, nada disso acontece. A autora recusa, mais de uma vez, a introdução de rótulos distantes da realidade etnográfica que descreve, a saber, a vida — ou melhor, o modo de vida — dos moradores do Recanto das Emas, um assentamento urbano localizado a 32 km de Brasília.

Com apurada observação sobre o que ali parece ser relevante, o trabalho de Borges consegue interrogar — no sentido mais radical do termo — esse mundo social, sem reprimi-lo em problemas teóricos ou categorias conceituais predeterminadas. Apesar de estar orientada por um interesse em algo pensado como "político", o ponto de partida da autora parece ser intencionalmente mais indefinido: como transcorre a vida das pessoas nesse lugar? A partir daí, a política irrompe em espaços inesperados. Criado apenas há uma década, o empoeirado Recanto das Emas está marcado por uma preocupação com o lugar para morar. E é essa inquietude que, cotidianamente, vincula os moradores à política no seu sentido nativo, isto é, ao Estado, ao governo, à burocracia, aos políticos.

Ao descentrar seu trabalho etnográfico em relação a qualquer instância eleitoral, a autora consegue revelar que a política não constitui uma exterioridade que irrompe momentaneamente na vida local; e, portanto, que as eleições não constituem contexto etnográfico privilegiado para falar sobre política. Presumindo que a política é inseparável do que poderíamos chamar de "o resto" — da vida social —, Tempo de Brasília não tenta apenas estabelecer uma relação entre ambos os termos, mas também mostrar que, no Recanto das Emas, a política está no "resto", ou, nas palavras de Borges, que a vida do Recanto das Emas é uma "vida política" (:49).

Em Tempo de Brasília, o olhar se dirige a um cotidiano no qual o político se imiscui. Essa vida é retratada ao longo de cinco capítulos etnográficos que recorrem a uma série de categorias nativas que, segundo a autora, estruturam a experiência dos moradores do Recanto das Emas: a invasão, o asfalto, o lote e, por fim, o tempo de Brasília. Longe de constituir um mero repertório representacional ou visão de mundo, essas categorias são tratadas como idéias em ato. Ao apelar para a noção de lugar-evento para se referir a esses "lugares ou objetos que se manifestam como ações" (:11), a autora procura transcender uma perspectiva meramente semântica; aproxima-se, ao contrário, de uma pragmática que restitui os modos segundo os quais as idéias são vividas e acionadas em contextos específicos.

Graças a um trabalho etnográfico que combina, de maneira perspicaz, diferentes esferas de intimidade cultural, a autora consegue mostrar como, dentro de um mesmo espaço, a política pode adquirir uma pluralidade de formas. O capítulo I talvez seja paradigmático a esse respeito. Por um lado, a política irrompe de forma aberta e impiedosa através da invasão: ocupar certos espaços como meio de reivindicação e pedido de lotes ao Estado aparece como lugar-evento constitutivo da vida do Recanto das Emas. No caso apresentado pela autora, trata-se de um acampamento montado na sede da administração regional da cidade, onde surgem conflitos com a polícia e com os funcionários públicos, assim como enfrentamentos partidários. Paralelamente, a política surge de forma mais domesticada: a entrega de lotes é uma prática instituída e institucionalizada, em um programa de governo orientado para o assentamento urbano da população. Nesse esquema, as mesmas pessoas que invadem ou que alguma vez invadiram fazem parte da lista dos que, cumprindo uma série de requisitos, ingressam nas filas dos circuitos administrativos e da espera burocrática.

Desse modo, além dos acampamentos, no Recanto das Emas existem outros signos que falam da vida política: o número dos processos burocráticos que cada pessoa carrega consigo, o andamento das inscrições, e também a linguagem das siglas: os moradores do Recanto das Emas são hábeis conhecedores do idioma de siglas dos diversos organismos da burocracia, vinculados ao planejamento territorial, com os quais mantêm contato diário. Um último signo: as fórmulas com que o governo classifica a população a fim de avaliar quem é merecedor desse dom precioso que é o lote. Um conjunto de requisitos produz a fórmula, cada fórmula produz uma série e a série, uma identidade, a qual é expressa, por fim, em números.

As evidências apresentadas por Borges revelam como essas fórmulas estatais induzem a comportamentos concretos, ao serem tomadas pela própria população como um conjunto de qualidades de referência: ser casado ou solteiro; ter ou não ter filhos; trabalhar ou não trabalhar. Entretanto, o principal requisito para poder participar da inscrição nos programas de distribuição de lotes é possuir o título eleitoral do Distrito Federal, o que implica contar com (e poder provar) um mínimo de cinco anos de residência na capital — ou, em termos nativos, ter (e poder provar) tempo de Brasília. Assim, milhares de pessoas circulam de casa em casa, de cidade satélite em cidade satélite, de barraco em barraco, ocupando espaços, sendo abrigadas por parentes ou conhecidos — literalmente, fazendo tempo —, para cumprir a exigência que lhes permitirá, por fim, encaminhar oficialmente sua demanda por um lote ao Estado. E então, "as madrugadas nas filas, o cadastramento, a atualização periódica do cadastro, o conhecimento gradual das variáveis que "pesam" na fórmula que calcula a pontuação do candidato, a adequação entre os dados de que se dispõe e aqueles que devem ser apresentados ao governo, a procura de documentos que registrem a veracidade do que é declarado, a angustiante espera pela contemplação, intercalada por frustradas espiadelas no Diário Oficial e nos jornais, enfim, o nome na lista — a emoção inenarrável dessa experiência —, a ocupação do lote, a construção de um barraco e, mais uma vez, a espera pela escritura" (:157).

Se levarmos em conta o fato de que as pessoas que um dia acampam e ocupam terras são as mesmas que outro dia ingressam nos circuitos burocráticos como destinatários "legais", o cenário do Recanto das Emas sugere uma espécie de variação contínua que, felizmente, não é tratada por Borges como contradição, nem tampouco aniquilada em uma realidade coerente e unívoca, absolutamente fictícia. A análise da autora sugere que, mais que opções contraditórias, invadir e inscrever-se em programas governamentais são alternativas conexas, situacionalmente acionadas. "O Barraco" e "O Lote" talvez sejam os capítulos que melhor analisam esse espaço flutuante. Neles, em que se apresenta a trajetória de vida de quatro mulheres, assim como o estudo dos arquivos da polícia local, esses lugares-eventos são retratados como categorias vividas e acionadas de forma plural: o lote não é simplesmente o lote; é o lote invadido, negociado, adjudicado, escriturado, emprestado, ocupado, roubado, alugado, vendido.

Nesse sentido, pode-se dizer que Tempo de Brasília escreve uma história. O presente etnográfico de Borges adquire uma notável profundidade diacrônica, pois o que hoje é quadra ontem foi invasão, o que é asfalto foi terra vermelha, o que é casa foi barraco. No entanto, cabe destacar que, longe de constituir uma história linear, dirigida a algum modo de vida consumado, parece tratar-se, precisamente, de uma história de variações contínuas: as pessoas vão e vêm, passam da ilegalidade à legalidade, e vice-versa.

A diversidade de formas de habitar é, então, uma diversidade de formas de vivenciar o Estado, de experimentar a política. Uns pedem com o corpo; outros, por meio das listas, ou aos líderes locais; e outros ainda dão porque têm um emprego na política. Pedidos que são efetivos graças a uma lógica para a qual Borges chama a atenção: "A política no Recanto das Emas apresenta-se como a frágil administração de bens construídos a um só tempo como abundantes e escassos" (:48). O lote é um recurso que o Estado , mas que não para todos. Sobre a base dos bens disponíveis e, ao mesmo tempo, insuficientes, políticos e moradores se vinculam, jogando o jogo da política, do qual poderíamos dizer que opera não tanto a partir da exclusão quanto de uma inclusão diferencial sempre cheia de esperanças.

Ao lado do lote, o asfalto faz parte desses bens escassos e abundantes. A observação e análise de uma série de atos governamentais, associados à inauguração de obras de pavimentação, torna possível compreender o asfalto mais como necessidade criada e imposta pelos governantes locais do que como demanda da própria população. A produção de políticas públicas, assim, não parece envolver apenas uma invenção do destinatário, mas também a da própria demanda. Com isso, dá-se a conversão do arbitrário em necessário: o asfalto aparece não só como um bem desejado e vantajoso, mas sobretudo como um bem imprescindível.

Desse modo, Borges revela como aquilo que não porta o rótulo de "político" é politizado. No contexto do Recanto das Emas, o asfalto torna-se assunto político. Em primeiro lugar, ao se constituir como objeto de troca que circula entre o governo e a população. Em segundo, ao ser dotado de sentidos díspares de acordo com as facções políticas locais. O conflito político entre os partidos se expressa no asfalto, e o posicionamento dos moradores perante as obras enuncia lealdades partidárias. Defender o asfalto, participar dos atos de inauguração — ou não fazê-lo — é posicionar-se de um lado ou de outro da luta política local.

Ao explorar as trocas entre a população e os políticos fora do momento eleitoral, a análise de Borges permite observar que essa relação transcende a mera transação voto-favor. Em Tempo de Brasília, o voto é instância exclusiva da política, nem a troca política se reduz ao voto. Ao contrário, trata-se de um processo ampliado e cotidiano de construção das relações de poder, de uma troca contínua, seriada e parcelada. As obras públicas, argumenta Borges, devem ser algo sempre inacabado, pois a dívida é necessária para a continuidade da relação. Assim, enquanto em um lugar lotes estão sendo distribuídos, em outro, obras de asfaltamento estão sendo iniciadas; se em uma localidade obras de saneamento estão sendo providenciadas, em outra, invasores estão sendo erradicados ou realocados. Nesse circuito, o tempo de Brasília irrompe como lugar-evento que contém todos os demais: a invasão, o barraco e o lote compõem uma espécie de limbo pelo qual todos têm de passar durante mais ou menos cinco anos até poderem ingressar nas listas estatais. O tempo de Brasília é, então, o começo de uma territorialização que, em teoria e do ponto de vista do governo, culmina no lote e se reafirma no asfalto. "Em teoria", porque à medida que territorializa, o tempo de Brasília gera suas próprias linhas de fuga: incita a migração, ativa o nomadismo e a instabilidade habitacional de todos os seus potenciais beneficiários. O trabalho de Borges permite perceber que as próprias fórmulas do Estado acabam gerando o inesperado, produzindo um modo de vida que se afirma a si mesmo, e isso apesar de tudo.

É sugestivo, nesse sentido, que Tempo de Brasília seja capaz de nos falar de uma forma de experimentar o Estado prescindindo de clichês do tipo "resistência/hegemonia". Ao contrário, apresenta ao leitor um mundo social díspar e heterogêneo, onde é possível ver como o Estado captura e, ao mesmo tempo, o que as pessoas conseguem fazer com essa sujeição. Novamente, uma recusa em enquadrar a evidência etnográfica em esquemas inadequados prova que, ao lado da preocupação nativa com o lugar para morar, Tempo de Brasília está baseado em uma preocupação da própria autora com o lugar como entidade etnográfica com relevância própria. Falando sobre si mesmo, o Recanto das Emas é capaz de falar sobre algo mais. Tempo de Brasília transcende o microscópico, sem precisar apelar para grandes representações ou idéias pomposas, e sem comprar, a priori, nenhum mito sobre "a cultura política brasileira". Etnografia localmente situada que, não obstante, nos permite pensar questões fundamentais sobre o Estado e a democracia, bem como repensar a "grande política".

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2005
  • Data do Fascículo
    Out 2004
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