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Enciclopédia da Floresta: o Alto Juruá: práticas e conhecimentos das populações

RESENHAS

CARNEIRO DA CUNHA, Manuela e ALMEIDA, Mauro Barbosa de (orgs.). 2002. Enciclopédia da Floresta: o Alto Juruá: práticas e conhecimentos das populações. São Paulo: Cia. das Letras. 735 pp.

William Balée

Tulane University

Este volume nos oferece múltiplas visões de uma importante região da floresta amazônica — de sua diversificada biota, de sua história recente e das pessoas que a habitam, com sua própria compreensão localizada desses fenômenos. Ele registra, de um lado, o esforço intelectual dos praticantes da ciência e, de outro, dos detentores de um conhecimento, tradicional, com respeito a uma única floresta e duas epistemologias, por meio das quais o leitor aprende sobre a mesma floresta. Mas os autores fizeram um esforço admirável para desconstruir o divisor implícito entre compreensão intercultural e interepistemológica. Com efeito, diversos autores, com formações intelectuais divergentes e histórias pessoais distintas, reuniram-se para compor um produto saliente, singular, de seu conhecimento combinado sobre uma região particular da Amazônia que se destaca por uma pluralidade de critérios culturais, legais e naturais. Trata-se, de fato, e em parte por estas razões, de uma contribuição ímpar.

O livro divide-se em sete seções: introdução; descrição da região, habitantes e história recente; ciclos sazonais e calendáricos dos povos indígenas da área; atividades agrícolas e extrativistas, incluindo o uso do alucinógeno Banisteriopsis sp. (chamado de "cipó") pelos seringueiros; modelos indígenas e tradicionais de classificação da flora e fauna da região; dicionários de animais e plantas que combinam o saber local e o científico; e apêndices, que incluem um glossário, um indíce e biografias sinópticas dos autores e de seus principais consultores.

É possível evocar várias tentativas de apresentar uma cobertura temática — arqueológica, etnográfica, geográfica, botânica — de regiões específicas da Amazônia, como o Alto Amazonas, o rio Amazonas em si mesmo, o Baixo Amazonas e o estuário, em particular a ilha de Marajó, o Brasil Central e a bacia do rio Negro, entre outras. Trabalhos recentes sobre reservas da biosfera e entidades similares na Amazônia não brasileira, especialmente no Peru e no Equador (como Manu: The Biodiversity of Southeastern Peru; La Biodiversidad del Sureste del Perú, organizado por Wilson e Sandoval, 1996), realizaram uma cobertura consideravelmente detalhada da biota e paisagens locais, enfatizando aspectos como o endemismo, a alta diversidade de espécies e a conseqüente necessidade de conservação dessas áreas. O Smithsonian Atlas of the Amazon (2003) trata dos maiores rios da bacia amazônica, incluindo o próprio Amazonas, ao passo que a bela monografia de Nigel Smith, Amazon Sweet Sea (2002), situa o estuário em um quadro de referência panorâmico. Esses são, em geral, trabalhos analiticamente minuciosos, detalhadamente ilustrados, sobre uma ampla gama de fenômenos, embora pelo menos parte da riqueza cultural e lingüística verificada em todas essas paisagens tenda a ser encontrada apenas em volumes separados, escritos por pesquisadores com formação etnográfica. Em contraste, a Enciclopédia da Floresta apresenta o saber local lado a lado com o exame sistemático e científico da história cultural e natural da bacia do alto Juruá. Trata-se de um estudo interdisciplinar e intercultural de uma paisagem específica, da biota dessa paisagem e de seus habitantes humanos em particular.

Minha leitura desse livro é colorida por uma certa nostalgia. Em setembro e outubro de 1984, como pesquisador do New York Botanical Garden, acompanhei uma equipe de botânicos e biólogos liderados pelo Dr. David Campbell (agora em Grinnell College, Iowa) e por C. A. Cid Moreira, do INPA (Manaus), ao alto rio Moa, um tributário do Juruá, onde realizamos um inventário de três hectares de floresta de terra firme. Foi então que aprendi, com Campbell e os outros participantes, as técnicas envolvidas no inventário de árvores da floresta tropical amazônica — uma experiência a que eu recorreria, anos mais tarde, para realizar inventários similares entre povos indígenas da Amazônia oriental e alhures. Essa equipe de pesquisa e a flora que descreveu acham-se mencionadas na segunda seção do livro. A Enciclopédia evoca para mim aquele tempo e lugar, especialmente em sua descrição das pessoas (índios das famílias Katukina ou Pano, seringueiros de origem nordestina, seringalistas); a flora e fauna são também bastante similares às do Moa, como indicam os autores dos capítulos sobre florística. Com certeza, desde 1984, muitas coisas mudaram na região do Alto Juruá, sobretudo com o estabelecimento das reservas extrativistas e a maior articulação interétnica entre índios, seringueiros e outros. Uma história momentosa desenvolveu-se nos últimos quinze anos, e ela é bem captada neste volume.

Os editores chamam-lhe uma "enciclopédia", mas a designação, se entendida em um sentido convencional, literário, poderia ser questionada, uma vez que o livro não arrola em ordem alfabética exaustiva itens de interesse tópico. A Enciclopédia exclui, por decisão editorial, bibliografias e mesmo sugestões de leitura, embora referências ocasionais à literatura relevante possam ser encontradas, dependendo do autor do verbete. Os editores informam que "notas bibliográficas, exceto em raros casos, foram suprimidas" (:30), mas não dizem o porquê. Seria para criar uma impressão de paridade entre os capítulos escritos por cientistas (todos acostumados a citar referências em trabalhos submetidos a avaliação por pares) e aqueles compostos por seringueiros e índios, não treinados em semelhante tradição? Embora o livro contenha efetivamente um índice temático muito útil, é difícil lê-lo tematicamente, e captar assim sua mensagem sobre a unidade e diversidade dos tipos de saber existentes sobre a área em questão.

O livro tem elementos de atlas, de dicionário e, sim, de enciclopédia, todos ao mesmo tempo; também exibe traços de um relatório coletivo de pesquisa. Parcialmente por essa razão, vejo-o como uma obra de referência única. Não é feito para ser lido de uma vez, embora, para que se apreenda seu ponto, deva sê-lo do início ao fim (várias vezes), e não seletivamente, aos pedaços, como se leriam talvez os verbetes de uma enciclopédia convencional. Há um efeito cumulativo na maneira como se desdobram os capítulos (ou "verbetes") em cada seção. A estratégia parece ser a de apresentar o conhecimento em termos de uma ordem baseada no tipo de autoria, começando com artigos escritos segundo tradição acadêmica ocidental, para então passar a textos radicados em outra tradição de conhecimento, tradicional ou indígena, mais enigmática, talvez mesmo exótica. Ironicamente, isso resulta também em uma ordem de seções e capítulos algo evolucionista, pois os autores que abrem as descrições substantivas da floresta não são antropólogos, mas especialistas em botânica, entomologia e outras ciências naturais. O livro reparte-se, assim, em duas metades conceituais: uma divisão inicial contendo muitos materiais de ciência natural, e uma outra contendo materiais etnobiológicos (tradicionais, indígenas ou êmicos). As duas seções são articuladas por meio de descrições etnográficas e etno-históricas dos povos da região.

O livro focaliza os recursos naturais, isto é, a biota, embora, nas seções centrais, traga também descrições significativas dos atores humanos ao longo do tempo, alguns dos quais, aliás, estão entre os co-autores da Enciclopédia. O ritmo do volume pode ser percebido à medida que avançamos na leitura, partindo dos estudos sistemáticos da flora e fauna, das origens e da caracterização da floresta, para chegarmos aos estudos sobre os grupos indígenas da região: os Kaxinawá (de língua pano), os Ashaninka (de língua aruak) e os Katukina (de língua isolada), e sobre os seringueiros. Os autores dessas seções etnológicas prestam uma atenção progressivamente maior às concepções nativas e tradicionais de uma flora e uma fauna singulares.

De fato, há muito mais questões envolvidas aqui do que a simples classificação da biota da área por sistemas ocidentais ou científicos, de um lado, e sistemas indígenas ou tradicionais, de outro. A segunda seção, por exemplo, trata da diversidade biológica do alto Juruá tal como apreendida pela botânica e a entomologia sistemáticas, trazendo análises detalhadas de alguns tipos de espécies indicadoras (plantas e borboletas) observadas nos habitats específicos da região. Esta seção enfatiza a grande diversidade e a suposta natureza prístina das florestas do alto Juruá. Os autores desses capítulos não discutem a possibilidade de que qualquer fator humano possa ter estado envolvido na formação dessas florestas. Quanto a isso, cabe apenas lamentar que os editores não tenham incluído nenhuma análise arqueológica para testar tal suposição, pois é bem possível que algumas dessas florestas primárias sejam, de fato, antigas roças indígenas.

As pranchas fotográficas coloridas de anfíbios, borboletas, libélulas e lavadeiras, juntamente com as numerosas fotografias em preto e branco de plantas, seres humanos e outros organismos, conferem ao livro uma grande riqueza visual. As pranchas com as "borboletas indicadoras de capoeira e de floresta secundária", ou aquelas sobre "os anfíbios", são particularmente encantadoras. O leitor é também brindado com soberbas aquarelas de pássaros feitas por um artista ashaninka, Moisés Piyãko; elas mostram a vida tal como observada em seu habitat por alguém que o conhece bem. Há ainda numerosos outros desenhos, de peixes e outros organismos, feitos por artistas nativos (como as ilustrações nas páginas 543-575). Conforme implícito no título da quinta seção, "Como classificar o mundo", os sistemas nativos de classificação revelam-se ao mesmo tempo práticos para seus próprios propósitos e fundamentalmente diferentes dos esquemas da tradição científica. Como mostra o capítulo de Laure Emperaire, "Entre paus, palheiras e cipós", o dialeto do português usado pelos seringueiros não contém nenhum termo singular que englobe o mundo das plantas (o "reino" vegetal). Notadamente, a palavra "planta" refere-se apenas a "plantas cultivadas" (:389). Eu observei uma dicotomia implícita algo semelhante entre plantas tradicionalmente cultivadas e plantas não domesticadas, na etnobotânica dos Ka'apor da Amazônia oriental, o que parece sugerir um padrão mais generalizado na região. Os demais membros do reino vegetal são divididos, para os seringueiros, em paus, pauzinhos, matos, matinhos, cipós, jitiranas, ramas, palheiras, capins e vários outros termos e conceitos baseados, essencialmente, em traços morfológicos. Estes pareceriam corresponder ao que se refere na literatura como "formas de vida" [life forms] e "genéricos isolados" [unaffiliated generics], embora Emperaire evite encaixar o sistema classificatório dos seringueiros em um esquema mais geral de biologia folk. A classificação que Emperaire nos revela é tanto de base utilitária quanto de inspiração intelectualista, uma vez que plantas que não são úteis estão incluídas e nomeadas. Talvez esse resultado possa ser generalizado para outras sociedades da região.

O capítulo seguinte, bem mais breve, sobre a classificação animal dos seringueiros, escrito por Mauro Barbosa de Almeida e outros, sugere uma combinação similar de uma inspiração utilitária e outra intelectualista, como se, nas concepções tradicionais, estes pontos de partida não fossem diferentes ou conflitivos. Os animais são subsumidos em categorias morfológicas como "bichos de pêlo" (basicamente, mamíferos), "bichos de pena" e seres "das águas" — nesta classificação, morfologia e habitat se sobrepõem parcialmente. As classificações zoológicas dos Kaxinawá, Katukina e Ashaninka são apresentadas em seguida, sugerindo similaridades entre os sistemas. A esse material seguem-se os dicionários, começando por um longo capítulo sobre os "bichos de pêlo", que lista os mamíferos pelo nome em português, da anta ao tatu. É incluída na descrição de cada animal uma quantidade considerável de informações derivadas das várias culturas envolvidas no estudo. Sucedem-se então capítulos similares sobre os "bichos de pena" e os peixes. A apresentação substantiva do saber local sobre o ambiente conclui-se com capítulos separados sobre cobras, anfíbios e abelhas sem ferrão (as meliponídeas nativas, em contraposição às Apidae, abelhas italianas e africanizadas). Por fim, há um dicionário de vegetais, e o livro se encerra com breves biografias dos autores e daqueles que com eles trabalharam na produção do volume.

Em minha opinião, a Enciclopédia contém, como guia de referência completo para o alto Juruá, duas omissões principais. Primeiro, as teorias ali apresentadas sobre a diversidade florística da região são válidas, mas as recentes críticas a elas foram ignoradas. Os autores que tratam do tema usam o modelo do refúgio, sem mencionar outros modelos rivais, como a biogeografia de vicariância e a ecologia histórica. A segunda omissão, já mencionada, refere-se à ausência de qualquer informação arqueológica. Os editores não fornecem nenhuma pista de como um estudo da pré-história poderia ser útil para a compreensão do passado na região. Nesse livro, a história mais antiga começa com a história oral indígena, que permanece não datada; é a chegada dos seringueiros do Ceará e arredores, a partir dos anos 1850, que parece inaugurar um passado documentado para a região.

À parte essas omissões, só posso recomendar esse importante volume como um guia tremendamente útil da biota e população da área em pauta, como um exemplo admirável da colaboração entre cientistas, regionais e nativos e como uma apresentação belamente ilustrada de uma parte da floresta tropical amazônica brasileira. Ele interessará não apenas aos amazonistas de várias especialidades, mas também aos antropólogos, geógrafos e ecólogos tropicais de modo geral. Está claro que ele servirá de instrumento pedagógico nas comunidades de alguns de seus co-autores, a saber, entre os colaboradores indígenas e regionais do Alto Juruá, que poderão empregá-lo como uma referência para assegurar a continuidade do conhecimento cultural da população local. Todo amazonista deveria ter um exemplar em sua estante, e as bibliotecas especializadas em América Latina e América do Sul, em todo o mundo, deveriam igualmente adquirir esta Enciclopédia.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2005
  • Data do Fascículo
    Out 2004
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