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Poder, hierarquia e reciprocidade: saúde e harmonia entre os Baniwa do Alto Rio Negro

RESENHAS

GARNELO, Luiza. 2003. Poder, hierarquia e reciprocidade: saúde e harmonia entre os Baniwa do Alto Rio Negro. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz (Coleção Saúde dos Povos Indígenas). 257 pp.

José Antonio Kelly

CAICET (Centro de Investigación y Control de Enfermedades Tropicales, Simón Bolívar)

A fórmula "Outros, perigosos mas necessários", condensa, na literatura antropológica sobre a Amazônia, a necessidade sociológica dos afins e a necessidade político-ritual de outros humanos e não-humanos para a constituição ameríndia do "local" (parentesco e comunidade). Ela subsume a natureza ambígua da alteridade que, com sua combinação de poder destrutivo e creativo, precisa ser cuidadosamente domesticada para que seja possível beneficiar-se de sua criatividade – reprodução simbólica e material de pessoas e grupos – sem desencadear os perigos do poder excessivo que conduzem à desumanização da sociedade, remetendo-a de volta ao caos pré-cultural primordial que os personagens míticos lograram arduamente suprimir.

O estudo de Garnelo é uma demonstração clara de que tal proposição, nascida na investigação de sociedades ameríndias em seus "contextos tradicionais", é não só útil como necessária para a análise do envolvimento dos índios com o Estado. Dessa perspectiva, o livro deve ser saudado por apresentar uma discussão detalhada da cosmologia e organização social dos Baniwa como ponto de partida para a compreensão do complexo conjunto de relações (envolvendo aviadores, missionários católicos e protestantes, instituições estatais e organizações indígenas supra-locais) em que se viram historicamente enredados, oferencendo assim uma análise da etnopolítica baniwa firmemente enraizada nas teorias amazônicas da alteridade e do poder político e uma adição necessária aos estudos da etnopolítica ameríndia, os quais, muito frequentemente, obscurecem a relevância das formas culturais e sociais particulares que moldam as atividades e conceitos indígenas.

Talvez a principal estratégia analítica da autora seja a superposição dos contextos baniwa e estatais, explorando os efeitos mútuos das formas sociais e culturais baniwa e das formas estatais ou globais umas sobre as outras. Nessa migração de pessoas, objetos e idéias, Garnelo põe em relevo o equilíbrio entre continuidade e mudança, bem como as difíceis experiências dos líderes de aldeia, de base e regionais, enquanto mediadores que procuram articular as lógicas divergentes oriundas dos mundos dos Baniwa e dos brancos. Reconhecendo a força histórica do colonialismo e a persistência dos valores globalizados no Rio Negro, a autora enfatiza a forte indigenização das novas práticas e instituições. Formas sociais correntes são vistas como resultado histórico da interação de forças internas e externas, descartando-se as imagens seja de um Estado hegemônico esmagador, seja de uma sociedade hermeticamente fechada. Esse tipo de análise, retratada nos escritos recentes de Sahlins sobre o conceito de cultura, realiza uma fusão feliz entre posições gerais no debate antropológico e uma teoria especificamente ameríndia: a mencionada pregnância do exterior.

O livro consiste também em uma bem-vinda contribuição aos estudos de antropologia médica na Amazônia, explorando as implicações de diferentes políticas e moralidades (a técnico-administrativa, ou a estatal e a indígena, ou a do parentesco) presentes na operação do sistema de saúde entre os Baniwa, chamando a atenção para questões que ultrapassam o domínio médico (geralmente privilegiado na literatura devotada à articulação dos sistemas médicos indígenas e ocidentais).

O trabalho de Garnelo insere-se em uma antropologia política das relações interétnicas, com uma ênfase específica na saúde e doença — uma escolha que não é fortuita. A representação da doença entre os Baniwa é constitutiva de relações de poder entre gêneros e entre gerações. Trata-se de uma forma distribuída de poder político implicada em um esforço constante para manter afastados os perigos do comportamento descontrolado, assegurando assim a reprodução de um modo de vida humano. A doença sempre envolve um agente oculto, um afim insatisfeito, um espírito yoopinai, uma liderança rival invejosa. Da mesma maneira, a doença atinge aqueles que desviam-se das normas estritas de comportamento moral e das práticas corporais como dieta, respeito a tabus alimentares, higiene corporal — isto é, atinge sobretudo os homens jovens, que ainda não internalizaram totalmente a moralidade (masculina) baniwa, e as mulheres, a quem não se credita a capacidade de temperar seus impulsos. Essas convenções baniwa também operam nos novos contextos da etnopolítica, onde o poder político capilar baniwa (com os homens mais velhos na posição privilegiada) se aplica aos jovens líderes inter-étnicos, regulando sua performance perante os brancos.

O livro divide-se em três partes, expandindo progressivamente a análise das relações em direção às esferas externas do espaço social baniwa.

A primeira parte descreve o caráter social das relações com a natureza e o panteão espiritual. As relações com essas pessoas não-humanas, conceitualizadas prototipicamente como afins agressivos, são responsáveis por uma série de doenças contemporâneas, perpetuando as diferentes formas de reciprocidade negativa existentes nos tempos míticos entre Nhiãpirikoli e seus irmãos ("nós" mítico), de um lado, e outras espécies-povos agressivos (Outros míticos), de outro. Garnelo prossegue descrendo o conjunto de doenças possíveis a priori, seus sintomas associados e contextos sociais (fala ruim, morte por vingança, inveja, impulsos descontrolados etc). Essa parte encerra-se com exemplos de narrativas de doenças e trajetórias terapêuticas — as realidades a posteriori conectando cada evento patológico a um conflito social. O exemplo mais notável é o de um bem sucedido líder de organização indígena que sofre de males físicos e psicológicos constantes. Seu longo caminho terapêutico levou-o de tratamentos fitoterápicos a rezadores e xamãs, passando pelo posto do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) e por uma bateria de exames em Manaus. Concluiu-se que ele fora vítima de feitiçaria manhene devido a uma série de conflitos entre fratrias. O episódio revela como a excessiva individuação nas organizações indígenas é contrariada por forças que negam tal diferenciação em prol da manutenção do todo social. Essa é uma das contradições intrínsecas que o livro desnuda entre a lógica do Estado — partilhada pelas organizações indígenas em busca de recursos — e aquela da sociedade baniwa — à qual essas mesmas organizações devem também conformar-se para poderem se legitimar.

A segunda e terceira parte do livro ampliam o escopo da análise para o plano da vida inter-aldeã, e das relações com as organizações indígenas de base e regionais. Inúmeros aspectos explorados por Garnelo revelam a continuidade das convenções culturais e sociais baniwa tal como se articulam às convenções dos brancos, estatais ou globalizadas, e são assim transformadas. Em termos gerais: se, no passado, os jovens estavam na linha de frente das relações guerreiras com inimigos, dirigidas pelos anciãos, hoje eles servem a estes últimos liderando as batalhas com papel e caneta contra o Estado (:121). Em termos da estética da política, a convenção baniwa incide fortemente sobre o caráter da liderança de aldeia ou nas organizações indígenas, sua legitimidade e discurso. Por exemplo, as relações entre os líderes de aldeia e suas comunidades são replicadas naquelas existentes entre os primeiros e os líderes de organização indígena: ambas exibem os ideais da reciprocidade de parentesco, em termos dos quais legitimação e apoio políticos são trocados por bens e serviços. Os atributos ideais das lideranças das organizações são também aqueles que epitomizam a moralidade (masculina) baniwa: auto-controle, pensamento firme, habilidade de elevar a moral comunitária, fala persuasiva, talentos de mediação etc. Além disso, Garnelo argumenta que a necessidade de estabelecer representantes gerais dos Baniwa revitalizou as hierarquias inter-sib e de senioridade, pois estas tornaram-se critérios de seleção de líderes. Os sibs tradicionalmente considerados como "cabeças", capazes de guiar a comunidade, são mais favorecidos na constituição das diretorias das organizações e, no interior deles, os irmãos mais velhos são os mais frequentemente escolhidos.

O outro lado desta moeda são os múltiplos pontos em que é necessário buscar ajustar as diferentes lógicas, baniwa e estatal. As organizações indígenas precisam, por exemplo, equilibrar a lógica das instituições democráticas, segundo a qual todos são iguais perante o Estado, com a lógica do parentesco, nos termos da qual os consanguíneos esperam um tratamento preferencial. O resultado são formas políticas ecléticas, como diretorias periodicamente eleitas mas às quais apenas os sibs hierarquicamente superiores têm acesso.

Nessa mesma direção, Garnelo sugere que a lógica territorial, imposta pelo Estado, de organizações indígenas supra-locais — em busca de maior influência política — tem seus limites. Grandes organizações que atravessam divisões entre fratrias ou religiões (católicos/protestantes), são menos coesas e efetivas que as organizações menores, que mantêm-se no interior dessas fronteiras. Da mesma maneira, as identidades pan-rio-negrinas ou pan-indígenas, que circulam nas organizações regionais ou nacionais na forma de discursos para fora, dirigidos ao Estado, não são realmente concebíveis no plano da aldeia, onde os marcadores identitários relevantes são sibs (consanguinidade), fratrias (afins) e povos vizinhos.

Conflitos similares entre convenções aparecem na operação do DSEI, onde os recursos disponíveis para as atividades sanitárias são alocados segundo critérios epidemiológicos e logísticos. Da perspectiva das aldeias, remédios, radios, combustível e motores deveriam ser distribuídos segundo o parentesco e de acordo com a reciprocidade devida entre líderes e seguidores. Dessa maneira, recursos sanitários penetram a vida aldeã como capital político.

O último tema importante discutido é a história e o presente do movimento indígena do Rio Negro. Inicialmente caracterizado pela atuação de alguns líderes carismáticos politicamente militantes, mas com pouca penetração nas comunidades, o perfil agora é o de múltiplas organizações indígenas menores voltadas para a geração de projetos e compostas por líderes de perfil mais técnico-administrativo. Essas organizações passaram de grupos de pressão a substitutos do Estado na provisão de serviços. O acordo recente entre a FOIRN e a FUNASA é exemplar. Essa passagem da militância política à provisão de serviços é ainda muito recente para que se possa julgar seus resultados, mas Garnelo oferece disso uma discussão sugestiva, mostrando como o movimento de recuo do Estado, transferindo responsabilidades ao "terceiro setor", incluindo ONGs e organizações indígenas, coloca estas últimas na posição ambígua de organizações simultaneamente "militantes" e "profissionais" (:194), encurraladas entre as exigências das fontes de financiamento e as demandas dos receptores dos serviços (as comunidades). Por outro lado, a parceria amplia a capacidade de resposta da FOIRN às demandas que permanecem sendo seus problemas cotidianos (saúde, educação, bens, empregos). Provê também uma oportunidade de combater o estigma dominante da suposta incapacidade política e intelectual dos índios, subjacente a seu status histórico de tutelados.

Encerro com alguns comentários inspirados por minha própria experiência de campo com o sistema de saúde voltado para os Yanomami da Venezuela. Há muitas ressonâncias entre essas duas situações onde, como diz Garnelo, a "economia do dom" encontra a "economia da mercadoria" (:109); onde os recursos sanitários são "fatos sociais totais" incorporados à vida indígena como parte de um projeto diferente daquele sugerido pelos critérios da saúde pública. Desse ponto de vista, a análise de Garnelo poderia ser enriquecida com uma inspeção mais detalhada das perspectivas e reações dos não-Baniwa (médicos indígenas e brancos, enfermeiras, planejadores, outros trabalhadores da saúde), e do peso dessas visões na definição das relações em pauta. Similarmente, o foco nas relações de poder poderia ser complementado por uma discussão mais profunda do significado, no pensamento baniwa, das relações com os brancos e outros índios, isto é, uma discussão da geografia social nativa e de sua relevância (ou não) na constituição das idéias de "progresso", "civilização" e "tradição", estreitamente relacionadas às noções de identidade que podem influenciar atitudes e valores associados com os bens e serviços dos brancos (saúde e educação em particular). Isso posto, não posso terminar sem louvar a bem-sucedida descrição de Garnelo da criatividade baniwa na sua articulação com a modernidade, um engajamento com os múltiplos contextos da vida amazônica contemporânea que poucos livros revelam.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2005
  • Data do Fascículo
    Out 2004
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