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Intrigas e questões: vingança de família e tramas sociais no sertão de Pernambuco

RESENHAS

MARQUES, Ana Cláudia. 2002. Intrigas e questões: vingança de família e tramas sociais no sertão de Pernambuco. Rio de Janeiro: Relume-Dumará. 352 pp.

Christine de Alencar Chaves

UFPR

Originalmente uma tese de doutorado defendida no PPGAS/MN/UFRJ, o livro de Ana Cláudia Marques apresenta um tratamento inovador do fenômeno das "brigas de família" no sertão nordestino. Contrariando a perspectiva usual que as entende sob a ótica bipolar do conflito entre familismo e ordem pública, como remanescente arcaico do poder privado em face da suposta fragilidade do poder do Estado, Marques expõe ao leitor um complexo painel formado por fluxos de relações de diferentes ordens — familiar, política, jurídica, moral — que se sobrepõem, colaboram, opõem. Seguindo com segurança o tema épico sertanejo — e objeto clássico do nosso pensamento social — das lutas de família, o livro oferece uma compreensão abrangente dos meios de produção e reprodução de um universo social localizado que, no entanto, se articula com a sociedade nacional e a operacionalização de suas modernas instituições.

A pesquisa realizada no sertão de Pernambuco resultou em uma etnografia minuciosa, traçada através da intricada trama de diferentes episódios, das sutis mas significativas variações de interpretação dos atos e motivações expostas nas narrativas, das ambigüidades expressas em intervenções inusitadas de agentes estatais e no modo de apropriação do conflito pelos poderes do Estado — resultante do recurso que os próprios intervenientes locais fazem do seu aparato jurídico-administrativo. Assim, a autora faz uma opção inequívoca pelo deslindamento do fenômeno das "brigas de família" por meio da lógica dos atores, o que lhe permite revelar a dinâmica de funcionamento dos conflitos e, resultado apenas aparentemente paradoxal, iluminar as interconexões com a sociedade abrangente permanentemente em jogo na constituição de comunidades locais.

O texto expõe as complexidades do tema e a labilidade das categorias por via de uma sucessão de casos paradigmáticos que, no intrincamento concreto dos atos e significados, vão paulatinamente apresentando aspectos novos das "brigas de família". Como não poderia deixar de ser, a etnografia é acompanhada do domínio da literatura antropológica clássica e recente, trazida para iluminar os narrativas e os eventos com os quais a autora apresenta o seu tema, assim como para esclarecer as opções interpretativas com que ela vai construindo o texto. Neste aspecto, duas particularidades merecem destaque: o rico e nuançado tratamento conferido ao conflito como categoria analítica, chave interpretativa das "brigas de família", e o cuidado com que, recortando-as como objeto de pesquisa, evita sua naturalização. Trata-se de duplo resultado de um movimento único: reconhecer o conflito como constitutivo da sociedade, em sua capacidade de gerar e desintegrar vínculos e fronteiras sociais, permite à autora ressaltar os processos de constituição e desarticulação de grupos, inclusive os grupos familiares. Ao enfocar diferentes episódios de brigas de família no sertão, Marques pôde acompanhar as fissões mas também o estabelecimento e recomposição dos nexos de solidariedade familiar, realçando seu caráter contingente e circunstancial.

Antes de avançar nesta que é uma das contribuições fundamentais do trabalho, convém elucidar o significado atribuído às duas categorias que intitulam o livro. "Intrigas" e "questões" são categorias nativas até certo ponto intercambiáveis na designação de desentendimentos acerbos que implicam na extrapolação dos limites da agressão física, resultando em um estado de relações permanentemente tenso. Não apenas indivíduos são implicados em tais relações antagônicas, elas mobilizam coletividades cuja insígnia principal é representada pelo nome de família, sobreposto pela remissão a determinado território ou localidade. Para efeito analítico, a autora amplia, porém, pequenas diferenças de ênfase nos sentidos que as categorias nativas portam para ressaltar aspectos ou momentos específicos desse estado de relação conflitivo entre as coletividades envolvidas. A "questão" corresponderia à fase do conflito em que as vinganças se sucedem, as ameaças são ativas e o antagonismo recrudesce; a "intriga" enunciaria a relação nascida do conflito, sendo tendencialmente eterna porquanto a "possibilidade de retaliação e da paz a alimenta".

Os dois primeiros capítulos do livro são dedicados a expor e esclarecer os traços fundamentais de caracterização do fenômeno. Uma dessas tarefas é sem dúvida a elucidação das condições que o propiciam e terminam por configurar uma de suas regularidades mais surpreendentes. Para Marques, as "intrigas" e as "questões" são meios de estabelecer distinção entre parceiros tendencialmente iguais. Segundo a autora, uma das condições para que o conflito se efetive e perdure, enquanto questão, é a equivalência, social e moral, dos antagonistas. A tensão entre cumplicidade e antagonismo normalmente implicada na relação entre próximos é a ambiência na qual as ações de vingança nas "brigas de família" surgem. Uma das muitas qualidades do texto está em apresentá-las como um campo de forças marcado pela produção da diferença entre iguais, da alteridade por intermédio do conflito, mostrando como nessa luta para manter-se igual e ao mesmo tempo diferente, as próprias famílias se constituem e reconfiguram. Por fim, as questões sertanejas inauguram uma disputa entre iguais para estabelecer, de algum modo, uma supremacia sobre o oponente — no limite expressa pelo desterro. Os casos exemplares trazidos pelo livro confirmam essa constatação, sendo os capítulos organizados de modo a mostrar o crescendo de envergadura e implicações sociais e políticas que os conflitos vão assumindo com a elevação da escala social das famílias implicadas. Com um texto cuidadosamente elaborado e minucioso na apresentação das múltiplas faces das "intrigas" e "questões", o livro deixa, porém, o leitor curioso quanto às articulações entre superiores e inferiores sociais que elas possivelmente propiciam, em um universo social de outra parte caracterizado pela "hierarquia sem segregação".

Ao realçar os processos de fissão e recomposição dos grupos nas "brigas de família", Marques revela como o parentesco se constitui também pelo conflito. Além do parentesco, as questões parecem supor e dinamizar alinhamentos de diferentes ordens, sejam elas relações de vizinhança, amizade, vínculo político e, quiçá, de dependência. O livro mostra que elas criam solidariedades e o seu oposto. Mas também se pode inferir dos dados apresentados que se as questões são operatórias tanto no plano das famílias quanto do território, reconfigurando-os localmente, o desterro que elas suscitam são um outro modo de reconstituição desse universo social para além das fronteiras da localidade. É, por outro lado, digno de nota que, enquanto as "brigas de família" forjam alteridades — muitas vezes expulsando-as — pela criação de uma supremacia entre equivalentes sociais e morais, mais de uma etnografia mostra as festividades sertanejas reforçando diferenças de status justamente por congregarem inferiores e superiores sociais e, assim, constituírem um plano comum que ritualiza sua igualdade ou equivalência moral.

Buscando o sentido social das brigas de família, Marques reconhece nos conflitos disputas em torno dos "termos da relação entre as partes", que são, em última instância, definidos por avaliação pública no interior de uma comunidade moral. Embora não haja uma delimitação exclusiva de temas nos capítulos do livro, pode-se dizer que no terceiro deles se delineiam os contornos dessa comunidade moral formada por relações que se fazem e refazem no contexto de reputações em negociação. As brigas de família colocam em jogo a força, o poder, o prestígio das coletividades e, inextricavelmente a elas ligados, de indivíduos que se singularizam pela "fama". O sentido dos atos, assim como a natureza e pertinência das causas que motivam os agentes entram em confronto perante um público que acompanha, ativamente, o desenrolar dos acontecimentos. Atuando como testemunha e árbitro, o público participa do processo de negociação de valores ativado pelo conflito — decisões e ações são exibidas, mediadas e pautadas pela opinião. Assim, o livro mostra como as brigas de família são necessariamente públicas e envolvem redes sociais as mais diversas, criando um tenso campo de negociação em que as reputações e os próprios valores são objeto de disputa. Ao mesmo tempo que orientadores das ações e decisões, os valores comungados são objeto de negociação. Assim, o conflito põe em jogo a delimitação das qualidades aceitáveis e as condições em que o são; a definição das regras de conduta e o significado dos atos. Ele coloca em negociação o significado social da violência.

Aqui é importante observar que o reconhecimento desse estatuto constitutivo do conflito, que (re)define atores, identidades, reputações, fronteiras e valores sociais, assim como a identificação das múltiplas dimensões do público que ele ativa são traços comuns a diversos trabalhos publicados na coleção Antropologia da Política. A partir de um projeto comum que valoriza os recortes etnográficos da política, contrariando perspectivas normatizadoras, algumas das etnografias da coleção têm revelado elementos recorrentes que parecem atestar o estatuto próprio dos conflitos e a natureza multifacetada do público que ele cria. Além disso, sem incorrerem em visões reducionistas sobre equilíbrio ou ruptura, continuidade ou desagregação, próprias das abordagens funcionalistas, elas têm apontado o conflito como instrumento metodológico fundamental de compreensão da sociedade.

Exatamente por não isolar o conflito do campo social de que faz parte, Intrigas e questões permite reconhecer os mecanismos pelos quais ele é condição de produção e reprodução da sociedade. No quarto capítulo especial ênfase é dada justamente em mostrar como as brigas de família dinamizam fluxos de relações: desarticulam vínculos, constituem grupos — entrelaçando indivíduos ligados por consangüinidade, casamento, vizinhança ou amizade — e atravessam fronteiras institucionais. Marques demonstra que, apesar de a solidariedade familiar ser indispensável para a existência do sistema de vingança, as brigas de família são importantes para a compreensão das relações familiares elas mesmas, ou seja, dos processos de desintegração e agregação de seus segmentos. Vemos que as insígnias representadas pelos nomes de família nem sempre representam grupos que operam como tais nas relações sociais. Se razões de prestígio, proximidade, adesão podem implicar a preferência por dado sobrenome, a pertença reconhecida a certa família não necessariamente requer que se lhe envergue verdadeiramente o nome. As entidades sociais que são as famílias sertanejas são provisórias, ambíguas, relativas. As fronteiras grupais estão sempre em definição e as pertenças sociais jamais são definitivas.

Como no anterior, no quinto e último capítulo a autora detém-se na descrição e análise de brigas de grandes famílias, aqui salientando como o isolamento de domínios sociais como o familiar e o político, o doméstico e o público perde sentido. Tais domínios são simples resultado de uma opção analítica: nas relações efetivas é impossível separá-los. Nas famílias de maior envergadura e influência, por exemplo, os grupos das brigas, das disputas políticas, das esferas de prestígio das instituições — jurídicas, administrativas e políticas —, da solidariedade doméstica sobrepõem-se e entrecruzam-se, sem serem idênticos. Os diferentes papéis desempenhados por indivíduos em contextos diversos implicam-se mutuamente: como as fronteiras grupais são sujeitas a trânsitos, os papéis sociais comportam ambigüidades. O mesmo pode ser dito das instâncias institucionais e do uso que os atores sociais fazem de seus dispositivos. Aqui também operam relações de força, prestígio e poder, assim como tentativas de legitimação de seu uso. A perspectiva de Marques é iluminar — sem valoração — exatamente as articulações que os episódios das brigas de família comportam. Essa opção analítica tem por resultado revelar composições entre lógicas próprias do Estado e a que anima as "questões": com agentes destas acionando instrumentos modernos e legais — como a Justiça e a polícia — e agentes estatais assumindo, por exemplo, um papel de mediação entre as partes. Se ocupantes de cargos públicos são alvos preferenciais nas "questões" é porque seu prestígio e influência política pode interferir nos desdobramentos na Justiça e na polícia e, portanto, nos cálculos dos oponentes. Longe de ser simplesmente o preenchimento pelo "poder privado" de uma ausência ou deficiência do "poder público", trata-se, de mútuo condicionamento e apropriação, em processos de negociação e composição.

De tessitura complexa, acompanhando as narrativas, a particularidade de episódios, com sua seqüência de atos e disputa de interpretações sobre o sentido dos mesmos, Intrigas e questões revela as articulações entre família, política e violência. O enfoque escolhido por Ana Cláudia Marques mostra sua rentabilidade: centrado nos agentes, em suas práticas e valores, ele descortina um campo social tecido por feixes de relações, redes de sociabilidade que não são nem homogêneas nem fixas, pertenças dinâmicas em que os grupos efetivos são efêmeros e circunstanciais, dando inteligibilidade ao fenômeno das "brigas de família" em toda a sua riqueza de entrelaçamento de lógicas privadas e públicas. Com certeza é um livro que se tornará referência obrigatória.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2005
  • Data do Fascículo
    Out 2004
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