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Voices of The Magi: enchanted journeys in Southeast Brazil

RESENHAS

REILY, Suzel Ana. 2002. Voices of The Magi: Enchanted Journeys in Southeast Brazil. Chicago e London: The University of Chicago Press. 266 pp.

Wagner Neves Chaves

Doutorando, PPGAS/MN/UFRJ

Voices of The Magi: Enchanted Journeys in Southeast Brazil, de Suzel Reily, é uma importante reflexão sobre a performance musical nos rituais do catolicismo popular — na folia de reis, em particular. Trata-se de um bom exemplo de como uma investigação desenvolvida a partir de uma região de fronteira disciplinar – o livro situa-se na interface entre antropologia e etnomusicologia – possibilita a discussão de amplo espectro de questões, contribuindo decisivamente para, pelo menos, duas áreas do conhecimento antropológico: a primeira, mais geral, diz respeito ao campo de estudos do ritual, tema clássico da disciplina que vem se renovando nas últimas décadas numa proliferação de perspectivas, como as que se relacionam com as abordagens performativas ou com o que se convencionou chamar de uma "antropologia da experiência" (perspectivas essas que, como veremos, são cruciais na construção do livro em questão); a segunda é sem dúvida a das discussões sobre cultura popular, mais especificamente sobre catolicismo popular e suas relações complexas com os domínios erudito e/ou oficial.

Em suas 266 páginas, divididas em nove capítulos que se estruturam de acordo com a seqüência da jornada ritual da folia — dos preparativos à festa de reis no dia 6 de janeiro, passando pelos ensaios e visitações aos devotos — Reily nos apresenta, em uma narrativa clara e muito bem escrita, "como as comunidades de folia constroem experiências de totalidades fragmentárias através da coerência contraditória de suas realidades encantadas" (:25). O universo de sua pesquisa é a cidade de São Bernardo do Campo, no ABC paulista, onde desenvolveu trabalho de campo, em curtas viagens, durante três anos (de 1986 à 1989). Nos limites de uma resenha como esta, não pretendo de maneira alguma esgotar as inúmeras discussões e propostas levantadas no livro ou dar conta de seu conteúdo. Meu propósito aqui é tão-somente apresentar o que considero as linhas centrais do trabalho, desde já recomendando sua leitura.

A questão central de Voices of The Magi é entender como os participantes das jornadas das folias de reis, por meio do fazer musical, constroem e se inserem num espaço sacralizado, "encantando" na terra seus ideais sociais, entre os quais o "imperativo moral da reciprocidade" é sem dúvida o principal. Desenvolvendo essa questão, que perpassa todo o livro, Reily descortina um espectro variado de discussões, como as que envolvem as relações entre catolicismo popular e catolicismo oficial; o papel da performance musical na análise do ritual; a visão de mundo e o ethos dos participantes da folia; a relação entre hierarquia na organização e estruturação dos grupos e igualdade nas representações e na base ética; o estatuto da experiência no ritual e sua articulação com as representações compartilhadas; as relações entre ritual, cotidiano e contexto social mais amplo; a folclorização da tradição, entre outros. Enfim, o livro traz uma gama de temas que se sucedem e se justapõem, criando no leitor múltiplas associações e estímulos. Mas, assim como acontece com o folião que participa da jornada da folia de reis, também conseguimos, ao final da leitura, integrar esses estímulos/temas numa totalização, embora esta, diferentemente da vivida como "experiência religiosa", seja proporcionada pela visão "holística" da autora.

Na abertura do livro, ao apresentar o tema central do trabalho, Reily explicita dois níveis que estruturam sua análise: "As jornadas da folia tanto fazem parte quanto estão separadas da vida cotidiana. Elas estão embutidas nos padrões da vida social diária, mas também são espaços especiais que intensificam a experiência social através do fazer musical e da intensa sociabilidade"(:1).

Um primeiro nível, mais sociológico, envolve a investigação das articulações complexas entre domínios como o ritual (centrado na música), o cotidiano (relações familiares e comunitárias) e o contexto sócio-histórico mais abrangente (mobilidade, padrões de subsistência e atividades econômicas na região desde os tempos coloniais até os dias de hoje). Nessa direção, Reily vê o espaço ritual como um "fato social total", porta de entrada privilegiada para se ter acesso à vida social de migrantes rurais engajados em atividades do catolicismo popular. A pesquisa revela que em um contexto urbano, onde se deparam com uma situação de pobreza e marginalidade, a folia de reis se torna um dos únicos espaços nos quais os migrantes podem expressar os princípios morais da "solidariedade" e "obrigações mútuas", definidores da base ética do catolicismo popular. "Nesse ambiente hostil, as atividades da folia têm produzido um meio de criação e sustentação da rede de auxílio mútuo" (:2).

Partindo dessa constatação e levando em consideração as reflexões de Antonio Gramsci, Reily analisa o "popular" como uma realidade dinâmica, que se integra de modo complexo à vida, visão de mundo e aspirações das classes populares. Nessa direção, o catolicismo popular — dimensão religiosa desse "popular" mais geral — é caracterizado como um domínio em contínua tensão, esforçando-se para manter a coerência entre doutrina religiosa, experiência ritual e vida diária dos devotos. Essa tensão, apesar de constitutiva dos sistemas religiosos em geral, é mais evidente no caso da religiosidade popular, em que as negociações se dão tanto no plano imediato da ação ritual (nas interações face a face), quanto no plano religioso mais geral (entre o popular e o oficial).

Ao aprofundar a análise dessas relações no plano religioso entre catolicismo popular e catolicismo oficial, a autora mostra como as narrativas presentes no universo da folia de reis são construídas fora dos temas de ampla difusão no mundo cristão. Nesse sentido, as histórias são substancialmente recriadas e muitas vezes se opõem às interpretações ortodoxas. Ao se apropriarem de temas cristãos, os foliões têm sido seletivos, silenciando alguns elementos, enfatizando outros, interpretando o material de modo a integrá-lo em suas experiências de vida como membros das classes populares (:160).

Para Reily, apesar de não agir com o propósito político explícito e público, como os movimentos sociais ou entidades de classe, a folia de reis não deixa de atuar politicamente. A "moralidade subalterna", visão da lei divina como a lei da reciprocidade instaurada na terra e que a folia procura atualizar a cada jornada, está em contraste direto com suas experiências do dia-a-dia. É nessa direção que a autora interpreta a figura ambígua e intrigante do Herodes, que na folia é representado pelo Bastião, como o representante da reciprocidade negativa, da acumulação e, em última instância, do patrão. "Muito embora (ao menos nesse momento) a tradição da folia não se relacione com ações políticas públicas, ela pode ser vista como parte de uma rede infrapolítica, promovendo cobertura segura para a construção de hidden transcripts e para a criação da integridade cultural" (:20-21).

Num segundo nível da análise, mais denso teoricamente e de onde são tiradas importantes contribuições para o estudo do ritual e da ritualização, Reily investiga o ritual em seus aspectos intrínsecos e gerativos. Nessa direção, volta-se para a discussão de questões que envolvem a eficácia do ritual, sua especificidade como meio comunicativo e o papel crucial desempenhado pela música e pelo fazer musical na articulação entre experiência pessoal e herança cultural compartilhada.

Em sua refinada etnografia do contexto ritual centrada na performace musical, Reily mostra como a música contribui decisivamente para que os participantes vivenciem momentaneamente o sagrado. Para tanto, tem como pressuposto o argumento de que a participação em uma performance musical no contexto religioso é um meio eficaz de orquestração ritual, permitindo aos participantes proclamar suas verdades religiosas e coordenar interações —, recriando assim os ideais sociais presentes em suas crenças religiosas. Para entender o modo específico de orquestração do ritual religioso por meio da performance musical, a autora usa a categoria "encantamento" [enchantment]. Em suas palavras, "O encantamento cria um domínio experiencial no qual os devotos adquirem relances da ordem harmoniosa que poderia reinar na sociedade, proporcionando adesão de todos aos preceitos morais sublinhados pelo discurso religioso" (:3). O conceito de "encantamento", apesar de enfatizar a dimensão experiencial, também procura circunscrever a interpretação dessa experiência. Se, por um lado, o conteúdo do que é experienciado é informado culturalmente, por outro, apenas através da experiência as representações culturais se tornam significativas no nível pessoal.

Para explicar como a música no contexto ritual da folia de reis produz a experiência do "encantamento" nos participantes, Reily, em diálogo com autores como Richard Baumam, Maurice Bloch, James Fernandez, John Blacking, entre outros, avança na discussão das propriedades específicas desse meio comunicacional. Inicialmente, através de abordagem performativa, procura mostrar como, no contexto ritual, a comunicação se torna progressivamente mais musical, formalizada e repetitiva na medida em que diminui seu caráter referencial e semântico. Em seguida, e ainda diretamente ligada à idéia anterior, mostra como essa estrutura seqüencial e fixa do ritual está envolvida por uma multiplicidade de meios comunicacionais, criando um aglomerado de estímulos sensoriais que se articulam formando amplas redes de associações. No terceiro momento, analisa como a performance musical, ao promover "a experiência ritual da relatedness" (:14), contribui decisivamente para a criação de um mundo ideal moralmente constituído. Para desenvolver esse último ponto, a autora parte tanto da observação das interações concretas durante o fazer musical quanto da análise das concepções dos foliões sobre música. Por meio de uma minuciosa "etnografia do fazer musical" centrada nas relações sociais de produção musical, ela mostra como a sociabilidade é o objetivo último do fazer musical.

Esses dois níveis (sociológico e o performativo) articulam-se de modo complexo na análise de Reily. A performance musical é, sem dúvida, o evento privilegiado para que se observem essas articulações, e é a própria autora quem sintetiza esse importante ponto: "O poder persuasivo do 'encantamento' se encontra em sua capacidade de permitir que os participantes visualizem-se dentro da ordem moral de suas crenças religiosas. Participando do fazer musical, constroem e se colocam dentro de uma realidade alternativa que lhes permite adquirir vislumbres transitórios de um mundo governado por suas visões da lei natural de Deus" (:219).

A perspectiva desenvolvida em Voices of The Magi por Suzel Reily vai muito além de uma análise formal dos sons em si, da música como produto, concentrando-se primordialmente na investigação das interações sociais envolvidas na produção musical. Em suma, podemos afirmar que uma das contribuições originais desse instigante e sugestivo trabalho está em nos revelar as amplas possibilidades analíticas de um objeto que, apesar de significativo em muitos contextos de pesquisa, tem sido pouco tematizado na antropologia.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2005
  • Data do Fascículo
    Out 2004
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