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Heroína: Lisboa como território psicotrópico nos anos noventa

RESENHAS

VASCONCELOS, Luís. 2003. Heroína. Lisboa como território psicotrópico nos anos noventa. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais. 146 pp.

Catarina Frois

Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa

Heroin / will be the death of me

Heroin / it's my wife and it's my life

("Heroin" – Velvet Underground)

Heroína. Lisboa como território psicotrópico dos anos noventa, de autoria de Luís Vasconcelos, tem como base a sua tese de mestrado em antropologia, defendida no ISCTE. Após sua leitura, ficamos com a sensação de que estamos diante de uma obra bem escrita, bem pensada e que sugere que o autor está preparado para novos vôos e estimulantes incursões pelos "territórios" que fazem a antropologia.

À semelhança do que tem sucedido com trabalhos de outros autores — vide, por exemplo, o vol. XXXIV, nº 153 da revista Análise Social (2000), nomeadamente os artigos de Miguel Chaves e Artur Valentim, ou a excelente etnografia realizada por Luís Fernandes (1998) em um bairro da cidade do Porto —, somos convidados a refletir, de forma inovadora e pertinente, sobre a equação cidade-droga-marginalidade(s).

Propondo-se a fazer "uma análise interpretativa do discurso de utilizadores de heroína" (:13), o autor oferece-nos uma outra dimensão da cidade de Lisboa, de como o uso de drogas marca as calçadas, ruas e esquinas, com os seus próprios tempos, cheiros e sentidos. Para tal, utiliza o discurso direto e pessoal de seis informantes — três homens e três mulheres, sendo que dois deles se constituem como casal — que, no momento em que foram contactados, estavam procurando interromper o uso de drogas, tendo recorrido a Centro(s) de Atendimento a Toxicodependentes (CAT) em Lisboa.

O livro está dividido em cinco capítulos. O primeiro fornece uma introdução ao objeto de estudo e trabalho de campo e o quinto remete a uma conclusão geral. Além destes, temos três capítulos que constituem o corpo central da obra e que, pela forma como são apresentados, quase que poderiam ser considerados isoladamente, apesar de estarem perfeitamente articulados entre si. Ou seja, têm princípio, meio e fim, como se estivéssemos nós próprios, com o autor e as personagens que nos apresenta, nos interstícios de uma história vivida e vivencial.

Falo de história e de personagens porque é justamente aqui que Luís Vasconcelos revela a pertinência do trabalho feito: mais do que simples narrativas que o etnógrafo reinterpreta à luz das teorias sociais, o autor capta a essência dos relatos que lhe são feitos, compreendendo que os seus informantes performatizam o seu próprio desempenho e racionalizam duplamente o seu passado e o uso de drogas, à luz não só das suas experiências diante de si mesmos, mas também de seus interlocutores. O que não significa, como o próprio autor reconhece, que esteja diante de "uma espécie de deriva ficcional" (:17) levada a cabo por aqueles que estuda.

O capítulo II trata dos "itinerários de uso" dos seis informantes, desde que iniciaram o consumo de drogas até o momento em que foram entrevistados e que pararam (ou não) com este uso. A descrição do autor permite-nos visualizar aqueles que iremos acompanhar, bem como o seu percurso de vida, desde a tomada da primeira droga ou bebida alcoólica, à utilização habitual (e preferencial) de heroína, e a altura da vida em que decidem abandonar o consumo e procurar ajuda terapêutica.

O capítulo III, intitulado "Heroína e agência", conceitualiza de que forma o uso continuado de heroína está no centro da vivência quotidiana com o(s) outro(s); de que modo a "ressaca" se impõe como leitmotiv para mais um "caldo" e para o subseqüente recurso a "esquemas", "tangas" e "tretas" para a angariação de dinheiro e para possibilitar que este seja efetivado — e cíclico. É posta ênfase na relação íntima que se cria entre os interlocutores e aqueles que com eles privam do consumo de drogas e, ainda — e é fundamental este ponto, uma vez que revela quão bem o autor conseguiu apreender o seu objeto de estudo —, na intimidade e, poderiamos dizer mesmo, na afectividade entre os toxicodependentes e os espaços onde compram e consomem drogas (Casal Ventoso, por exemplo — um dos interlocutores refere-se à nostalgia que sente quando vê o bairro na televisão), nos objetos que usa para "o fazer" (a seringa, a colher, o ato de "bombear" — puxar o sangue para dentro da seringa — (:86) e na própria droga. "[A]heroína converte-se num elemento de uma nova realidade que, para além dos objectos de afecto que proporciona, se vai expandindo pelos locais onde é falada, trocada ou vendida e por uma agência que vai adicionando a um território já conhecido um novo espaço social a explorar e a conhecer" (:87).

Ainda no seguimento dessa idéia, é de salientar o capítulo IV, referente à forma como esses atores fazem uso(s) do(s) tempo(s) e do(s) espaço(s), e em que o autor procura reconceitualizar e discutir algumas das idéias defendidas por estudiosos da matéria. Considerando que esses sujeitos, entendidos como hiperquotidianos (:91), em vez de fazerem um corte radical e absoluto com aqueles que não têm a mesma prática, estabelecem, pelo contrário, relações de interação e dinâmicas absolutamente conscientes, permanentes e até fundamentais para a forma como conduzem as suas vidas. O autor compreende que o toxicodependente faz um uso privilegiado do tempo, apropriando-se da cidade, das suas rotinas, dos seus tempos; reconhece que o ator, não só não está por fora de uma dinâmica hegemônica, uma vez que com ela está em permanente interação, como é, ele mesmo, elemento da centralidade que cria em torno da substância.

A cidade de Lisboa revela-se nesta obra como palco e cenário de personagens e tarefas que os atores se propõem encetar para levar a bom termo a angariação do dinheiro necessário para as tomas diárias. A suposta grávida que corre a Baixa de Lisboa; o Casal Ventoso que, para além de local de compra e uso de droga, é também local de trabalho e residência; a feira da Ladra onde é possível vender objetos pessoais ou roubados. Em suma, os lugares ganham uma nova dimensão cognitiva, temporal e espacial, repletos de oportunidades, em permanente interação com não utilizadores e usufruindo dos seus hábitos em proveito próprio. Mais do que nunca, fazem sentido expressões como "itinerário", "território", "viagem", "percurso", como se se tratasse de um passeio pela cidade, uma visita guiada através de outros olhos que nos desvendam outras realidades/vivencialidades/experiências...

Luís Vasconcelos mostra-nos de que forma se faz etnografia de vivências e espaços onde não se esteve nem se viveu, sabendo apenas ouvir e destrinchar relatos vivos — nas suas próprias palavras: "[É] a humildade de aceitar que as pessoas, quaisquer que sejam, têm algo de importante a dizer sobre as suas próprias vidas." (:18) —, ou seja, transmite-nos neste ensaio a importância da capacidade de ouvirmos aqueles de quem/para quem falamos quando da produção de conhecimento antropológico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2005
  • Data do Fascículo
    Out 2004
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