Acessibilidade / Reportar erro

A reinvenção do uso da ayahuasca nos centros urbanos

RESENHAS

Benny Shanon

Professor do Departamento de Psicologia/ The Hebrew University

LABATE, Beatriz C. 2004. A reinvenção do uso da ayahuasca nos centros urbanos. Campinas/São Paulo: Mercado de Letras/Fapesp. 535pp.

Ayahuasca — a poderosa infusão psicoativa da Amazônia — pela ampla difusão que obteve fora de sua região e de seu contexto de origem, sem dúvida apresenta um caráter especial. Isto se aplicaria tanto ao que tange à própria substância quanto às formas ritualizadas de seu uso. Tal processo inicia-se nos anos 1930, com a fundação do grupo religioso sincrético Santo Daime, no estado do Acre, e prossegue com a fundação de outros grupos sincréticos — notadamente a União do Vegetal (UDV), em Rondônia, e a Barquinha, no Acre. Todos esses grupos utilizam a infusão tradicional aperfeiçoada pela população indígena da Amazônia, inserindo-a em um cenário ritualizado que reúne elementos indígenas, afro-brasileiros, espiritualistas e, basicamente, cristãos. O Santo Daime e a Barquinha possuem rituais religiosos plenamente desenvolvidos; já a UDV funcionaria mais propriamente como uma escola esotérica, na qual questões doutrinárias são ensinadas e discutidas em estado de inebriação. Nos últimos vinte anos, o Santo Daime e a UDV espalharam-se por todo o Brasil; atualmente existindo congregações suas em praticamente todos os grandes centros urbanos do país. Também recentemente, ambos estabeleceram-se em outros países, com diferentes status legais e graus variados de sucesso.

Comecei observando que a difusão do uso da ayahuasca e de seus rituais faz dela um enteógeno especial (enteógeno é um termo recente para substâncias psicoativas, que em grego significa 'que gera o divino em seu interior'). O único paralelo possível seria com o uso do peiote pela Native American Church (a Igreja Nativa Americana), nos E.U.A. Lá, no entanto, o uso da planta, aprovado pela Suprema Corte norte-americana, é legalizado apenas para indivíduos de origem étnica indígena. Em um plano individualista, há também usos ritualizados do peiote e do cacto San Pedro — ambos cactos que contêm mescalina — no México e no Equador, respectivamente. Mas, diferentemente dos grupos brasileiros mencionados, o objetivo principal destes outros usos seria o crescimento espiritual de cunho pessoal e não institucionalizado, por vezes associado à psicoterapia.

Devemos ressaltar, obviamente, os usos indígenas da ayahuasca. Vários antropólogos documentaram e discutiram extensamente o uso da infusão, de longa data, por toda a região das terras altas amazônicas — em áreas hoje pertencentes a Brasil, Colômbia, Equador, Peru ou Bolívia. Os rituais indígenas consistiam basicamente em cerimônias culturais-religiosas ou sessões de cura medicinal; a infusão também sendo usada auxiliarmente com diversas funções sociais — como nos ritos de iniciação, em decisões e julgamentos tribais, na preparação para a caça. Nos últimos 30 anos, os próprios usos indígenas da ayahuasca passaram por transformações que redundaram nas chamadas sessões caboclas (mestizo) de cura, especialmente nas áreas pobres da Amazônia peruana. Recentemente, essas sessões passaram a ser alvo do fenômeno do turismo xamanístico (também discutido por Labate). Como é salientado em toda a literatura antropológica, o uso indígena da ayahuasca está firmemente fundamentado em cosmologias e mitologias. O livro de Labate revela que alguns dos novos grupos (urbanos e não-indígenas) por ela investigados, também desenvolveram cosmologias doutrinais.

Nesse livro, baseado em dissertação de mestrado defendida na Unicamp, Beatriz Labate examina usos ainda mais recentes da ayahuasca em localidades urbanas do Brasil; dentre eles, práticas espiritualísticas, psicoterápicas, artísticas, neo-xamânicas e de Nova Era (algumas, inclusive, influenciadas por movimentos espirituais do Oriente), associadas em muitos casos — porém não em todos — a um líder carismático que dirige um grupo determinado em determinado centro. Concretamente, essas são todas situações observadas no Brasil; mas, embora seja aí que, de fato, se encontre a grande maioria dessas novas práticas da ayahuasca, novos usos surgiram recentemente em outros países, tanto na América Latina como alhures. Por essa razão, eu teria incluído ao fim do título do livro a frase "no Brasil". Considero essa inclusão imperiosa, no caso de vir a haver tradução para outras línguas.

A autora atesta explicitamente — e isso pode ser verificado por todo aquele que tenha tentado esse tipo de pesquisa — que a coleta de dados relativos a tais práticas enteogênicas semi ou recém-estabelecidas está bem longe de constituir tarefa fácil. Labate fez quanto a isso um admirável trabalho. Como ela, indo além, afirma — e eu concordo plenamente _ tal trabalho envolve não somente significativo labor profissional, antropológico, mas também atributos pessoais, necessários para se conquistar a confiança e subseqüente abertura por parte dos informantes. Isso só é possível através do envolvimento direto com a infusão — manifestado pela investigadora — e de sua competência como especialista no assunto. Por tudo isso Labate deve ser sinceramente louvada. De fato, seu texto apresenta informações inéditas, essenciais ao estudo contemporâneo da ayahuasca e que serão, sem dúvida, referidas e citadas em trabalhos futuros de sociologia e antropologia sobre essa infusão. Como professor universitário, posso acrescentar que considero o investimento de pesquisa e o alcance desse texto em muito superiores àquilo que usualmente — pelos padrões acadêmicos internacionais — é tido como requisito para uma dissertação de mestrado.

A leitura do livro de Labate levanta várias questões teóricas, e lamento que elas não sejam melhor desenvolvidas ao longo do texto. Tais questões são concernentes às possíveis causas do fenômeno ayahuasca, às estruturas dos rituais e de seus usos e efeitos, às diferenças e pontos comuns na fenomenologia da experiência, às novas extensões dos ritos e às implicações sociológicas e potenciais ramificações sociopolíticas. No que diz respeito às causas, a questão que se poderia levantar seria a seguinte: por que a ayahuasca, mais do que qualquer outra substância vegetal psicoativa, ganhou difusão geográfica e cultural? É fato reconhecido — e já mencionado acima — que fenômenos análogos têm ocorrido com o peiote e o cacto San Pedro, embora não comparáveis em magnitude e abrangência àquilo que é correspondentemente observado para a ayahuasca. Da mesma forma, não há comparação possível entre, de um lado, a profusa variedade e a inventiva dinâmica dos rituais no Brasil não indígena e, de outro, aquelas encontradas em outros países sul-americanos em que a infusão é utilizada. No Peru, o turismo xamanístico vem se desenvolvendo; na Colômbia, em anos recentes, xamãs indígenas começaram a realizar sessões tradicionais de ayahuasca em lares burgueses de Bogotá. Por que essas diferenças? Voltando-nos agora para as estruturas dos rituais, penso que seria especialmente interessante atentar para os denominadores comuns desenvolvidos em diferentes tipos de grupos — variados quanto à localização, etnicidade, fundo sociocultural e propósito de uso da ayahuasca — e examinar as similaridades e diferenças a eles associadas. Um desses denominadores, que mereceria reflexão e pode ser prontamente abordado — tanto pela investigação empírica como pela análise teórica — seria a música. Uma questão pela qual eu mesmo tenho me interessado é o exame das fenomenologias da experiência em diferentes contextos do uso da ayahuasca. Em minha monografia The antipodes of the mind: charting the phenomenology of the ayahuasca experience [Oxford: Oxford University Press, 2002], investiguei empiricamente essa questão, entrevistando grande número de informantes usuários de ayahuasca em diferentes locais e situações socioculturais. Impressionei-me especialmente com as recorrências, os aspectos comuns aos vários tipos de itens percebidos nas visões experimentadas em diversos contextos e rituais. No entanto, em um nível mais sutil e de pormenores, pode haver diferenças; e acredito que valeria a pena investigá-las. A variedade dos usos também levanta questões sobre a aplicação e as implicações nos usos futuros. A aplicabilidade da ayahuasca com propósitos terapêuticos seria um campo de investigação particularmente importante. Comparar os usos dessa infusão em diferentes aplicações terapêuticas, junto com os respectivos sucessos e fracassos, pode ter especial relevância prática assim como teórica. Por fim, como fica evidente na história de todos os antigos grupos sincréticos de ayahuasca brasileiros, e é ressaltado em várias das narrativas que aparecem no texto de Labate, o desenvolvimento continuado do uso da infusão não raro provoca toda sorte de dinâmicas interpessoais e sociais, nem todas salutares. Não é infreqüente que essas dinâmicas envolvam competição, rivalidade e divergências ideológicas. O estudo dos impasses dos grupos no passado e no presente poderia ajudar a evitá-los também no presente e no futuro.

Reconhecendo a amplitude e importância de todas essas questões, penso que elas deveriam ter sido contempladas no livro de Labate. Com efeito, minha avaliação é a de que o livro restringe-se demasiadamente a dados empíricos e é muito estreito com relação a discussões teóricas que envolvam comparações, generalizações, implicações, e mesmo avaliações pessoais (da autora) e reflexões e hipóteses no que tange a desenvolvimentos possíveis. Esses poderiam ser itens de futuras e valiosas investigações na mesma estimulante trilha iniciada pela autora.

Por fim, gostaria de deixar marcados desenvolvimentos recentes, em relação aos quais os dados trazidos pelo livro podem ser muito pertinentes. Refiro-me ao estatuto legal da ayahuasca fora do Brasil. Na Holanda, em 2001, os rituais do Santo Daime ganharam aprovação oficial (em seguida a uma perseguição policial e acusação criminal, sendo a legalização aprovada com base no direito à liberdade religiosa, por cujo respeito a Holanda é especialmente famosa; recentemente, desenvolvimentos similares ocorreram na Espanha). Na França, há poucos meses, com base em argumento técnico, o uso do Daime foi aprovado legalmente, para logo em seguida ser proibido por autoridades governamentais. Na Itália, causas similares ainda estão em processo de decisão judicial. Note-se que nesses casos judiciais também estão envolvidos indivíduos de cidadania brasileira.

Há, ainda, desdobramentos muito recentes na América do Norte. No Canadá, as autoridades decidiram tolerar as cerimônias do Santo Daime. E nos E.U.A., a Suprema Corte já anunciou que apreciará o caso da UDV, relativo à utilização da ayahuasca na congregação do Estado do Novo México. A UDV teve ganho de causa em três instâncias inferiores, mas o governo apelou da decisão. A questão envolve consideração sobre a liberdade religiosa.

Em resumo, a ayahuasca está em transição. Essa transição envolve mudanças quanto à localização e aos cenários, aos tipos de rituais, características das figuras de liderança, demografias dos participantes e clientelas, usos e objetivos. Isso demanda reflexão séria e ponderada, do interior e do exterior. Todos que participam dessa dinâmica, assim como os que a observam, certamente se interessarão pelo livro de Labate e com ele terão o que aprender.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Out 2011
  • Data do Fascículo
    Out 2005
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - PPGAS-Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Quinta da Boa Vista s/n - São Cristóvão, 20940-040 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel.: +55 21 2568-9642, Fax: +55 21 2254-6695 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revistamanappgas@gmail.com