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I foresee my life: the ritual performance of autobiography in an Amazonian community

RESENHAS

Elizabeth Travassos

UNIRIO

Oakdale, Suzanne. 2005. I foresee my life: the ritual performance of autobiography in an Amazonian community. Lincoln: The University of Nebraska Press. 206 pp.

I foresee my life é um estudo etnográfico de performances rituais dos índios Kayabi. A partir da análise de relatos de cunho autobiográfico, a autora avança uma série de conclusões sobre a concepção kayabi de pessoa, a cosmologia e o ciclo de vida. Um dos resultados relevantes do livro de Suzanne Oakdale é colocar o estudo desse grupo indígena em diálogo com os desenvolvimentos atuais da etnologia dos povos Tupi e amazônicos.

Boa parte da população kayabi instalou-se no médio curso do rio Xingu entre os anos 1950 e 60, quando os irmãos Villas-Boas deslocaram um grande número de famílias que viviam nos rios dos Peixes e Teles Pires (formadores do Tapajós) em contato estreito com seringueiros e missionários. A pesquisa de campo que deu origem ao livro foi realizada em 1992 e 1993, em uma aldeia xinguana com mais de uma dezena de unidades domésticas. Esse padrão de ocupação do território contrasta com os hábitos kayabi de se estabelecerem em agrupamentos de uma ou duas casas ao longo das margens dos rios. As aldeias grandes consolidaram-se no Parque em resposta à necessidade dos índios de assegurarem o acesso regular aos bens produzidos fora da área indígena e aos serviços de educação e saúde.

O livro está dividido em três partes. A primeira discute o modo como os Kayabi lidam com as exigências contraditórias de "pureza" ou "assimilação" que, conforme as circunstâncias, a sociedade nacional dirige ao "índio". Generalizou-se, entre indivíduos do sexo masculino, a preocupação com a "cultura", revelada em atributos que alguns brancos valorizam como efetivamente indígenas (uso da língua materna e de adornos corporais, realização de rituais etc.). Ao mesmo tempo, roupas e variados bens da sociedade nacional estão incorporados à rotina dos Kayabi, e os contatos com outros índios e com não-índios, no Parque e fora dele, são desejados pelos homens jovens. Daí decorrem as tensões intergeracionais e o difícil equilíbrio entre unidades domésticas autônomas porém forçadas à vizinhança cotidiana nas aldeias grandes. Além de trazer para o leitor informações atualizadas acerca da vida dos Kayabi no Parque, Suzanne Oakdale sugere a necessidade de considerar a hipótese de uma orientação kayabi para o mundo exterior, o que torna mais complexa a discussão da história recente dos contatos e da "aculturação" desse grupo indígena.

A segunda parte do livro apresenta as análises de narrativas autobiográficas, distribuídas em três capítulos que abordam, respectivamente, as falas públicas dos líderes, os cantos dos xamãs no maraká e os cantos dos homens no ritual denominado jawosi. As análises fundamentam a discussão, empreendida na terceira parte do livro, da natureza "dialógica" da narração kayabi, consistente com a concepção de pessoa desses índios. O narrador kayabi, como demonstra a autora, é um "orquestrador" que incorpora em sua fala as falas alheias por meio do discurso indireto, de citações e de deslocamentos, nos quais assume a perspectiva dos personagens de seu discurso ou a dos seus interlocutores. No limite, todo discurso ritualizado kayabi é citação: os xamãs cantam coisas que ouviram dos espíritos; os homens adultos repetem cantos que herdaram de parentes e que foram, um dia, ouvidos dos ossos dos inimigos mortos; os líderes introduzem outras vozes no relato de suas experiências. A própria idéia de "autobiografia", portanto, é modulada pela visão de mundo kayabi. As experiências pessoais que os indivíduos acumulam ao lidarem com estrangeiros — sejam eles brancos, alto-xinguanos, seres míticos, espíritos da floresta — adensam-se com a incorporação de atributos alheios e a adoção temporária de outros ângulos de visão. A formação do "indivíduo" — isso se aplica aos indivíduos de sexo masculino — é um processo que supõe identificações passageiras com outros humanos e não-humanos: o self assim constituído é "dialógico".

Além da inspiração teórica básica dada pelos trabalhos sobre o pensamento tupi e ameríndio (de Eduardo Viveiros de Castro), os estudos de narrações autobiográficas e as etnografias da fala fornecem à autora conceitos e ferramentas de análise. O ritual é tratado como um evento histórico em que narradores socialmente situados elaboram diferentemente os temas cosmológicos. A maneira como os ouvintes participam dos cantos ou se abstêm de participar dos ritos é parte constitutiva dos mesmos. O destaque dado às falas públicas dos líderes é, por si só, uma novidade importante na etnografia kayabi: semelhantes do ponto de vista formal à fala cotidiana, esses discursos de aconselhamento e exemplo autobiográfico passaram completamente despercebidos de outros estudiosos.

A premissa da variabilidade intracultural é levada a sério por Suzanne Oakdale, que identificou três posturas kayabi em face da relação entre gerações e entre eras cosmológicas (as diferenças são correlacionadas com diferenças de gênero, estágio do ciclo de vida, experiência social). Cada uma delas é também um modelo que os homens adultos apresentam às suas comunidades.

1. A primeira traduz uma visão "progressista" da trajetória da humanidade kayabi, que se aperfeiçoa ao longo do tempo adquirindo novas habilidades (como nos mitos do herói cultural Tuiararé) ou a condição autoconsciente de "índio". A postura progressista revelou-se em dois relatos: o do jovem chefe de aldeia que, ao contar suas peripécias no Rio de Janeiro, ostentava diante dos ouvintes seu traquejo na língua e nas maneiras dos brancos; e o do líder de grupo doméstico, que deu seu testemunho da migração para o Parque, em 1966, e de sua compreensão atual da necessidade de ser fiel aos costumes kayabi. Tanto o discurso do jovem chefe quanto o do líder de grupo doméstico "encenavam a superioridade" do orador sobre seus ouvintes mediante a combinação de conhecimentos da tradição kayabi e do mundo dos brancos.

2. A segunda postura é característica dos xamãs que oferecem uma visão "degenerativa" da sucessão das gerações humanas, as quais estariam cada vez mais afastadas da força inerente aos primórdios. O rito xamanístico do maraká consiste, segundo a autora, no reatamento simbólico com essa força, em benefício dos doentes e do bem-estar geral. A visão dos pajés é mais conservadora que a dos chefes no que tange à incorporação dos hábitos e das necessidades dos brancos, mas tanto uns quanto outros se ocupam das fronteiras da sociedade kayabi. Assim como os chefes e outros jovens especializam-se nas relações com a sociedade nacional, os pajés operam na fronteira com outros habitantes do cosmo. Ao fazê-lo, intervêm, simultaneamente, nas relações entre os membros do grupo doméstico que são diretamente associadas pelos Kayabi ao sofrimento e aos problemas de saúde.

Os xamãs cantam no maraká suas viagens entre espíritos em busca de almas humanas raptadas. Eles tornam vívidas as realidades geralmente invisíveis para as pessoas comuns, fazem "pontes perceptivas" e compartilham as experiências benéficas do contato com os Mait (xamãs poderosos invisíveis).

3. Os cantos do jawosi, por último, ao falarem dos (e pelos) inimigos mortos com distanciamento emocional — o que não impede a identificação provisória do guerreiro com a vítima, de quem toma o sangue e o nome — modelam o desengajamento entre vivos e mortos. Daí sua caracterização como rito de encerramento do luto, realizado para promover a reintegração dos parentes do morto nos padrões de sociabilidade normais. Seu foco não é a posição das gerações atuais diante das antecessoras, mas "um ciclo maior de transformações" (p. 138). A visão dos cantores no jawosi é "anti-histórica" e transcende, segundo a autora, as posturas progressistas e degenerativas.

O jawosi é "para esquecer os mortos", disse uma mulher kayabi à antropóloga. Não registrei nenhuma informação sobre a celebração do jawosi como rito final do luto entre 1981 e 1982. As pessoas observavam, nessa época, que o ritual havia se tornado raro com o fim da guerra intertribal e dos conflitos sistemáticos e abertos com os brancos. O jawosi era associado sempre à morte de inimigos e à iniciação masculina celebrada em seguida à participação em episódios homólogos à guerra — expedições para atração de outros índios, viagens às cidades.

Os três tipos de performance ritual — oratória dos líderes, cantos do maraká e cantos do jawosi — dizem respeito às fronteiras da sociedade kayabi. Eles dão margem a especulações cosmológicas diferentes e a posicionamentos divergentes dos narradores quanto às políticas de contato com a sociedade nacional. Ao mesmo tempo, produzem efeitos sociais imediatos, reintegram indivíduos e reforçam relações.

Merece destaque o comentário esclarecedor dos textos (falados e cantados) que leva em consideração as diferentes modalidades de discurso, os interlocutores e os contextos cerimoniais, os aspectos gramaticais e os recursos de performance (tais como o emprego do corpo). O artifício gráfico de dispor em quatro colunas os textos permite ao leitor visualizar a alternância do narrador entre falas que se referem ao evento da narração, falas que produzem pontos de contato entre narração e conteúdo narrado, falas que narram eventos e, por último, falas dos personagens da narração. Alternando-se entre as diferentes "event frames", o narrador aproxima sua audiência das realidades que descreve. Assim, os acontecimentos que o pajé canta, por exemplo, tornam-se apreensíveis pelas pessoas comuns.

Por ter sido hóspede de alguns dos protagonistas do livro, tive satisfação em rememorar, ao longo da leitura de I foresee my life, a proverbial hospitalidade dos Kayabi. Independentemente desta circunstância, os leitores interessados em etnologia das Terras Baixas da América do Sul e análise de narrativas autobiográficas apreciarão o livro por sua clareza e sensibilidade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Ago 2006
  • Data do Fascículo
    Abr 2006
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