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Arqueologia da violência: pesquisas de antropologia política

RESENHAS

Flávio Gordon

Doutorando, PPGAS-MN-UFRJ

CLASTRES, Pierre. 2004. Arqueologia da violência — pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac & Naify. 325pp.

Em 1977, ano da publicação original de Arqueologia da violência, vinham a público as atas do XLII° Congresso Internacional de Americanistas (Paris, 1976), reunidas no volume Social time and social space in lowland south american societies, organizado por Joanna Overing. Naquela ocasião, foram discutidos e delineados os principais problemas teóricos que guiariam o "americanismo tropical" nas décadas seguintes. De certa forma, esse último grande livro de Pierre Clastres, publicado postumamente, marca o fim de sua carreira intelectual — interrompida de forma trágica por um acidente de automóvel em 1977 — mas coincide também, por outro lado, com um momento de notável desenvolvimento na etnologia americanista. Esta última vem comprovando a atualidade do pensamento de Clastres, ao confirmar algumas de suas intuições fundamentais sobre os índios sul-americanos.

Não obstante, nesses últimos quase 30 anos, o acúmulo de conhecimento empírico, resultado de intensas pesquisas de campo, descobertas arqueológicas importantes, bem como de estudos lingüísticos detalhados, tornaram difícil a tarefa de apreciar esta obra que a Cosac & Naify dá à luz 24 anos após a edição original. Mais difícil ainda se, ao fazê-lo, pretende-se evitar o tratamento usual dispensado aos "clássicos" em nossa disciplina: indiferença parcimoniosa, por um lado, referência legitimadora, por outro.

Em que pesem as implicações profundas que a obra de Clastres tem, tanto para a antropologia política quanto para a filosofia em geral, o livro deixa clara a posição do autor como americanista e como pesquisador de campo. Ele teve contatos mais ou menos intensos com diversas sociedades sul-americanas — os Guayaki (1963-64), os Guarani (1965), os Chulupi do Chaco paraguaio (1966-68), os Yanomami (1970-71) — e a amplidão filosófica de seu pensamento é inseparável dessa experiência.

A presente obra complementa e amplia as teses que o autor havia avançado em seu livro de 1974, A sociedade contra o Estado. Clastres procura aprofundar a crítica à visão tradicional das sociedades das terras baixas como limitadas por um ambiente natural hostil aliado a um baixo desenvolvimento tecnológico. O autor tem como alvos principais, por um lado, os desenvolvimentos teóricos da escola norte-americana de ecologia cultural, ligados ao nome de Julian Steward e ao Handbook of south american indians; por outro, as inclinações macro-históricas da antropologia marxista — sobretudo francesa — vinculadas a autores como Godelier e Meillassoux, entre outros. Trata-se aqui de afirmar, contra estas posições, que a economia minimalista e a organização social "dispersa" das sociedades sul-americanas não são efeitos de uma limitação natural externa, nem tampouco de arcaísmo histórico-evolutivo, mas antes movimento inerente ao próprio ser dessas sociedades — voluntarismo filosófico mais que determinismo ecológico ou histórico.

A partir de sua experiência com as sociedades indígenas, o autor abstraiu um modelo ideal de "sociedade primitiva": esta última teria na recusa da divisão interna, no desejo de autonomia sociopolítica e em um certo "conservadorismo" histórico a sua razão de ser. A grande novidade deste livro em relação às teses defendidas em A sociedade contra o Estado é uma particular elaboração do tema da guerra.

No capítulo que dá nome à obra (o 11º), Clastres confere uma positividade sociológica à guerra nas socialidades ameríndias, positividade que se verá amplamente verificada nos trabalhos de americanistas posteriores, especialmente a partir de meados da década de 80. Criticando a teoria lévi-straussiana sobre guerra e comércio, o autor sugere que a primeira, mais do que uma negação de relação social, é ela mesma um dispositivo sociológico fundamental de manutenção da autonomia dos grupos locais indígenas. A pulsão guerreira da sociedade primitiva é a face complementar do desejo de indivisão. "A sociedade primitiva é contra o Estado", diz o autor, "na medida em que é uma sociedade-para-a-guerra" (:269). Clastres confere certa transcendentalidade ao papel do Inimigo, apresentando-o como uma espécie de "espelho sociológico" através do qual o grupo local autônomo se reconhece enquanto tal, vendo-se a si mesmo como ser indiviso. Além disso, a guerra é um fator interno de dispersão, uma força "centrífuga" evitando que uma concentração demográfica excessiva desemboque na divisão do ser social primitivo (:266).

Afora este capítulo central, no qual a proposta de uma ontologia social ameríndia, fundada sobre a guerra, conecta-se à questão política da recusa do Estado, o livro é composto por outros 11 textos, abordando temas diversificados que vão desde relatos etnográficos a proposições filosóficas gerais sobre a ontologia social primitiva, passando por críticas ao etnocentrismo e ataques à antropologia marxista.

Os dois primeiros capítulos são sobre os Yanomami. O primeiro (O último círculo) é um relato da viagem que Clastres fez, junto com Jacques Lizot, ao extremo sul da Venezuela, no qual se encontram finas descrições sobre diversos aspectos da vida cotidiana daqueles índios. Clastres narra com bom humor as relações jocosas que mantinha com os índios, experiências de xamanismo, situações tensas relativas a expedições guerreiras, aspectos de cosmologia, entre outros. O tema da guerra aparece já como imanente ao mundo vivido yanomami, e o fato de que o autor percebeu sua importância é expresso no belo parágrafo final. "Mil anos de guerras, mil anos de festas!", é o que Clastres deseja aos Yanomami (:54). O segundo capítulo (Uma etnografia selvagem) é uma análise aguda sobre o Yanoama, livro do médico italiano Ettore Biocca, que conta o impressionante relato de Elena Valero, menina branca que foi capturada pelos Yanomami aos 11 anos de idade, passando a viver com os índios até a idade adulta, quando então, 22 anos depois, resolveu voltar ao mundo "ocidental". A partir do caso, Clastres tece comentários sobre as práticas epistemológicas da antropologia, em particular sobre os limites, quiçá infranqueáveis, que separam um discurso sobre os "selvagens" de um discurso dos "selvagens" (:67). A experiência pessoal de Elena Valero pareceria delinear um contexto no qual tais limites tendem ao mínimo.

Nos capítulos 3 e 4, encontram-se observações contundentes contra o etnocentrismo ocidental, em particular em relação aos ameríndios. O atrativo do cruzeiro (capítulo 3) é uma crônica em que o autor ironiza aquilo que poderíamos chamar atualmente de "etnoturismo": a idéia de "consumir" culturas exóticas, mantendo-se, no entanto, inalterado por elas. Já em Do etnocídio (capítulo 4), temos um quadro tenebroso do etnocentrismo de tipo estatal, que se converte fatalmente em práticas etnocidas. Segundo o autor, a civilização ocidental é ímpar em sua tendência ao etnocídio, pois alia em seu ser a força homogeneizadora do Estado a um regime de produção econômica notadamente destrutivo: o capitalismo. Faz parte do ser capitalista atingir um regime máximo de produtividade e consumo, restando para as sociedades "improdutivas" (os ameríndios, por exemplo) a escolha de serem absorvidas ou extintas (:91).

Depois de um capítulo (de número 5) em que o autor traça um panorama geral da etnologia das terras baixas, dividindo-a em três sub-regiões ("sociedades da floresta", "mundo andino" e "mundo tupi-guarani"), os capítulos 6, 7 e 8 são aqueles nos quais a sua teoria do poder nas sociedades primitivas é expressa mais diretamente. No capítulo 6 (A questão do poder nas sociedades primitivas), o autor elabora sua célebre teoria da chefia sem poder, caracterizando o chefe primitivo como "uma espécie de funcionário (não remunerado) da sociedade" (:147). O capítulo 7 (Liberdade, Mau encontro, Inominável) consiste em uma memorável interpretação da obra do filósofo político Étienne de La Boétie. Clastres aproveita a questão levantada por La Boétie — o que faz com que as pessoas desejem obedecer? — para deduzir a recusa primitiva do Estado. Recusa esta que se constitui em uma teoria do virtual, na medida em que a sociedade primitiva realiza-se na negação de algo que não conhece atualmente, mas que persiste virtualmente na própria recusa (:163). O capítulo 8 (A economia primitiva) é o texto publicado como prefácio à edição francesa do livro de Marshall Sahlins (Stone age economics). Aqui, o autor propõe que a chefia primitiva está fundada em uma dívida do chefe para com a sociedade, por meio da qual esta última exerce seu poder sobre o primeiro (:190). Clastres enfatiza ainda o caráter essencialmente antiprodutivo da economia primitiva. As sociedades primitivas seriam "'máquinas' antiprodução" (:194).

Nos capítulos 9 e 10, Clastres critica ferozmente a antropologia marxista naquilo que ela tem como pressuposto fundamental: a idéia de que a divisão entre dominantes e dominados é inerente à instituição da sociedade humana. Ao contrário dos etnomarxistas, que tomam o Estado por termo não-marcado — sendo toda e qualquer formação social definida em relação a este termo — Clastres sugere uma inversão de marca, analisando o Estado como a emergência de uma formação social particular a partir de uma ontologia "contra-estatal".

No último capítulo (O infortúnio do guerreiro selvagem), o autor explora o aparente paradoxo: se a sociedade primitiva é uma sociedade para-a-guerra, ela é também, e ao mesmo tempo, uma sociedade contra o guerreiro. Trata-se aqui de mostrar que a ambição pessoal do guerreiro não pode se impor ao desejo de indivisão. A punição para tal ambição é a morte ou o abandono: não se pode permitir que a guerra se torne razão individual, que ela estabeleça uma divisão entre a sociedade e o guerreiro. Eis o que diz o "texto da lei tribal" (:307).

A importância da obra de Clastres não deve ser subestimada. É certo que os avanços na etnologia sul-americana acabaram por desmontar, em grande medida, a imagem de sociedade primitiva subjacente ao seu pensamento: o atomismo sociopolítico, o desejo de indivisão, a economia minimalista, todos esses traços, enfim, vêm sendo, em certa medida, desmentidos por estudos que apontam, antes, para um passado de extrema complexidade das sociedades das terras baixas (as pesquisas sobre os grupos Aruak subandinos, em particular, são um bom exemplo disso). Além disso, as concepções clastreanas de segmentaridade e divisibilidade são, do ponto de vista da etnologia atual, problemáticas pela forma como implicam uma construção teórica de fronteiras socioespaciais excessivamente substantivas e fixas.

A despeito desses problemas, que evidentemente só podem ser retrospectivos, Clastres sugeriu uma operação antropológica fundamental: o argumento de a sociedade primitiva não precisar passar pelo Estado para recusá-lo carrega em seu bojo potencialidades para uma antropologia não-transcendentalista. Se a sociedade primitiva é contra o Estado, o pensamento de Clastres também o é. Tal pensamento, seguindo expressão que o próprio autor usou alhures, sugere um diálogo com — e não um escrever sobre — o outro. Um diálogo com o outro dispensa o uso dos conceitos antropológicos como condicionantes transcendentais (e transcendentes) da relação antropólogo/nativo. Na política, como no pensamento, "esse fluxo de amor que não cessa de vir de baixo para se lançar sempre mais alto, esse amor dos súditos pelo senhor, desnatura igualmente as relações entre os sujeitos" (:107). A obra de Clastres nos permite vislumbrar a possibilidade de, no plano conceitual, substituir esse amor ao "tirano" (os conceitos de Natureza, Cultura, Sociedade etc.) por uma verdadeira relação entre os sujeitos: antropologia contra o Estado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Nov 2006
  • Data do Fascículo
    Out 2006
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