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Imaginative horizons: an essay in literary-philosophical anthropology

RESENHAS

Marcelo Rodrigues Souza Ribeiro

Mestrando, PPGAS/UFSC

CRAPANZANO, Vincent. 2004. Imaginative horizons: an essay in literary-philosophical anthropology. Chicago e Londres: The University of Chicago Press. 260 pp.

Imaginative horizons — cuja grande erudição e amplitude temática o tornam difícil de resenhar — consiste em uma reflexão ensaística e prismática sobre como a imaginação (se) organiza e (se) movimenta (n)os seres humanos através da diferença cultural, produzindo e limitando maneiras de a experiência fazer sentido e articulando possível e impossível. Com sete capítulos baseados em conferências proferidas em 1999, a convite do Frobenius Institute and Literaturhaus em Frankfurt am Main, o livro é um contratexto de Serving the Word — em que o autor investiga o literalismo como estilo de interpretação predominante nos Estados Unidos, o qual se concentra na dimensão semântico-referencial da linguagem e não na dimensão retórico-pragmática em que figura o jogo imaginativo — em forma de montagem: justapõe o inesperado, pretende perturbar conceitualmente o leitor e abrir a antropologia — "disciplina intersticial" cuja "beleza" reside em sua "fluidez" (:5) — para considerações literárias e filosóficas.

A imaginação — pensada em seu movimento e temporalidade, não em seus produtos e em sua topografia — é figurada pelo arrière-pays, a hinterlândia, título do livro de 1982 do poeta francês Yves Bonnefoy. Os horizontes imaginativos são auras que acompanham a experiência e resistem à articulação, fronteiras que demarcam "uma mudança de registro ontológico" (:14). O arrière-pays é o limiar do possível; abertura desejada e temida, permanece elusivo, deslizante e constitui qualquer percepção da realidade no momento mesmo em que a torna insuficiente, remetendo a algo que a ultrapassa, um novo outro. Sem associar necessariamente a imaginação à criatividade — hipótese que ganha vulto no Iluminismo — e à visualidade — ligação recorrente na "hegemonia do visual" no pensamento ocidental — Crapanzano propõe a noção de horizontes imaginativos como uma categoria de análise histórica, (inter)cultural e psíquica. Podem-se destacar alguns temas transversais na argumentação do autor: uma dimensão interlocutória irredutível está sujeita a etiquetas comunicativas culturalmente variáveis que orbitam tanto sonhos, desejo, esperança, memória, dor, morte etc. quanto seus usos metafóricos, retóricos e, portanto, políticos, historicamente situados. Uma crítica à fenomenologia acompanha tanto uma atenção lacaniana ao significante e ao deslizamento da ordem simbólica quanto uma preocupação com o deslocamento dos horizontes imaginativos.

Uma análise da relação entre língua, concepção da realidade e cosmologia estabelece, no primeiro capítulo (que empresta o título ao livro), um contraponto entre a gramática em movimento dos Navajo, em que predominam formas verbais, especificamente naagháii — ir — e a gramática substantivista, baseada no verbo ser, de um certo Ocidente. O "Ocidente" insinua-se — entre referências metonímicas e metafóricas à língua inglesa e às línguas indo-européias, à Europa e aos Estados Unidos, à antropologia como disciplina geopoliticamente situada — através do uso do "complexo, pluralizante e incorporativo pronome pessoal ‘nós’" (:11).

Com referências multiculturais justapostas dialogicamente, Crapanzano produz um interessante jogo intercultural de remissões no decorrer do livro, o qual está relacionado à sua concepção de antropologia. Como ele diz, nós temos a responsabilidade de levar em conta o que aqueles que estudamos têm a dizer não apenas sobre si, mas sobre nós. Ademais, para ele, como os (relatos de) sonhos, "as etnografias são [ ] construções da hinterlândia" (:23). Seria interessante (re)ler o corpus etnográfico da antropologia nesse sentido: a experiência etnográfica participa do movimento incerto da imaginação — pensemos no imperativo imaginativo de Malinowski em Argonautas do Pacífico Ocidental: "Imagine-se o leitor " — e reverbera no interior do nós que se inscreve a cada vez nos textos.

Em The between, pensando a construção da coesão textual e as lacunas entre enunciações, Crapanzano investiga o entre como arena de embate social, cultural e psicológico. O quadro multicultural de referências estende-se aos Apache ocidentais e a forma narrativa e interlocutória lacônica yalti’ bee’izhí ("falando com nomes") e à eloqüência verborrágica da cura carismática interior do evangelismo estadunidense. Comentários ao teatro japonês Nô, fundamentado nos interstícios da ação, ma, referências à psicanálise, atenta aos lapsos na análise do inconsciente, e uma discussão sobre a concepção árabe e sufi do Barzakh (o que fica entre duas coisas sem tender a nenhuma) levam a um questionamento das proposições de Victor Turner sobre a liminaridade, entendida como situação interestrutural. A liminaridade assinalaria, antes, uma transição de registro experiencial.

Em Body, pain, and trauma, Crapanzano sugere que o corpo tem assumido papel mediador entre significante e significado, dando a ilusão de fechamento da cadeia simbólica através de uma retórica que apela para a sua supostamente incontestável experiência. A dor também vem servindo como "ponto de ancoragem da e para a significação" (:80). O trauma, entendido como limite absoluto da simbolização, consiste na figura extrema desse investimento desejoso e, contudo, permanece irreferente — sem referência estável de uma realidade específica da psique e sem reverência final a qualquer signo (:93) — e preso à cadeia do significante, o que interdita a possibilidade de constituí-lo, como corpo e dor, como ancoragem última: os três estão sujeitos à temporalidade diferida e ao espaçamento disjunto da significação que constitui sua experiência.

Investigando a possibilidade de fazer da noção de esperança uma categoria experiencial e analítica, Hope discute estéticas, fenomenologias e teologias da esperança e entrecruza considerações filosóficas e etnográficas para refletir sobre a temporalidade da esperança — que se mostra "linear, teleológica e escatológica" (:100) em uma tradição judaico-cristã, mas abre-se a outras possibilidades — sua "qualidade transcendente" (:104) e sua relação com a ética. A reflexão sobre a temporalidade da esperança implica uma interrogação sobre os tempos verbais da língua que a articula e (re)introduz a questão whorfiana do "papel da gramática na articulação da experiência" (:108) em um argumento sobre a historicidade da esperança, na sociedade de consumo e em suas fronteiras. A esperança — que diferente do desejo recebeu pouca atenção nas teorias sociais e psicológicas — envolve aqui uma relação com um horizonte de futuro, um além ainda não alcançável.

Em The transgressive and the erotic, Crapanzano vai de notas sobre Billy-George — travesti que sofria de poliomielite e uma doença de pele rara e cujas performances transexuais adquiriram, para Crapanzano, um estatuto alegórico e dramático sobre gênero e ansiedade — a uma crítica da obra de Georges Bataille, baseada em uma perspectiva masculinista, católica, condizente com a alienação da sociedade de consumo e com uma retórica da "natureza", que apela para as noções de despesa e exaustão. Crapanzano conclui que o erótico constitui uma atividade simbólica e, como tal, exige e é constituído pelo movimento do desejo, que implica subterfúgio e deslizamento contínuos e ausência de ancoragem plena.

Em Remembrance, Crapanzano traça observações autobiográficas sobre a memória de seu pai, além de abrangentes discussões filosóficas, questionando o uso retórico da memória através de uma análise de sua metaforização: recipiente, estômago da mente (Santo Agostinho), escritura, tábua de cera (Platão), bloco mágico (Freud), holograma etc. Nesses recorrentes conceitos-metáforas, a memória é objeto de uma explicação circular, pressupondo a qualidade de registro e de reconhecimento que está justamente em questão. Embora o horizonte e o além sejam freqüentemente associados ao futuro, a memória está enredada em uma relação com um horizonte de passado, sempre aberto e incompleto. Atento à performatividade da memória, Crapanzano enfatiza o processo de lembrança que dá "estatura" ao lembrado, distinguindo memorialização — a recoleção individual — e comemoração — coletiva.

Discutindo a materialidade que guarda, socialmente, a memória — monumentos, documentos etc. — a partir de Pierre Nora e Maurice Halbwachs, Crapanzano questiona a oposição simples entre memória e história, procurando rearticular sua distinção. Para ele, os monumentos encerram duas dimensões em tensão: histórica e estética — monumentos são anti-históricos em nome da história, em relação aos acontecimentos que pretendem referenciar e supõem comemorar, mas são históricos em si, sujeitos a contínuas reinterpretações na representação do passado. O horizonte, na memória, não é uma questão factual, mas uma questão de possibilidades não exploradas. A incompletude constitutiva da memória possibilita distanciamento reflexivo em relação ao que foi e abre o horizonte (ético e esperançoso) do que poderia ter sido.

Refletindo, em World-Ending, sobre o Apocalipse cristão, a escatologia judaica e as experiências psíquicas de fim do mundo de um camponês de Berna, Crapanzano distingue concepções do fim do mundo como o conhecemos para advento de um novo mundo daquelas do fim do mundo em definitivo. Ademais, questiona a visão convencional de que existiriam sociedades imersas no tempo cíclico e repetitivo do eterno retorno, chamadas de "primitivas". Para ele, tal imagem não dá conta da dimensão do inesperado. Mais que o contingente, o inesperado desafia possibilidades imaginativas e cognitivas, impedindo especificação e categorização. A repetição pode guardar e produzir o inesperado: pode ocorrer em um tempo disjuntivo. Freqüentemente, com o respaldo da antropologia, diz-se que a idéia de fim do mundo tornou-se possível para tais sociedades primitivas com a chegada dos ocidentais. Isso seria negar a possibilidade de resposta nativa diante do desafio do inesperado e do completamente novo.

Com notas sobre os aborígenes australianos e a consciência mítica do Dreaming, os deslocamentos simbólicos implicados no encontro colonial com o missionarismo cristão, sobre os Urapmin de Papua Nova Guiné, em cujo universo simbólico um certo milenarismo cristão é cotidianamente ressignificado, sobre os Canaque da Nova Caledônia, onde a inclusão na sociedade dos brancos substituía a morte no processo de colonização, sobre a vida ritual hindu, que associa profundamente nascimento e morte, (re)criação e dissolução do cosmos, Crapanzano delineia uma compreensão da passagem da morte do domínio da experiência para o domínio da articulação, possibilitando que sirva como metáfora do fim do mundo. O livro encerra-se com uma sugestão em forma de pergunta — o fechamento dos horizontes imaginativos não seria uma forma de morte? — e assinala o horizonte vital em que podemos fazer habitar seu texto e o tecido do itinerário do autor, de Tuhami e Waiting a Hermes’ Dilemma and Hamlet’s Desire e Serving the Word: inquietar horizontes imaginativos que, sem permanecerem solidificados e fechados, podem assim se estender e se abrir para a alteridade de um inesperado e inarticulável futuro.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Nov 2006
  • Data do Fascículo
    Out 2006
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