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Only for you! Brazilians and the telenovela flow

RESENHAS

Diana Nogueira de Oliveira Lima

Pós-doutoranda, IFCS/UFRJ

MACHADO-BORGES, Thais. 2003. Only for you! Brazilians and the telenovela flow. Stockholm: Stockhom Studies in Social Anthropology. 249pp.

Nos anos 1980, a figura do sujeito e a noção de agência assumem posição dianteira no debate em diferentes círculos disciplinares. Nos estudos de mídia, esse deslocamento provoca uma transição no foco de interesse, e a ênfase na esfera da produção — pensada como instrumento conservador de reforço dos discursos dominantes sobre um público considerado passivo — cede lugar à preocupação com as variadas maneiras como os textos audiovisuais são interpretados e incorporados pelas audiências nos distintos contextos sociais de recepção.

Na antropologia, os pesquisadores voltados para o tema têm indagado sobre a relação entre mídia e mudança social e vêm enfrentando o desafio de investigar o modo como o público assiste à programação, buscando elucidar o lugar da televisão no cotidiano dos sujeitos sociais através de esforços etnográficos que envolvem a observação da recepção no espaço e no momento mesmo em que ela acontece. Enquanto a maioria dos trabalhos sobre as reações e as interpretações dos espectadores às telenovelas brasileiras elaboram suas questões a partir do acompanhamento de uma trama em um ambiente de audiência bem definido, normalmente formado por mulheres de camadas populares, Thais Machado-Borges inova em vários sentidos.

Depois de muitos anos de residência e estudos na Suécia, Thais retorna à sua Belo Horizonte natal com a memória sobre os tempos em que as novelas faziam parte de sua vida e uma pergunta simples: como os espectadores se colocam diante das representações da sociedade brasileira veiculadas nas telenovelas? Na dupla condição de antropóloga e "nativa", ela se instala em uma área abastada da cidade e, reflexivamente ancorada, aproveita antigas referências para realizar seu trabalho de campo. Ao contrário de sua expectativa, porém, ao mesmo tempo em que constata a quase onipresença da televisão na agenda brasileira, logo fica claro para ela que, se deixadas à espontaneidade, embora assistam a novelas, em seu dia-a-dia as pessoas pouco falam diretamente sobre os conteúdos ou sobre os produtos que elas mostram. Assim, a pesquisa que deu origem ao livro Only for You. Brazilians and the Telenovela Flow aposta na ampliação de seu plano inaugural de observação e entrevista com o "nativo" no instante da exibição, e adentra por um caminho ousado através das ruas e das festas, para apreender as alusões reticuladas em conversas corriqueiras entre mulheres com maiores possibilidades aquisitivas.

Quatro são os conceitos que impulsionam a análise em tela. O primeiro deles está no título do livro e é crucial para a condução do argumento. Em sua etnografia, a antropóloga não restringe a atenção a uma telenovela específica. Para ir adiante na compreensão da interação entre o público brasileiro e a televisão, com perspicácia, ela prefere tomar como objeto todo o complexo que articula as telenovelas, seus conteúdos e personagens; os programas televisivos que se remetem às tramas e expõem a vida privada dos atores; os itens anunciados e a forma narrativa empregada nos intervalos comerciais; as outras mí­dias voltadas para o comentário sobre as tramas; além de produtos, músicas e imagens ligados. Para nomear esse todo semântico que circula no imaginário da sociedade brasileira, ela se beneficia dos desenvolvimentos efetuados pelos estudos de mídia e vai cunhar a fórmula telenovela flow.

Thais incorpora da teoria dialógica de Mikhail Bakhtin os conceitos de diálogo e heteroglossia por duas razões. Em seu entender, as mensagens emitidas pela mídia são produto dinâmico de uma confluência de vozes — "por exemplo, a voz e o perfil político/moral da emissora, as vozes socialmente posicionadas do roteirista que escreve o texto e as vozes dos personagens dentro do texto" (:75) ; sua pesquisa sobre como os espectadores brasileiros negociam com as representações sobre gênero, sexualidade, raça e classe, presentes nas telenovelas ou no telenovela flow, assenta-se sobre a rejeição da hipótese de que a mídia impõe sentidos fechados sobre uma audiência. A questão teórica que anima a investigação pressupõe um processo no qual sujeitos sociais em permanente devir, imersos em um ambiente cultural, fazem variadas seleções entre as mensagens dispostas pela mídia. Esses sujeitos apropriam-se dos significados aí contidos, respondem criativamente às suas representações e se posicionam assertivamente em face delas.

O conceito de interpelação é chave para o desenvolvimento da tese a respeito de como os indivíduos, ao se voltarem para os "chamados" efetuados pela heteroglossia midiática orquestrada no interior do telenovela flow, vão pensar sobre estética corporal, hierarquia social, sensualidade, amor, beleza feminina etc., para se constituírem enquanto brasileiros. Todavia, embora a etnógrafa tenha reunido para exame um material empírico muito vasto — tanto em termos de material de mídia, seus cruzamentos e interseções, quanto em termos de situações sociais — e voltado um olhar abrangente e crítico sobre a realidade, essa idéia não é importada da explicação althusseriana sobre o funcionamento dos aparatos ideológicos do estado capitalista sem que ela imprima sua marca à reflexão.

A autora nos promete um estudo que ultrapasse a perspectiva segundo a qual a cultura de massa reproduz um retrato unívoco do mundo e exerce um "efeito" sobre os agentes sociais. No seu entender, na qualidade de sujeitos e mesmo para produzir a sua subjetividade, os espectadores metabolizam o que recebem da mídia e elaboram esses conteúdos em suas relações cotidianas. O trabalho ora em questão objetiva verificar esse processo e lançar novas luzes sobre os estudos de recepção. Não obstante, conquanto tenha se preocupado em nuançar a noção de interpelação, admitindo a possibilidade dos sujeitos não atenderem aos "chamados" do telenovela flow e, nessa recusa, exercerem sua inventividade de agentes (:79-80), o que os capítulos quatro, cinco e seis do livro descrevem é um sistema discursivo detalhista — que discorre sobre amor, calçados femininos, carnaval e política nacional — insistente e difusor de estereótipos. Ele vem ao ar em estilo melodramático, only for you, cercando o público brasileiro por todos os lados, no país inteiro, com um texto repleto de mensagens que reforçam uma visão hierarquizada da interação social.

A narrativa do telenovela flow, tal como caracterizado no trabalho, serve-se de olhares, piscadelas, tons de voz sensuais, conselhos, dedos apontados para o espectador, fotografias, fofocas e segredos. Ele faz um retrato "predominantemente branco, rico e bonito" (:111) do mundo e convoca os indivíduos a prepararem sua aparência para — assim como os personagens dos roteiros teledramáticos — ultrapassarem fronteiras históricas de gênero, de raça e de classe. O que o estudo quer evidenciar é um fluxo midiático que fornece elementos para que os indivíduos resolvam as tensões entre "tradicional" e "moderno" que definem o Brasil e, respondendo ou não à interpelação da mídia, tomem suas posições na sociedade (:119-121). Todas as informantes ouvidas nessa pesquisa respondem à interpelação da mídia em suas práticas cotidianas e se remetem aos elementos por ela postos em circulação. Nos casos examinados no livro, a criatividade das telespectadoras no uso das noções veiculadas pelo fluxo da telenovela, não fica evidente. Ao contrário, elas parecem capazes de pinçar os aspectos que lhes dizem respeito e de fazer suas próprias seleções do material sobre o qual vão produzir sua subjetividade, mas não está claro se ou como, na qualidade de interlocutoras da mídia, operam transformações quanto ao seu destino social a partir dessas escolhas.

Este estudo teria ganhado ainda mais em originalidade se tivesse se detido um pouco mais na questão da mudança. A análise destrincha as transformações vividas pelos personagens das narrativas teledramáticas e mostra como essas evoluções obedecem a um certo modelo. Ao privilegiar a abrangência em detrimento da especificidade em seu recorte empírico, a autora pode fornecer um panorama do que é o sistema discursivo em que a telenovela está inserida. Quando se misturou na experiência cotidiana do nativo, ela conseguiu capturar as múltiplas formas que as mensagens televisivas assumem ao serem manuseadas por mulheres de diferentes origens e situações sociais. A busca de Thais por uma elucidação estrutural da forma como o Brasil se coloca perante a televisão não contemplou, todavia, uma discussão mais aprofundada e uma ilustração mais minuciosa dos aspectos que particularizam a história da indústria televisiva brasileira e dos distintos diálogos que, através da emissão de variadas mensagens, ela manteve com os diferentes segmentos da sociedade brasileira ao longo das décadas.

A pregnância da televisão na sociedade brasileira é um fenômeno que, definitivamente, ainda não foi esgotado pela antropologia. Este livro traz uma contribuição de relevo e propõe uma discussão bem-vinda ao avanço do debate. Trata-se de um exercício crítico sofisticado que, ademais, proporciona uma leitura instigante sobre os personagens ficcionais e reais que escrevem a prosa social brasileira.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Nov 2006
  • Data do Fascículo
    Out 2006
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