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Os afectos mal-ditos: o indizível nas sociedades camponesas

RESENHAS

Janaina Moscal

Mestranda/PPGAS UFPR

FERREIRA, Paulo Rogers. 2008. Os afectos mal-ditos: o indizível nas sociedades camponesas. São Paulo: Editora Hucitec/ Anpocs. 257pp.

Escrita do fugidio, do que flui nos interstícios, assim se apresenta a etnografia de Paulo Rogers Ferreira. Em uma antropologia rural que se pretende simétrica, o autor traz à cena os afectos mal-ditos de uma pequena cidade do Cariri cearense, onde os desejos escapam ao ideário do homem do campo. A simetria proposta pelo autor tem início nas reflexões acerca do que ele categorizou como Texto Brasileiro sobre o Rural (TB). Ao elaborar um panorama de textos e autores que discorreram sobre a temática, Rogers apresenta a imagem cristalizada de um camponês "eunuco" e "castrado". E assim ele constrói, no intuito de desconstruir.

O impulso de sua escrita vem do desejo, desejo inspirado no contexto nativo e que "contamina" a produção de sua etnografia. Geografia e não história, experimento para além de observação participante, o antropólogo mistura-se aos devires da sexualidade vivida em Goiabeiras. A ficção do nome faz jus a um contexto em que os rumores sobre as condutas abalam o cotidiano da cidade nordestina. Os sfectos mal-ditos: o indizível nas sociedades camponesas é fruto de sua dissertação, defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília (UnB), no ano de 2007. No final de 2008, através do Prêmio Anpocs, o texto foi revisto e publicado.

Orientando de Ellen F. Woortmann, uma das autoras que se destacam na pesquisa sobre o rural brasileiro, o autor propõe o novo, em novas formas de olhar o que não é dizível, o que não é abarcado nem pelo discurso sobre o gênero, nem pelo discurso do campesinato. Desta feita, sua escrita é marcada por conceitos inspirados em autores como Gilles Deleuze, Bruno Latour, Gabriel Tarde, Eduardo Viveiros de Castro e Daniel Lins. Este último pesquisador de importância marcada na trajetória acadêmica do antropólogo, que carrega nos conceitos e nas linhas teóricas trazidos por Lins, sua base de argumentação.

Três conceitos orientam os caminhos de sua intensa busca pela simetria: o afecto, o indizível e o Texto Brasileiro sobre o Rural (TB). Sob o signo do pensamento de Nietzsche, Artaud, Khatibi e Deleuze-Guattari, Lins propõe pensar o intratável, em modos de dizer o indizível. O indizível é o que escapa às normas das boas famílias goiaberenses, ao amor prescrito, mas que, em uma gramática autoral, usa as regras do jogo a seu favor, escapando da imagem instituída pelo Texto Brasileiro sobre o Rural.

O TB traça seu caminho desde Pierre Legendre e seu Texto Ocidental, conceito que trata de uma "economia de um sistema textual, onde as instituições criam um ciclo, onde tudo é dito" (:19). De Legendre, segue-se para o Texto Brasileiro sobre o Cangaço, também cunhado por Daniel Lins e que versa sobre a parte mal-dita da literatura que tem Lampião como herói mitológico e controverso. No Texto Brasileiro sobre o Rural, Ferreira disserta sobre a idealização do corpo camponês, inscrito "sob a égide de uma semântica do dizível". As representações deste ideário, portanto, castram o homem rural brasileiro, reduzindo suas paixões às motivações cunhadas pelo social. Em um movimento contrário, impulsionado pelo que é próprio às paixões, Paulo Rogers propõe liberdade à sexualidade camponesa, afirmando "dar adeus ao corpo camponês instituído pelo TB".

Os afectos, centrais neste experimento-escrita, carregam o sentido proposto por Gilles Deleuze e sua reinvenção de Spinoza. Os afectos não são casal, não remetem ao pessoal, fogem à prescrição, alimentam-se dos movimentos calcados em uma memória do futuro. O "corra!", professado pelos nativos, ecoa insistentemente nesta etnografia. É o convite à afecção, à experimentação do pensamento e, nesta escrita, do próprio corpo.

É essa estética deleuziana que encharca a etnografia criada por Paulo Rogers. Em sua descrição dos circuitos dos afectos mal-ditos de Goiabeiras, o autor cria o encontro das multiplicidades, daquelas propostas por Deleuze e das vividas pelas matilhas da pequena cidade cearense. Gramáticas, cartografias e economias tentam assim dar conta do que não pode ser dito e também do que é mal-dito, do sistema e do que joga com ele, em uma brincadeira, em um fazer arte com o corpo. As boas famílias exercem seu (pretenso) controle social em local público: espaço afetivo por excelência, a praça é palco de diversão e punição.

E, assim, o autor traz Focault à cena de sua escrita rizomática que, além do vigiar e punir, tem sua obra como inspiração para o que Ferreira trata como uma micropolítica do cotidiano. É aí que, estrategicamente, os ditos "veados" de Goiabeiras burlam o imaginário instituído, ao negar e condenar qualquer conduta anormal que fuja aos padrões da moral local. "Negue!", foi o que várias vezes o antropólogo ouviu de seus nativos. E inserido na multiplicidade dos circuitos, acabou por ser transfeito em mal-dito.

Fragmentos deste discurso nativo têm então bons encontros com autores e conceitos que permitem a pulsão das paixões. Conceitos, que ademais da estrutura, deixam brechas, passagens onde "as identidades definem um território, mas não mapeiam o indivíduo" (:145), como o "associacionalismo afetivo", proposto por Gabriel Tarde. A vida que explode na escrita de Ferreira povoa de sentidos um corpus academicus marcado por aquilo que o autor conceitua como um "estupro" do TB em relação aos seus objetos de estudo.

Versar sobre um ideário bucólico por excelência, inscrever ideias repetidas de um mesmo sujeito que até hoje (no direito ou na igreja) é cunhado por seus "traquejos caipiras". A família, a casa, o casamento: o camponês seguiria assim seu destino no Texto Brasileiro sobre o Rural. Ainda que este antropólogo, "tomado pelo sujeito do enunciado", possa ser visto como aquele que se apaixona e permanece distante de uma razão (e de uma estrutura própria à disciplina), ele não traz à cena os clássicos sobre o rural para simplesmente negá-los. Informado pelo discurso nativo, ele intenta a boa antropologia, na qual os conceitos e as estruturas não precedem o que lhe apresenta o vivido. O "estupro" ao qual o autor se remete é anterior à sua escrita: assim, o camponês "castrado" e seu corpo-mais valia, corpo-mutilado, corpo-funcional.

Sempre à margem, este camponês instituído serve como representação de um corpus academicus aplicado a projetos e políticas públicas. E é desta forma que se constitui a caricatura de um corpo camponês no texto brasileiro. "Um personagem quase nulo de suas paixões, pois o que vale para muitos teóricos das sociedades camponesas são praticamente as estruturas e as funções e não as intensidades e as paixões" (:58). O homem do campo, simplificado em sua existência, desprovido de agência, tem suas paixões ditadas pelo social.

Os clássicos do rural brasileiro seguiriam assim, em ciclos de ideias repetidas, em um "curioso retorno ao mesmo", em que muitas vezes um único texto é permanentemente citado, reduzindo a obra do autor no próprio TB. Integrantes deste ciclo de ideias, o pesquisador inclui em sua lista autores que introduziram os estudos rurais no Brasil: Antonio Cândido, Otávio Velho, Giralda Seyferth, Maria Isaura Pereira de Queiroz, Margarida Maria Moura, José Tavares dos Santos, Lygia Sigaud, Beatriz Heredia, Luiz Eduardo Soares, Afrânio Garcia Júnior, Klass Woortmann e Ellen F. Woortmann. E entre estes, destaca alguns que, direta ou indiretamente, discorreram sobre as sexualidades camponesas.

O corpo, morada dos afectos mal-ditos professados por Ferreira e seus nativos, traz ao Texto Brasileiro sobre o Rural um efeito multiplicador, pois dá vazão ao movimento que, embora não dito, integra as socialidades camponesas. A cartografia da afecção sai da casa, da maison, e ultrapassa terreiros, quintais, desviando-se da roça enquanto caminho de trabalho, mas povoando de vida as moitas, fazendo das cercas e da vegetação nativa o lócus dos devires.

As naturezas-culturas de Bruno Latour encontram-se com os fragmentos etnográficos dos afectos mal-ditos: homens vibram ao sentirem o prazer proporcionado por coitos com cabritas ou galinhas e vão além; a afecção grupal os faz serem "cobertos", como os próprios animais. As meias palavras inexistem nesses depoimentos, que não têm duração, não se perpetuam. O convite à afecção é sempre novo. É assim a geografia destes corpos.

A escrita do indizível parece ter a agência da criação, é para ser sentida, ouvida. Performatizada, ela oferece ao leitor imagens de uma noite camponesa, na qual os sons dos grilos misturam-se aos sussurros e aos gemidos vindos das moitas. O corpo sacudido por Deleuze traz as paixões alegres, torna epifania os bons encontros entre os nativos e a antropologia. O lugar das emoções na disciplina, desta forma, ganha espaço neste etnografar do experimento, em que corpo e alma perdem seu caráter dual. É no vivido e na comunicação com os outros que a união pensada por Descartes (e negada em sua própria obra) tem nos exercícios da imaginação a experiência do uno.

O sentido e os sentidos propostos pela escrita de Paulo Rogers têm nos afectos ação e paixão, ambos dizem de movimento, mas pouco de uma afetividade. Esta permanece ainda latente, enviesada, ela está nas amizades e, apontamento de minha conta e risco, nas paixões de Mariano, talvez mais especificamente, em seu amor por Alexandre. Em prosas mantidas com o antropólogo, aos 69 anos, este rapaz velho dá vazão em seus depoimentos ao que, na fala de jovens e homens casados integrantes deste circuito, permanece não dito. A paixão segundo Mariano, constante do capítulo final do livro, traz algo de mitológico, amor irrealizável, além dos afectos mal-ditos. Cuidado, comensalidade, carinho, não há dívidas, não há contraprestação, Mariano ama todos os homens de Goiabeiras, mas por Alexandre guarda afeição especial. No final de seus dias, a memória, já não é mais do futuro, os afectos permanecem como lembranças boas e a paixão como um devir, além do corpo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Dez 2010
  • Data do Fascículo
    Out 2010
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