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A invenção da juventude violenta: análise da elaboração de uma política pública

RESENHAS

CASTRO, João Paulo Macedo e. 2009. A invenção da juventude violenta. análise da elaboração de uma política pública. Rio de Janeiro: Laced/ E-papers. 266 pp

Manuela Souza Siqueira Cordeiro

Doutoranda - Museu Nacional

De acordo com Peirano (2006), a antropologia tem possibilidade de contribuir para a análise do Estado, objeto de investigação comum da sociologia e da ciência política, ao imprimir um caráter comparativo, universalista e relativizador. Neste sentido, a obra de João Paulo Macedo e Castro A invenção da juventude violenta. Análise da elaboração de uma política pública tem como tema norteador a compreensão das distintas etapas e procedimentos utilizados para a elaboração de políticas públicas ou governamentais, isto é, a construção de mecanismos de intervenção estatais. Mais especificamente, seu interesse de pesquisa está voltado para a invenção de um problema analítico, bem como de um sujeito discursivo - o jovem violento - sendo a pedagogia da democracia o operador fundamental para inseri-los, por meio das políticas públicas, em uma humanidade plural e diversa. O autor utiliza como contexto de pesquisa a experiência da Unesco no Brasil que, desde os anos 1990, objetiva a implementação de um programa chamado Cultura de Paz no estado do Rio de Janeiro. Ao utilizar noções teóricas que vão desde as "metáforas criativas" de Malinowski até a "eficácia da magia" em Lévi-Strauss, o viés analítico de Castro (2009) se propõe a "contar a estória da estória, em busca de revelar os não ditos e as condições materiais, políticas e sociais que permitiram o surgimento de uma 'estória', e desencantar a magia, anular o efeito do feitiço ou mostrar o feitiço e o feiticeiro" (:18).

Faz-se de extrema relevância recuperar a discussão acerca da inserção do autor no campo de pesquisa. Castro não se caracteriza apenas como observador, na medida em que também participa na condição de consultor do processo de construção da política pública que se tornou objeto de sua compreensão. Desta forma, colocam-se questões acerca do equacionamento dos papéis sociais tanto de ator, com relevância premente para o processo de negociação que estava em curso, bem como de observador, que percebia a imposição para criar uma distância necessária visando à construção da alteridade. Assim, Castro demarca que a análise realizada em seu trabalho deve levar em conta sua transição em uma complexa teia de relações, bem como o entrecruzamento de posições por ele assumidas. Sua inserção peculiar também provocou uma mudança na construção de seu objeto de pesquisa - em vez de perseguir o modus operandi dos nativos que constroem o Programa Escolas da Paz, ele voltou seu estudo para o conjunto de condições necessárias à construção de tal experiência, indagando-se como é construído o segmento social alvo desta política. Assim, seu estudo opera principalmente a partir de três categorias desenvolvidas em pesquisas da Unesco Brasil - juventude, violência e cidadania - de forma a verificar como funcionam na condição de conectores entre pessoas e instituições, permitindo a elaboração do programa social em questão e possíveis intervenções. Neste sentido, o autor lança mão de procedimentos metodológicos que vão além das entrevistas com gestores públicos, instrumentos comumente utilizados pelos antropólogos, permitindo ao leitor acompanhar a elaboração de suas inferências analíticas a partir da construção das categorias nos estudos da Unesco.

No primeiro capítulo, o autor faz uma recuperação histórica cuidadosa dos dados acerca da criação da referida instituição e de organizações antecedentes, enfatizando posteriormente a construção do programa de intervenção no Brasil - Abrindo espaços: construção de uma cultura de paz. Castro demonstra ao longo deste capítulo que é relevante compreender a implementação de programas sociais que promovem a constituição de uma denominada comunidade universal como produtos dotados de historicidade. Existe um processo permanente de reordenamento e consequente descentralização da estrutura desse organismo internacional, na medida em que tem de conviver com uma lógica formulada a partir das políticas dos países-membros, bem como a lealdade ao sistema da ONU. Tal realidade tem patente importância no trabalho conduzido pelo autor, uma vez que se trata da análise da aplicação local de um modelo global de promoção de uma política pública para a "juventude violenta".

Castro analisa minuciosamente, no segundo capítulo, a construção de dois estudos de grande importância para a reunião de dados e a construção de uma fonte própria de informações acerca do trinômio juventude-violência-cidadania no Brasil. Estes ainda pretendiam construir um espaço de interlocução com instituições e pessoas dedicadas ao tema da juventude. Acerca do primeiro estudo, o autor explicita os fundamentos para a construção do trinômio por meio da criação de nexo entre as categorias. Em seu exame, estas operam mais como unidades de observação do que como categorias explicativas. Além disso, ressalta a multivocidade da noção de violência que, por sua complexidade, é de difícil conceituação, uma vez que é caracterizada como um fenômeno com múltiplas causas, para o qual convergem vários fatores. Já o segundo estudo analisado, diferentemente do primeiro, de abordagem discursiva e circunscrita ao contexto da Capital Federal, apresenta um panorama quantitativo acerca da realidade brasileira, caracterizado por Castro como um complemento do estudo anterior. Neste sentido, a Unesco começa a se inserir, cada vez mais, na realidade nacional, imprimindo um modus operandi próprio, em consonância com a trajetória internacional, mas reformulada pela experiência local que "está inserida em uma lógica que opera entre a confiança, a intimidade, a técnica e os saberes científicos. Constrói-se uma estória, baseada nessas operações de transposição, encontros e superposições" (:124).

No terceiro capítulo, o autor aborda os textos produzidos a partir de 1999 na continuação de produção e transmissão de um determinado saber capaz de uma dupla tarefa - o diagnóstico e a proposição. Os autores das pesquisas exercem o duplo papel de "produtores" e "transmissores" desses modelos de reflexão tanto ideológicos quanto políticos. Castro demonstra que o jovem adquire maior complexidade nos estudos a partir de 1999, denotando um segmento social determinado tanto por uma perspectiva biológica quanto social, sendo juventude a categoria analítica para qualificar as suas ações, assumindo matizes diferentes em pesquisas distintas, permitindo a observação desses atores sociais, bem como a sua construção social. Quanto à categoria violência, a preocupação é similar - os autores utilizados nos trabalhos analisados delimitam vários conteúdos a esse indexador social. No que tange à cidadania, a partir de sua inserção, a perspectiva acerca do jovem assume um caráter político, conferindo maior protagonismo ao mesmo como sujeito de direitos.

Os últimos dois capítulos são dedicados também a analisar a elaboração de um determinado discurso social acerca do jovem violento, mas avançam na construção de modelos considerados legítimos para a reversão das consequências da violência que o atinge. Castro tem como objetivo, no quarto capítulo, verificar de que forma o debate acerca da Cultura de Paz em sua cooperação com o governo do estado do Rio de Janeiro fornece condições para o maior protagonismo dos jovens, construído idealmente nas pesquisas e operado a partir do programa Desenvolvimento de uma cultura de paz no Rio de Janeiro. O autor realiza uma análise discursiva acerca tanto da proposta geral da Unesco quanto do documento do projeto que instaura a parceria no Rio de Janeiro. Ressalta que o primeiro programa permitiu a esta organização maior capilaridade e acesso a estados nacionais ao largo de suas instituições governamentais, por meio de universidades, instituições religiosas e humanitárias. No que tange à experiência brasileira, em 2000 foi criado o Programa Escolas da Paz no Rio de Janeiro em uma tentativa experimental de reduzir os indicadores de violência, tendo como objetivo fortalecer a escola como polo irradiador de cultura.

No último capítulo, Castro verifica mudanças na orientação dos estudos da Unesco sobre juventude na transição de 1999 para 2000. A primeira pesquisa abordou novos aspectos quanto ao tratamento da situação do jovem, trazendo novamente ao léxico institucional expressões como "vulnerabilidade social" e "risco social", a partir de uma literatura dos anos 1960 e 1970. O autor demonstra como estes termos operaram como conectores na construção de uma gramática comum que visa à protagonização no mundo da Unesco Brasil nos projetos sobre violência. Este estudo propõe também a construção de um vocabulário de sentidos e verbetes que operem como um mapa de orientação para as intervenções sociais. A segunda pesquisa em questão teve como objetivo examinar as práticas violentas em um dos principais loci da administração pública, de transmissão de valores e socialização dos jovens - as escolas.

Algumas considerações finais apontam a existência de traços de continuidade de uma prática "colonialista" por meio das ações intervencionistas da Unesco pela incorporação da ótica de dominação e modelos disciplinares. Posteriormente, o autor recupera noções de Pearce (2000) para elucidar que o eixo norteador da cooperação internacional se orienta mais no sentido de produzir uma aliança global do que um consenso retórico. Uma das destacadas contribuições do trabalho de Castro é a análise meticulosa do processo de elaboração de políticas públicas - isto em um cenário internacional no qual cada vez mais os processos de cooperação e ajuda estão em cena, sublinhando o poder de construção e operação de categorias sociais que os organismos internacionais, aliados às suas representações locais, têm sobre os contextos em que atuam.

Atualmente, a antropologia se volta principalmente para as próprias representações das denominadas "sociedades modernas", nas quais a interação com o Estado define e é definidora dos atores sociais que assumem inúmeros rótulos - entre estes o de jovem violento. Assim, em um cenário no qual os "outros" estão cada vez mais próximos, dentro dos limites do próprio Estado-Nação, o exercício do estranhamento antropológico deve ser cada vez mais matizado. Neste sentido, João Paulo Macedo e Castro traz contribuições importantes tanto sobre a temática da construção de políticas públicas voltadas para a juventude quanto para o próprio fazer antropológico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Ago 2011
  • Data do Fascículo
    Abr 2011
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