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Do arco e flecha ao "arco digital": os indígenas do Brasil e a internet

RESENHAS

FERREIRA, Eliane Fernandes. 2009. Do arco e flecha ao "arco digital". os indígenas do Brasil e a internet. 253 pp

Jens Schneider

Universidade de Amsterdã

A internet representa um dos símbolos mais fortes das mudanças globais (e globalizantes) do mundo com base em novas tecnologias nos últimos 15 anos. O tema "indígenas e internet" gera então uma forte contradição - pelo menos na percepção mais comum do mundo não indígena sobre o mundo indígena. A internet simboliza velocidade e flutuação, um aparecer e desaparecer, uma antítese à continuidade e à sustentabilidade. Pelo lado dos indígenas, há o insistir em tradições e sustentabilidade, desaceleração e simplificação. Eliane Fernandes Ferreira escolheu um tema que não só por si mesmo é fascinante, mas que também se oferece como poucos outros para criticamente abordar discursos dominantes na antropologia, nas políticas de desenvolvimento e na mídia sobre autenticidade cultural, mudanças culturais e a suposta tensão entre a modernidade (ocidental) e a tradição (indígena). Já no primeiro capítulo, Ferreira deixa claro que a internet e seu uso pelos indígenas não representam um fenômeno totalmente novo. O uso de gravadores a partir dos anos 1970 e de câmeras de vídeo nos anos 1980 já tinham mostrado que os indígenas de fato já não viam nenhuma contradição entre a preservação de tradições e a adaptação de novas tecnologias.

De fato, ativistas indígenas no mundo inteiro descobriram e incorporaram a internet e o correio eletrônico bem cedo, em alguns casos até antes do uso comum nas universidades! O estudo breve da autora sobre o uso da internet entre indígenas norte-americanos revela que 90% das comunidades indígenas no Canadá estão conectadas à internet: destas quase a metade tem conexões de alta velocidade. Comparando-se ao ano de 2004, do qual são tirados estes números, na Alemanha só 17% das pessoas tinham acesso à internet com conexão de alta velocidade. O fato de no Brasil muito menos comunidades indígenas estarem conectadas à internet representa, porém, mais uma questão de acesso devido a problemas de infraestrutura e de recursos do que de uma suposta falta de "abertura cultural".

A descrição da breve história da introdução da internet em comunidades indígenas no Brasil e de alguns projetos pioneiros mostra quão importante foi o papel de mediadores e patrocinadores não indígenas, como também dos provedores de internet. Quase todos os projetos precisaram de apoio de ONGs e de ativistas não indígenas e até do governo brasileiro nos centros urbanos, ou foram iniciados por estes últimos. O ceticismo de muitas comunidades indígenas diante de computadores e da internet é expressão da situação dos indígenas no país - desde a não percepção pela sociedade majoritária até os inumeráveis conflitos pelo direito à terra, que na maioria dos casos os situaram na posição de perdedores.

Eliane Fernandes Ferreira joga luz sobre estas questões tanto de forma geral quanto concreta. O relatório detalhado da autora sobre sua pesquisa etnográfica em projetos no Acre mostra muito bem como as questões gerais se refletem nas decisões individuais ou coletivas a favor ou contra a internet. Ao mesmo tempo, a participação no desenvolvimento digital no Brasil significa cada vez mais uma questão de "sobrevivência social": vai desde a declaração de impostos até o comércio eletrônico como alternativa à comercialização de produtos indígenas.

A autora também aborda com êxito as percepções da sociedade majoritária. Evidentemente, as comunidades indígenas não vivem em um vácuo social, por isso a identidade indígena é reativa e reflete os conceitos da sociedade geral nela projetados. Neste aspecto, o Brasil também é um bom campo de pesquisa, e a digressão referente ao movimento modernista brasileiro é bem interessante. Como em muitos outros países, os intelectuais brasileiros da década de 1920 se orientavam sobretudo de acordo com os acontecimentos originados em Paris (e na Europa) e se influenciavam pelo seu futurismo. Pode soar como uma ironia estranha, mas foi o futurismo que levou Oswald e Mário de Andrade a se interessarem pela cultura indígena brasileira como algo específico e único do país. No seu famoso "Manifesto antropofágico", Oswald de Andrade reivindicava a radical incorporação de elementos indígenas à identidade nacional brasileira.

Obviamente, esta última não se tornou mais "indígena" devido a isso - seria legítimo até mesmo indagar se a recepção (ou a incorporação) de alguns elementos das culturas indígenas alguma vez chegou a ultrapassar o nível de simples caricatura. Mas a identidade brasileira ganhou autoconfiança por meio do mecanismo da "antropofagia cultural". Agora, com a internet, é possível que os indígenas brasileiros façam uso do mesmo mecanismo, porque esta tecnologia oferece uma variedade de possibilidades de fortalecimento da própria identidade até então muitas vezes pouco ou nada valorizada - pelo menos, é isto o que a autora espera. Desde a criação de redes políticas até cursos on-line para professores e agentes agroflorestais indígenas, a internet torna muitas coisas possíveis. Notável também é o fato de todos os atores ao mesmo tempo enfatizarem as maiores possibilidades de uma comunicação intercultural tanto entre comunidades indígenas quanto entre indígenas e não indígenas.

Um ponto crítico do livro é que pouco se fala das fissuras causadas pela questão da adaptação de práticas culturais não indígenas dentro das comunidades indígenas. Obviamente as comunidades não são unidades homogêneas nem estão sempre à procura de harmonia. Em muitas comunidades indígenas no mundo inteiro há esta contradição básica entre "tradicionalistas" e "modernistas". Os exemplos etnográficos do volume mostram que os projetos e os ativos são vistos de forma ambivalente, mas o livro não apresenta comunidades que decididamente se opuseram à introdução de computadores e da internet.

Finalmente, seria interessante saber mais sobre o papel da discussão a respeito de páginas e conteúdos da web problemáticos nos cursos de computação. É patente que estes últimos são vistos como uma necessidade e pré-condição para o acesso à internet e que obviamente se vê na aproximação espontânea e "ingênua" um perigo. Como se lida nas comunidades e também nos cursos preparatórios com uma possível "atração" por (ou advertência contra) jogos on-line e sites pornográficos?

O estudo de Ferreira chega bem a tempo porque documenta o início de um processo altamente dinâmico. Cabe esperar que os seus resultados formem um ponto de partida para mais estudos no campo e que também estejam acessíveis em breve no Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Ago 2011
  • Data do Fascículo
    Abr 2011
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