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Travels with Tooy: history, memory, and the African American imagination

RESENHAS

PRICE, Richard. 2008. Travels with Tooy: history, memory, and the African American imagination. Chicago: University of Chicago Press. 452 pp

Thiago de Niemeyer Matheus Loureiro

Doutorando - PPGAS - MN - UFRJ

Há mais de 40 anos pesquisando e escrevendo sobre as populações maroon do Suriname e Guiana Francesa, o antropólogo estadunidense Richard Price vem produzindo algumas das reflexões mais importantes acerca dessas populações, além de ter sido, ao longo do tempo, uma figura de destacada atuação política. Travels with Tooy é uma etnografia produzida a partir de sua experiência com um "obeah man" (espécie de curandeiro ou feiticeiro, muitas vezes temido e respeitado por seu conhecimento das práticas e rituais próprios aos cultos de Obiá caribenhos) saramaka, e são as reflexões desse personagem que animam a escrita do livro. Bastante original do ponto de vista descritivo, o texto é uma rica etnografia baseada, segundo o autor, em sua convivência e na amizade com "um colega intelectual" (:VII).

Protagonista do livro, Tooy é um saramaka "sábio e espirituoso [...], inveterado viajante do tempo" que "adora cruzar fronteiras, entre séculos e continentes, entre o mundo dos vivos e dos mortos, entre o visível e o invisível, entre vilarejos na terra e no fundo do mar" (:X-XI). É preciso destacar a maneira como Price apresenta-o ao leitor. Em sua descrição, Tooy não é um herói, talvez "um tipo de herói grego - um homem carismático que falha de maneiras distintivamente humanas e está, assim, condenado à tragédia mortal", mas nunca herói "na acepção romântica do termo" (:235). É justamente essa forma de descrevê-lo que o torna convincente, acrescentando ao "feiticeiro poderoso" e "profundo conhecedor da cosmologia saramaka" uma dimensão mais tangível e humana.

No interior de um projeto como esse, não é surpresa que a questão da autoria apareça como algo a ser levado em consideração, mesmo que para ser, de alguma forma, contornado. Embora evite aprofundar-se na questão, Price enfatiza que "uma breve reflexão deve tornar claro que, desde o princípio, [o antropólogo] deveria assumir a inteira responsabilidade pela autoria nesse caso" (:IX). Assim, embora "o conhecimento, a imaginação e a personalidade de Tooy animem o texto, o ato de escrever o livro, e todos os seus detalhes, seriam tão estranhos a ele quanto organizar e conduzir uma cerimônia de óbia seria para mim" (:IX). A atenção de Price à assimetria presente na relação entre antropólogo e nativo fica clara quando ele afirma que a coautoria de Tooy não mudaria o fato de que "ao fim e ao cabo, eu sou o escritor americano e ele o obeah-man saramaka" (:IX).

O livro é organizado em um mosaico de histórias, eras, "ensinamentos" e paisagens, tanto imaginadas quanto literais. Os capítulos variam entre histórias de três ou quatro páginas e longas dissensões etnográficas, com algumas sessões obedecendo a uma ordem cronológica mais nítida, como no episódio do julgamento e prisão de Tooy (deter-me-ei neste ponto mais adiante) e outras apresentando histórias, eventos ou personagens que procuram dar inteligibilidade aos capítulos adjacentes. A voz teórica do autor só aparece claramente no último capítulo - "Reflections from the Verandah" - em que o material etnográfico é levado a dialogar com questões teóricas mais amplas, como "crioulização" e "inventividade". Essas questões aparentemente orientam a composição do trabalho; o ponto mais importante parece ser a capacidade criativa "afroamericana". Price sugere que esse debate tem sido historicamente polarizado entre a ênfase nas "continuidades africanas na América" e a atenção para "a criação de instituições africanas no novo mundo" (:287). O problema, em sua perspectiva, deveria ser deslocado para outra chave: a de como, em contextos diversos, "escravos africanos, vindos de nações e línguas diversas, tornaram-se afroamericanos" (:287). Deste modo, apesar da variedade de formas socioculturais das nações africanas, certos princípios subjacentes seriam relativamente gerais: concepções fenomenológicas sobre o funcionamento do mundo (como causalidade, o papel dos mortos no mundo dos vivos e a relação entre conflito social e doença ou malogro), padrões de relação social, ideias sobre reciprocidade (como a compensação por ofensas e o uso do tecido como moeda de troca) e outras mais amplas sobre padrões estéticos (o gosto por determinados ritmos de toque de tambor, forte contrastes de cor e atitudes em relação à simetria e à síncope) (:290).

O surgimento da cultura "afroamericana" aparece (tal como em seu ensaio seminal em coautoria com Sidney Mintz, escrito em 1972) como problema eminentemente histórico. Entendê-lo implica examinar "o quão etnicamente homogêneos [...] eram os africanos trazidos para uma determinada localidade do novo mundo" e o "quão rápido eles e seus descendentes afroamericanos passaram a pensar como membros de novas comunidades" (:288). Em suma, o que teria possibilitado que aquilo que Trouillot chamou "milagre da crioulização" acontecesse seguidamente nas Américas (:288)? Sendo o problema da "crioulização" essencialmente diacrônico, o uso de fontes históricas aparece com certa frequência no texto. Uma extensa pesquisa de arquivo é ensejada, por exemplo, no intuito de reconstituir o percurso de Pôbosi, um dos ancestrais mais importantes para Tooy. Uma das objeções mais imediatas a esse tipo de recurso é a de que ele submete o discurso nativo a outro supostamente mais verdadeiro, desabonando de alguma forma os relatos orais que não podem ser verificados. Price está ciente destas possíveis críticas e afirma em uma nota que "para muitos leitores [...] incluindo muitos antropólogos mais jovens, esse uso dos arquivos pode parecer 'verificacionismo'" e que uma primeira objeção seria a de "por que um relato saramaka do passado requereria verificação de um arquivo ocidental?" (:395). Sua resposta procura enfatizar que "o uso estratégico de materiais de arquivo não precisa ser ingênuo ou politicamente retrógrado" e que, para ele, e para muitos de seus amigos saramaka, esse uso "pode ser um ato político decisivo e progressista, destinado a promover justiça social" (:395). Além disso, não há inocência no uso que Price faz dos arquivos; sua pesquisa procura evidenciar as condições históricas da "crioulização", e não submeter os relatos orais ao crivo dos documentos. Nem sempre os relatos orais condizem com os de arquivo, mas isso não parece, de forma alguma, ser um problema para o autor. Parece-lhe, entretanto, necessário salientar o quanto a tradição oral saramaka ressoa em sua pesquisa documental.

Tendo procurado delinear o debate no qual a etnografia pretende se inserir, outras questões importantes talvez possam ser localizadas ao longo da etnografia. Destacam-se, entre elas, aquelas relativas à convivência entre "modos de vida não ocidentais" e os chamados "Estados nacionais modernos". Como parte integrante do território francês, a Guiana Francesa compõe parte da chamada "França Ultramarina". Nela, a convivência entre brancos da "metrópole", os creole afroguianenses e as diversas populações maroon que residem legal ou ilegalmente em seu território é notadamente complicada. Para a elite creole - cidadãos franceses de ascendência africana - permanece a tensão central e mal resolvida entre "o desejo de honrar, e se identificar, com os guerreiros quilombolas famosos do passado fundante guianense (sobre os quais eles leram em livros, ou ouviram na mídia) e um profundo desdém por seus descendentes subjugados e imperfeitamente modernizados" (:197).

É no cerne dessa perspectiva que chamo a atenção para os capítulos que tratam do julgamento e da prisão de Tooy. Na década de 1980, já aos 45 anos, Tooy teve relações sexuais com uma menina de 14 anos, que inclusive moraria com ele por quatro anos. De acordo com a narrativa apresentada, ao perceber a possibilidade de ser reparada financeiramente pelo Estado francês caso conseguisse incriminá-lo, a então adolescente abriu um processo contra Tooy por estupro, 20 anos depois de ter vivido com ele (:177-205). Toda a sequência de eventos é descrita de forma bastante original, em tom profundamente reflexivo. Nela aparece a questão do papel político do antropólogo, já que Price tem papel ativo na defesa e é pivô da posterior libertação de seu amigo. Ele adverte que "[...] essa não é uma história bonita, e não tem heróis. Até escrever sobre ela gera múltiplos riscos, reais e imaginados, incluindo a perda de leitores anteriormente simpáticos" (:177). Não há, assim, pretensão de abarcar múltiplos pontos de vista. Trata-se, sobretudo, da descrição do processo e do envolvimento do autor na defesa de seu amigo. Advertindo os leitores da impossibilidade (tanto prática quanto ética) de conversar com a suposta vítima, ou com os magistrados franceses, Price afirma que ainda assim "provavelmente valha a pena tentar abordar os eventos como eu melhor os entendo. Pois essa é parte da história de Tooy, assim como da minha" (:177). Todo o processo aparece como fruto da intolerância e de "mal-entendidos culturais": uma relação entre um homem de 45 anos e uma menina de 14 (desde que consentida) é tida como natural entre os Saramaka. Não havia um tradutor que falasse a língua de Tooy no tribunal, apenas Srnan Tongo, que "assemelha-se ao saramaka como o espanhol ao francês" (:169); quando Price pede à juíza que deixe que Tooy fale em sua própria língua (o autor foi uma das testemunhas de defesa de Tooy), após uma breve reunião com seus pares, ela anuncia: "[...] estamos na França [...], não no país Saramaka" (:187).

Finalmente, há muito mais a ser explorado em Travels with Tooy. Poucas etnografias aliam tão bem sofisticação e sensibilidade descritivas à contundência política, percorrendo um itinerário tão diverso de temas (há considerações sobre religião e pessoa entre os Saramaka, política, parentesco e ancestralidade etc.). Seja pela qualidade e originalidade do projeto, seja pelo brilho de seu protagonista, Travels with Tooy é, definitivamente, um livro digno de nota.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Ago 2011
  • Data do Fascículo
    Abr 2011
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