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Corsican fragments: difference, knowledge, and fieldwork

RESENHAS

CANDEA, Matei. 2010. Corsican fragments: difference, knowledge, and fieldwork. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press. 202pp.

Aline Fonseca Iubel

Doutoranda em Antropologia Social/UFSCAR

Francês de origem romena, Matei Candea não apresenta seu livro como uma etnografia da Córsega, mas como a própria viagem à aldeia chamada Crucetta, localizada ao norte da ilha mediterrânea da Córsega. Com um investimento primoroso na sutileza das descrições, Corsican fragments é obra de um antropólogo que se formou na Inglaterra, prevalecendo, portanto, o estilo empírico da tradição etnográfica britânica, com argumentos teóricos e metodológicos emergindo no mesmo ritmo que a descrição. Síntese desse estilo está na epígrafe de autoria de Bruno Latour, escolhida por Candea para abrir o livro: “Eu diria que se a sua descrição precisa de uma explicação, não é uma boa descrição, isso é tudo”. Nem por isso o autor se esquiva de temas e questões centrais dos debates antropológicos mais recentes, como a alteridade, tema para o qual, em uma espécie de “virada ontológica”, têm se voltado os antropólogos. Particularmente, trata-se aqui das relações de semelhança e diferença entre corsos e franceses enquanto exercício de pensamento arbitrariamente localizado, mas que visa responder também a questões mais gerais sobre a universalidade humana.

São dois os argumentos que se sobressaem ao longo dos oito capítulos: sobre a realidade da diferença entre pessoas, lugares, coisas, línguas e conhecimento (cada um destes temas sendo abordado em um capítulo); e sobre a natureza sempre contingente, parcial e incompleta de tais diferenças e igualdades. No primeiro golpe, o autor demonstra que não há nada simples quando se fala em construção, que é aqui privilegiada em relação à fixidez promovida pela ideia de social ou sociedade. Já o segundo golpe evidencia que, ontológica ou analiticamente, diferença não vem antes de igualdade, nem igualdade antes de diferença. A base que sustenta os dois argumentos é a de que a ideia da busca do equilíbrio entre alteridade e um mundo comum não é apenas uma preocupação antropológica, mas uma questão central para muitas das pessoas com as quais o autor viveu e trabalhou na Córsega.

O mistério (capítulo 2) é na Córsega uma prática específica de conhecimento, que tanto promove a existência de duas Córsegas – a misteriosa e a essencial – quanto torna qualquer tentativa simplista de distinção dentre insiders e outsiders nada explicativa do que lá ocorre. Estas duas faces, a do mistério e a da essência, constituem um poderoso mecanismo discursivo que limita e delimita como a Córsega pode e deve ser conhecida. O autor relata que esses dois discursos estão presentes não apenas em noticiários, folhetos de turismo, mas também no cotidiano das pessoas. Esta é uma das características que levam Candea a refletir sobre os limites de conhecimento do exercício etnográfico a partir da constatação de que neste contexto, em que as diferenças reais entre as pessoas e os lugares são múltiplas e fragmentadas, não se consegue ir muito além da captura de fragmentos de intimidades. Daí decorre uma crítica à tentação da descrição holística, já que na Córsega o que se tem é uma multiplicidade de vidas disjuntivas. A ferramenta metodológica criada pelo autor para lidar com essas singularidades é a ideia de local arbitrário (capítulo 1), um lugar que não possui significado ou coerência global, onde é o espaço que atravessa o significado e não o contrário.

A descrição apresentada no terceiro capítulo (Lugar) – a sucessão de falas e atos decorrentes de um incêndio, por exemplo – é bastante elucidativa das múltiplas conexões e da espessura e da resistência da ligação entre pessoas e lugares na Córsega. Os incêndios, não raros em determinado período do ano na ilha, são ocasiões nas quais distinções entre moradores e visitantes são mobilizadas: “além das chamas visíveis e da fumaça, o fogo vai tomando forma na discussão, a aquisição de uma origem e de um conjunto de futuros possíveis, gerando perguntas e realizando, ao longo do caminho, várias operações de engenharia social” (:76). Desde o primeiro momento em que o fogo é avistado tem início uma cadeia de chamadas telefônicas, nas quais as pessoas trocam perspectivas parciais sobre a origem e o futuro do incêndio, parciais porque dependentes do lugar em que cada pessoa se posiciona nesta cadeia. Esse monitoramento da fumaça e das chamas, que constitui o fogo como uma entidade única, mobiliza um profundo conhecimento sobre a geografia local, distinguindo então quem é de dentro e quem é de fora, quem possui o conhecimento local e quem não o possui.

Os modos paradoxais em que tais diferenças radicais podem emergir de um campo ambíguo de conexões e desconexões são explorados em três capítulos: Coisas, Pessoas e Línguas, analisando o ponto de vista do Estado francês em relação à Córsega; a relação entre corsos e franceses, entre corsos e árabes; os debates sobre o ensino e o uso da língua corsa, entre outros temas. Uma das conclusões a que chega Candea acerca da formação da identidade é que quanto mais ambíguas as afirmações sobre ela, maior sua autoridade. Extrapolando os limites da realidade etnográfica em um breve mergulho nas teorias sobre identidade, primeiramente o autor sugere que a Córsega inverte a relação entre fixidez de formas estatais e a fluidez de categorias locais. Os debates ocorridos entre os anos 1990 e 2000, promovidos tanto pelo governo francês quanto por entidades corsas – como a Assembleia Nacional Provisória ou a coalizão radical Nação Corsa – sobre o modo com que o povo corso aparece na Constituição Francesa demonstram que as definições estatais de cidadania e a de nacionalidade parecem fluidas, em votação e em discussão nos debates públicos, enquanto os modos locais de categorizar as identidades estão carregados de essencialismos.

Em uma brevíssima história desses debates vê-se que em 1991 o Conselho Constitucional francês delibera que a expressão “povo corso” é contrária à Constituição e decide que os corsos não podem ser oficialmente distintos ou separados dos franceses para efeitos da lei, operação pautada no que se chama “republicanismo francês” e sua recusa estatal em reconhecer minorias nacionais como pessoas coletivas portadoras de direitos. Em 2000, a Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância adverte a França no sentido de reconhecer a chamada natureza “multicultural” e “multirracial” desta nação. Embora a resposta do Estado francês tenha sido negativa, a moção gerou uma série de debates públicos, os quais, por mobilizarem diversas perspectivas sobre identidade e diferença, provocaram profundo interesse no autor, conduzindo-o à distinção entre categorias e conexões. Na tentativa de superar a divisão entre essencialismo estático, fixo e formas fluidas locais de se fazer identidade, a sugestão de Candea é que tanto as categorias quanto as conexões podem ser fluidas e abertas à manipulação agentiva quanto podem ser essencialistas, limitadas ou fixas. Seu poder, segundo o autor, reside justamente nas combinações possíveis, por exemplo, quando a categoria de aldeia é mapeada sobre a miríade de conexões, muitas vezes translocais, que lhe dá forma, conteúdo e persuasão.

Reflexões como estas sobre fluidez e fixidez, categorias e conexões/desconexões e multiplicidade de perspectivas, apresentadas no decorrer do livro no tocante aos temas já apontados (pessoas, identidade, lugares, coisas, línguas), conduzem a argumentação do sétimo e penúltimo capítulo acerca do conhecimento enquanto atividade aberta. Candea percebe que o uso do termo “sociedade corsa” pela imprensa sempre tem a ver com conexões: ora a questão sendo a de muitas conexões (seria o caso de práticas como clientelismo, abuso de informações privilegiadas, teias de influências que perverteriam o bom funcionamento da ilha), ora sendo a de poucas. É evidente que esses discursos são claramente informados por tropos e estereótipos generalizados, os quais antropólogos têm convincentemente desconstruído e historicizado para o Mediterrâneo como um todo. Mas, segundo o autor, é preciso avançar um pouco mais e considerar o grau em que os discursos em torno da sociedade podem vir a fazer sentido para as pessoas e para as relações que umas mantêm com as outras todos os dias. Nesse sentido, seu argumento é “que o discurso aparentemente abstrato sobre o estado da sociedade corsa como superconectada ou subconectada retira seu poder experiencial de uma lógica diferente, uma relacionalidade encarnada e situada que enreda pessoas em conexões com outras pessoas, lugares, histórias e coisas de maneira poderosa e muitas vezes ambivalente” (:148).

Uma frase muito ouvida pelo autor quando em pesquisa de campo era “aqui todo mundo se conhece” que, para além de uma autocongratulação sugestiva da Córsega como um local de sociabilidade quente e fácil, é também uma reivindicação crítica, que a torna uma espécie de configuração panóptica na qual as pessoas estão sempre se olhando por sobre os ombros. É aqui que lugares, pessoas, coisas, línguas e identidades ganham validade, na experiência e por meio de conexões e desconexões reais, a partir do que e de quem se conhece. Assim, Candea desenvolve a ideia de conhecimento hipertransitivo.

Ele logo percebeu que conhecer é um verbo usado intransitivamente em Crucetta quando, ao entrar em um bar com um amigo, este lhe disse: “vou fazê-lo conhecido”, onde conhecer adquire o sentido de uma ação completa e sem necessidade de complemento. Este amigo disse-lhe que, depois de se tornar conhecido, Candea passaria a comer e a beber bem, e ainda pagaria menos por isso. É o primeiro insight do autor sobre o conhecer enquanto “pertencimento”, algo que conecta mais do que apenas pessoas. Além disso, muitas vezes Candea ouviu frases do tipo: “aqui, é preciso conhecer”, novamente de forma intransitiva. Daí seu segundo insight, a ideia de conhecer como atividade aberta. No entanto, alerta o autor, este não é um conhecimento imanente ou sem objeto, é uma forma de pseudointransitividade: “uma vez que nenhum objeto em particular é especificado, isto permite uma referência implícita a uma multiplicidade de objetos interconectados” (:153), por isso a investida na noção de hipertransitivo. Conhecer como o verbo para o qual há uma multiplicidade de objetos possíveis.

Candea fecha seu livro trazendo o leitor novamente ao início da viagem (e do próprio livro), apresentando o problema que ele chama de introdução anônima. Para além do humor contido em chamar o último capítulo do livro de introdução, este termo acrescido da ideia do anonimato apresenta um fenômeno que espelharia a ferramenta apresentada logo no início, o local arbitrário. Antes disso, porém, interessa saber que introdução anônima foi o termo encontrado para se referir à tendência muito comum nas primeiras semanas de pesquisa de campo em Crucetta, na qual o que se trocou foram histórias de vida, debates importantes, mas nunca nomes, o que fez com que suas primeiras anotações ficassem repletas de designações contextuais do tipo: “o homem com os gatos” ou “vizinho de cima de Joana”. O que percebeu Candea é que longe de expressar a desconexão inicial entre pessoas que não se conhecem, o anonimato nos primeiros contatos reforça a ideia de que “aqui todos se conhecem” e de que todos estão de algum modo conectados, pois, conforme os encontros se sucedem, logo algo ou alguém em comum é identificado, então, é como se as pessoas tivessem estado conectadas o tempo todo, desde o início.

Abrir uma conversação perguntando o nome de alguém é o mesmo que dizer que as pessoas não se conhecem. Os nomes são deixados de lado não porque eles contenham conhecimentos valiosos, mas porque não fazem sentido para quem ainda não conhece as relações mais amplas no interior das quais eles têm significados. Novamente, assim como ocorre com o conhecimento enquanto atividade aberta, a introdução anônima, segundo o autor, torna a pessoa secundária não pela distinção Eu/Outro, mas pela multiplicidade de conexões e pela coexistência de inúmeros modelos de pessoas. Voltando ao início, Candea encerra dizendo que o fenômeno etnográfico da introdução anônima espelha a ficção metodológica dos locais arbitrários, porque coloca em jogo os modos local e antropológico de conhecer outra diferença, para além da alteridade entre corsos e franceses, por exemplo. A diferença à qual é preciso em alguma medida se entregar para que se acesse, ainda que de modo fragmentário, outro modo de conhecer. Foi o que a pergunta a respeito de como alguém se torna conhecido na Córsega lhe permitiu acessar. Assim, permanece a antropologia como um exercício parcial, no qual questões criam questões, em que nunca se chega a um fim, em que os projetos, as perguntas e as questões do próprio antropólogo e das pessoas na Córsega, por exemplo, estão parcialmente sobrepostos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2012
  • Data do Fascículo
    Abr 2012
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