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O papel social do antropólogo: a aplicação do fazer antropológico e do conhecimento disciplinar nos debates públicos do Brasil contemporâneo

RESENHAS

Deborah Bronz

Pós-doutoranda do PPGAS/MN/UFRJ-CAPES

O'DWYER, Eliane Cantarino. 2010. O papel social do antropólogo. A aplicação do fazer antropológico e do conhecimento disciplinar nos debates públicos do Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: E-papers (Antropologias, 6). 130 pp.

Numa zona sinuosa entre a produção de um saber antropológico e sua transmutação à semântica jurídica do Estado se situam as reflexões que O'Dwyer (2010) nos apresenta em sua coletânea de artigos. A publicação reúne um conjunto de debates promovidos e participados pela antropóloga em ação, em situações em que se apresentou à interlocução com outros antropólogos, juristas, legisladores, membros da administração pública e acadêmicos, para debater sobre os direitos diferenciados de indígenas, quilombolas e outras populações consideradas tradicionais. As reflexões remetem aos dois esforços observados em sua trajetória profissional como antropóloga: o de dialogar com outros campos disciplinares e políticos, "representando" a disciplina, produzindo saberes e difundindo-os, e o de refletir sobre os efeitos desta produção de conhecimento antropológico, antropologicamente.

O livro é um entrecortado de casos que se cruzam, se mesclam e, certas vezes, se repetem. A rica diversidade de dados etnográficos é apresentada a partir dos contextos de pesquisa e trabalho de campo em que foram produzidos, boa parte deles vivenciada fora da esfera acadêmica, confirmando os argumentos da autora de que a produção de laudos tem sido altamente frutífera para o debate antropológico, apesar das constrições impostas pela necessidade de "aplicação" jurídica dos resultados de pesquisa. Em realidade, a autora nos faz repensar essa distinção, frequentemente ensinada nos cursos de antropologia, entre conhecimento acadêmico e saber aplicado e nos convoca a refletir sobre o papel social do antropólogo diante das demandas crescentes pela nossa expertise disciplinar nos debates públicos do Brasil contemporâneo.

Nota-se nos casos apresentados como, de fato, as formas de conceitualização do saber antropológico foram apropriadas pela representação jurídico-normativa, possibilitando o reconhecimento de um grande número de comunidades pelo Estado brasileiro. Como diz O'Dwyer, os antropólogos que já estudam e conhecem essas comunidades "fazem de sua autoridade experiencial um instrumento de reconhecimento público de direitos constitucionais" (:21). Como intérpretes dos "modos de criar, fazer e viver" (:110), procuram incorporar aos laudos uma visão de território dotada pelos signos étnicos e pelas metáforas geográficas que constituem a identidade dos grupos, posicionando a cultura no centro do debate e desconstruindo discursos "objetivistas", preocupados com o agravamento das questões agrárias no país, que defendem a circunscrição dos direitos apenas às "terras efetivamente ocupadas", sem considerar outros espaços de representação que, como sabemos, formam os territórios quilombolas, indígenas e camponeses de um modo geral. Nesta luta de representações, lutam os antropólogos contra os descaminhos do reconhecimento, ora subsidiários de uma abordagem jurídico-administrativa de visão anticultural e anti-histórica, justificada nos supostos desígnios de uma "natureza humana" imbuída de desejos de poder e ganho e de um "inato autointeresse".

Enquanto os debates sobre terras indígenas estão presentes na antropologia brasileira desde os anos 1970, a participação de antropólogos no campo de reconhecimento dos direitos territoriais de comunidades autointituladas remanescentes de quilombo parece ter se intensificado com o apoio da Fundação Ford à Associação Brasileira de Antropologia (ABA), entre 1996 e 1998. Nos termos acordados pelos antropólogos reunidos em torno do Grupo de Trabalho Terra de Quilombo da ABA, entre eles a própria autora, foi necessário operar uma ressemantização do termo quilombola, contrapondo-o à visão de autores como Roger Bastide e Richard Price, preocupados com a busca de uma "identidade originária" e uma continuidade histórica com as comunidades rebeldes surgidas no tempo da escravidão. Esses argumentos enfraquecem o pleito pelo direito ao exercício de territorialidades diferenciadas e costumam ser acionados em contextos judiciais tais como os mencionados no livro. As discussões sobre grupos étnicos e etnicidade, inspiradas por autores como Frederik Barth e Thomas H. Eriksen, levaram estes antropólogos a localizar no presente etnográfico os traços que distinguem os grupos, tornando relevantes apenas aquelas diferenças culturais destacadas pelos próprios atores sociais, bem como os etnônimos comunicados de modo performativo na luta pelos direitos diferenciados previstos na Constituição brasileira.

Cabe ao antropólogo identificar as fronteiras que demarcam a distinção entre os grupos e, analogamente, os limites desta "cartografia inédita" de territórios e direitos que "reinventa novas figuras do social", nos termos de Revel, em A invenção da sociedade (1989). No caso citado pela autora no capítulo 1, por exemplo, as distinções entre as comunidades negras – vinculadas à Associação dos Remanescentes de Quilombo do Município de Oriximiná (ARQMO) – e as demais comunidades de ribeirinhos foram identificadas especialmente nas formas de subsistência e nas interações que promovem com o núcleo urbano. Na "região do interior", ondevivemos negros, oterritório é unificado e simbolizado por meio dos sacacas (curandeiros) e de suas práticas itinerantes de circulação, cura e difusão de conhecimento sobre os recursos naturais. O interesse por tais práticas levou um grupo de pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) a desenvolver um projeto de bioprospecção de espécies farmacologicamente ativas utilizadas medicinalmente pelas comunidades quilombolas de Oriximiná, no Pará.

No capítulo 4, a autora reflete sobre sua participação na elaboração de laudo antropológico encaminhado ao Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEM|MMA) a propósito deste projeto. Vê-se em sua descrição como a descoberta de substâncias bioativas e a produção de medicamentos do tipo moderno a partir de plantas nativas passaram a significar para estas comunidades diferentes tipos de reconhecimentos: o reconhecimento de um saber tradicional pela Ciência; o reconhecimento de práticas culturais; o reconhecimento de uma fonte de renda alternativa para as comunidades negras.

É digna de nota a reflexão da autora sobre as interpretações etnográficas desta experiência de pesquisa com os quilombolas de Oriximiná, cujos obstáculos encontrados pelos pesquisadores da UFRJ na aproximação com as comunidades sinalizavam as estratégias de "isolamento consciente", praticadas como forma de defesa das novas situações enfrentadas por elas em decorrência das frentes de colonização, da expansão madeireira e agropecuária, da construção do polo industrial de Carajás e das ações de preservação ambiental. Conforme relata a antropóloga, a aproximação foi resultado de sua contribuição para a produção da própria história do grupo. Os dados coletados preteritamente nos relatos de viajantes se tornaram um "achado", pois atestavam – na lógica do reconhecimento – os "indícios" da presença histórica destas comunidades na região.

Outro caso de elaboração de laudo antropológico, analisado no capítulo 5, refere-se ao contexto de um processo judicial movido pela empresa Agropecuária Alto do Turiaçu Ltda. para redução das terras indígenas dos Awá-Guajá, no Maranhão. Ao recuperar a história do grupo, especialmente a partir do contato com os administradores da Funai na década de 1970, O'Dwyer nos apresenta seu estranhamento diante de um conjunto de unidades administrativas, aparentemente arbitrárias, que desinformam sobre os "processos de territorialização" – nos termos de João Pacheco de Oliveira em Indigenismo e territorialização (1998) – vivenciados pelos indígenas como resultado de fracionamentos e descontinuidades no tempo da posse de territórios de ocupação tradicional.

A abordagem da autora na composição do laudo pericial, ao acionar a análise dos eventos relativos às situações de contato descritas no corpo documental do processo, colide com as visões construídas por advogados, técnicos do órgão indigenista, missionários e grupos econômicos, numa proposta de "limpar o campo" – nos termos de Clifford, em Itinerarios transculturales (1999) – conceitualmente e fugir do regime de prova e contraprova incorporado aos mecanismos jurídicos de demarcação territorial. Nesta direção, os termos aldeamento, posse, nomadismo, migração e perambulação passam a ser analisados em suas conotações e cargas semânticas. O termo aldeamento, por exemplo, utilizado para caracterizar uma existência coletiva do grupo, costuma ser contraposto aos termos nomadismo, perambulação e migração, que supostamente indicariam um deslocamento aleatório e contínuo em busca de recursos, remetendo às ideias de inexistência de território próprio e à ausência de organização política.

No capítulo seguinte, retomando o laudo sobre os Awá-Guajá, a autora retrata um pouco do sofrimento desses grupos com as condições de confinamento nos postos indígenas e a redução de sua área demarcada, independentemente da ação judicial em curso. Os relatos colhidos após um trágico episódio envolvendo a morte de um índio em 2006 reproduzem os sentimentos de perdas e separações forçadas vivenciadas em incidentes anteriores, bem como a condição de liminaridade desta experiência individual e coletiva que acomete os indígenas identificados pelas situações de contato. Os homens jovens e adultos se dedicam ao roçado, não suportando sem sofrimento este disciplinamento forçado de seus corpos no trabalho de derrubada e queima da mata para o plantio, trazendolhes novos males, curáveis apenas com os remédios dos brancos que, segundo relatos, lhes são recorrentemente negados nos postos de saúde. Estes dramas sociais, sugere a autora, poderiam ser pensados como resultado de uma forma atualizada dos massacres observados contra indígenas no período colonial, hoje perpetrados contra pequenos grupos caçadores e coletores ameaçados de extinção, que tomam a forma de um "genocídio doméstico", nos termos de Kuper (1984) – em "International protection against genocide in plural societies". David Maybury-Lewis (org.), Proceedings of the American Ethnological Society. O acompanhamento etnográfico e os informes encaminhados ao procurador da República se tornaram fundamentais para retratar os testemunhos vivos da resistência indígena a processos que caminham na direção contrária de suas práticas culturais.

Os casos apresentados no livro são uma bela amostra da grande diversidade de situações que se apresentam ao exercício e à prática da antropologia no Brasil, especialmente após a Constituição de 1988. Ninguém melhor do que O'Dwyer, cuja trajetória profissional tem sido mar-cada por um ziguezaguear constante entre sua inserção no mundo acadêmico e a produção de saberes aplicados (:108), para atestar que, em qualquer um destes contextos, o que se faz é antropologia. O trabalho de campo, ao aproximar o pesquisador do chamado "ponto de vista nativo", é a marca de nossa formação disciplinar e a prática que religa estes diferentes tipos de produção de conhecimento. É também o que permite ao antropólogo, por meio da produção de laudos, não apenas caracterizar os grupos estudados e suas demandas, mas também torná-las inteligíveis para o Estado, trabalhar em favor da proteção de direitos culturais e do acesso à cidadania e, sobretudo, cumprir com seu papel social.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jan 2013
  • Data do Fascículo
    Dez 2012
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