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MELLO, Marcelo Moura. 2012. Reminiscências dos Quilombos: território da memória em uma comunidade negra rural

RESENHAS

MELLO, Marcelo Moura. 2012. Reminiscências dos Quilombos: território da memória em uma comunidade negra rural. São Paulo: Terceiro Nome. 267 pp.

Cauê Fraga Machado

Doutorando – PPGAS/MN/UFRJ

O livro de Marcelo Mello traz a um público mais amplo as histórias e as memórias da Comunidade Negra de Cambará, no Rio Grande do Sul, estado situado no imaginário social brasileiro como um "estado branco". Este motivo já faz do livro leitura importante para aquele que deseja conhecer melhor a história do negro no Brasil, a partir do caso do Rio Grande do Sul. Além disso, a obra apresenta debates em torno do conceito de quilombo na historiografia e na antropologia em suas interfaces com os movimentos sociais, a justiça, a Nação e a Comunidade de Cambará. Demonstra a importância do trabalho para pensar o que vem se chamando de quilombo e as conceitualizações em torno dos debates sobre identidade étnica e racismo, ação política, sentidos de justiça, políticas de reconhecimento, moral, territorialidade e invenção – temas que parecem povoar a quase totalidade dos estudos sobre esses grupos.

É digna de nota, também, a reflexão sobre a natureza da construção dos dados empíricos, fundada na relação entre antropólogo e pessoas da Comunidade mediada por um projeto universitário de extensão e pela posterior participação na elaboração do laudo antropológico. Desta forma, a construção da etnografia, da pesquisa em arquivos e das reflexões de cunho sociológico é apresentada ao leitor no contexto em que foi produzida. Assim, a questão central dolivro, "opapel assumidopelamemóriana dinâmica identitária em Cambará" (:156), é constantementeconfrontadacomocontexto de sua "criação/invenção" – no sentido aferido por Roy Wagner (não inventado a partir do nada, estando em jogo os diferentes "estilos de criatividade"). É esta "criatividade/inventividade" que aparece como objeto interessante para pensar a memória acionada que visa responder a questões ligadas à demarcação das terras como mais do que uma ação "interessada" de lembrar, sendo também um ato "inventivo", rico em significação. Alarga-se o estudo para além daidentificaçãocomfinalidadepolíticapara a conquista de direitos, proporcionando refletir sobre a memória e a lembrança em si e sua articulação com diferentes esferas da vida em Cambará, desde o passado atéo presente e o futuro.

O livro é composto por uma introdução, seis capítulos e considerações finais sobre o caráter "inventivo/criativo" da memória. Noprimeirocapítulo,oconceitodequilombo é discutido com densidade, desde a sua origematéas"ressemantizações"(:40)políticas mais atuais, sua relação com a Constituição de 1988, e a possível crítica do termo genéricocomanecessidadedo "preenchimento" ou mesmo do não uso do conceito a partir das nomeações nativas. A aproximação da "condição camponesa"da"condição étnica" (:37-40) é rica e permite passar ao segundo capítulo fazendo uso da teoria daetnicidade articulada ao trabalho da memória de modo criativo. No capítulo terceiro, como já referido, o autor contextualiza sua experiência de campo ligada à realização do laudo e, portanto, trata "do campo interétnico existente em Cambará e dos meandros da assunção quilombola" (:83). E como assunção vem do verbo assumir, é sobre a possibilidade de "escolher" assumir ou não uma identificação, mais do que a emergência ou a etnogênese, que o engajamento comunitário na produção de um laudo fala.

No quarto capítulo, a atenção aos "antigos" (anciãos de Cambará) e a reconstrução das genealogias com base na memória e nos arquivos dão o tom de como o território é intrinsecamente baseado nas pessoas que nele vivem, família e parentesco sendo quase correspondentes diretos do lugar e de suas paisagens, o que possibilita a comparação que o capítulo quinto faz entre dois tipos de narrativas, a oral e a documental (escrita), sem que uma se sobreponha à outra. Neste capítulo, ancorado nas narrativas escritas e nas orais, o autor faz alusão aos conceitos de "dramaturgias da recordação" e de "ecologias de pertencimento" de Gilroy (:186). Aqui, além de memória e território, o corpo surge também como centro da análise. É sobre o corpo que regimes de dominação e de "não dominação" (:186) se impõem. No capítulo sexto, o autor trata do "regime de criação", isto é, os modos como são "criadas", no sentido de educadas, cuidadas, adotadas, as crianças negras do local, desde muito cedo submetidas à violência do trabalho escravo, fora do tempo cronológico da escravidão, mas não do tempo da memória dessa experiência.

Na conclusão, a ênfase recai sobre o enquadramento do que foi descrito ao longo do livro sobre as noções de "cidade doméstica" de Boltanski e Thévenot, de "dimensão moral da luta por reconhecimento" de Honneth, e de "inventividade" de Wagner. Contudo, o detalhamento rico dos relatos orais e escritos parece dizer mais do que a teoria é capaz de traduzir ou metaforizar. Talvez as noções nativas de "inventivo" como contrário de falso, de "tempo dos antigos" como ato de memorar, entre tantas reflexões dos moradores de Cambará, tenham ficado, propositalmente ou não, como espaços abertos propiciadores de críticas tanto a teorias que engessam a experiência vivida, quanto àquelas do tipo em que nada pode ser fixo, restando apenas a fluidez e o processo. Os moradores de Cambará, em suas narrações, parecem "brincar" com qualquer enquadramento teórico que não atente para versões rígidas de pertencimento (como a ideia de "sentimento compartilhado"), ao mesmo tempo em que circulam entre os diferentes grupos (especialmente os brancos) e se segmentam num tipo de parentesco que lembra as linhagens africanas que se abrem em outras linhagens, ao estilo dos Nuer de Evans-Pritchard (2005). Este parece mais com os modos de classificar e de se relacionar com a alteridade e com o mesmo entre os nativos de Mello.

Gostaria de ressaltar também a conexão entre a memória coletiva local e as marcas da escravidão como pontos altos do livro. Como Mello demonstra, trata-se de temporalidades (mais do que memórias) não exatamente distintas, mas entrecruzadas e complexificadas através das narrativas, fazendo do tempo cronológico algo de menos importância do que a vivência, trazendo à tona a experiência do trabalho e a sujeição dos escravos para o presente narrativo. Assim, os dados extraídos dos arquivos vão na mesma direção, interessando ao autor variações acerca de um mesmo acontecimento, interligando-os à memória de seus interlocutores não com tom comprovativo, mas com a intenção de demonstrar os jogos narrativos.

A luta e a resistência antirracista são exploradas de modo não racialmente essencialista em seu livro. Num sentido bastante específico do campesinato negro, o autor aborda as sujeições e as violências, mas também os apadrinhamentos e a participação numa economia de dádiva que explode fronteiras entre os de dentro (negros) e os de fora (brancos), sem impedir que elas se reconfigurem e se reforcem a todo momento, complexificando a ideia de fronteiras bem delimitadas – o que lembra "Os Nuer". É no trabalho, ou melhor, na exploração do trabalho do negro que perdura até os tempos de hoje, que as relações de poder são narradas, presentificando o tempo da escravidão.

Cabe ainda problematizar a noção de política, levando em conta, é claro, a importante contribuição do livro para a luta por direitos das comunidades negras rurais ou quilombos. A riqueza do modo narrativo não só dos nativos, mas também de Mello deixa o leitor com "um gosto de quero mais", com vontade de saber mais sobre Cambará. E a política é um desses aspectos (conceitos) que carecem de maior detalhamento, levando-nos a perguntar qual a definição de político do ponto de vista dos nativos da comunidade e dos de fora (antropólogo, agentes do Estado e da Justiça, operadores do Direito, vizinhos brancos). As "políticas do lugar" (:113), em que formas pessoalizadas são privilegiadas, ficam opacas diante do conceito de "campo político" de Bourdieu, utilizado ao longo do livro.

Além disso, o livro parece deixar em aberto outras frentes interessantes para futuros pesquisadores, como uma noção de pessoa que passa por pertencer ao lugar e por ter uma memória minimamente comum, o debate entre ciência (academia) e técnica (laudo), e as implicações mútuas entre ambos.

Não obstante, ao final, nós nos deparamos com a imagem poética da antiga casa tomada pelos efeitos do tempo, que não lhe são alheios, assim como os territórios da memória, mas imersa no tempo que passa: "Enraizados em tempos e espaços de vivências entrecruzados por diversas temporalidades" (:250). Então, estamos diante daquilo que aparece ao longo do livro em forma de epígrafes, as glosas de romances. Não apenas no tom narrativo, por vezes gongórico, mas na noção de tempo, que parece mais proustiana do que aquelas de memória, bastante conhecidas, de Pollak e de Halbwachs. O tempo em questão é o tempo da coexistência: passado, presente e futuro – o que fica bastante claro no último volume de Em busca do tempo perdido, e nas narrativas dos moradores de Cambará. E vale, para fechar o argumento, citar na íntegra um trecho de Proust: "Se ao menos me fosse concedido o prazo para terminar minha obra, eu não deixaria de lhe imprimir o cunho desse Tempo cuja noção se me impunha hoje com tamanho vigor e, ao risco de fazê-los parecer seres monstruosos, mostraria homens ocupando no Tempo um lugar muito mais considerável que o tão restrito a eles reservado no espaço, um lugar, ao contrário, desmesurado, pois à semelhança de gigantes, tocam simultaneamente, imersos nos anos, todas as épocas de suas vidas, tão distantes – entre as quais tantos dias cabem – no Tempo" (1988 [1927]:292).

Pois este se parece, em muito, com o trabalho de criação das temporalidades dos moradores de Cambará, tal qual apresentado por Mello.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Set 2013
  • Data do Fascículo
    Ago 2013
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