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Flutuações semânticas no mundo atlântico* * Este texto se beneficiou do conhecimento etnográfico de muitos colegas que gentilmente me forneceram valiosas informações sobre o termo tabanka e seus cognatos nos contextos de suas áreas de investigação. Sou grato a Ramon Sarró, Eric Gable, Joanna Davidson, Peter Mark, Bruce Mouser, Heike Drotbohm e Lise Winner pelas respostas sempre generosas às minhas indagações. Juliana Braz Dias e Teté Montenegro também me beneficiaram com seus instigantes comentários. Não preciso dizer que, com tanta ajuda, sou eu o único responsável pelos enganos e as fraquezas argumentativas do trabalho.

Resumos

Meu tema é o processo de deslocamento semântico que tem afetado alguns termos viajantes numa grande área de crioulização que se estende da costa ocidental da África ao Caribe. Neste trabalho, terei como foco a rota supostamente tomada por um item lexical em sua jornada pelo Oceano Atlântico. Tabanka é a palavra escolhida para análise. Tratarei, por um lado, de sua jornada vertical, de seu contexto original de uso na zona conhecida como alta costa da Guiné, no século XVI, ao seu significado atual no crioulo da Guiné-Bissau. Por outro, lidarei com sua jornada horizontal, da costa ocidental africana às ilhas de Cabo Verde e, por fim, a Trinidad, na costa venezuelana. Seguindo a rota tomada por esta palavra, eu espero lançar alguma luz sobre as heterogêneas formas de vida social produzidas pelo processo de crioulização associado à expansão europeia.

Tabanka; Crioulização; Ecúmeno; Deslocamento semântico


My theme is the process of semantic shift that has affected some traveling terms within the area of creolization that extends from the West African coast to the Caribbean. In this paper I will focus on the route supposedly taken by one lexeme in its journey through the Atlantic Ocean. Tabanka (tabanca) is the word picked up for analysis. I will deal with its vertical journey, from its original context of use in the sixteenth century along the Upper Guinea Coast to its current meaning in Guinea-Bissau, as well as with its horizontal journey, from the coast of Western Africa to the islands of Cape Verde and then to Trinidad, on the Venezuelan coast. Following the route taken by this word I hope to shed some light on the heterogeneous forms of social life brought out by the process of creolization related to the European expansion.

Tabanka; Creolization; Ecume-non; Semantic shift


Examinarei neste trabalho como encontros intersocietários fazem deslocar certos elementos culturais no tempo e no espaço, gerando instabilidades semânticas que afetam os significados das coisas e das ideias de uma forma definitivamente não aleatória. Minha atenção se voltará para as conexões (e para as turbulências que elas ocasionam) entre o ecúmeno que surgiu do processo de crioulização cultural na costa da Guiné antes da chegada dos europeus em meados do século XV, o ecúmeno luso-africano que se desenvolveu nesta porção da costa africana e nas adjacentes ilhas de Cabo Verde, e o ecúmeno caribenho, também produto de um longo processo de crioulização envolvendo europeus de diferentes nacionalidades e africanos com raízes sociais e culturais heterogêneas.1 1 Entendo crioulização como um processo de mudança linguística e cultural, que resulta de um fluxo de valores, práticas, saberes, crenças, palavras e outros itens da linguagem, que dá luz a uma entidade social ou linguística terceira: uma sociedade ou uma língua crioula. Sobre a crioulização primária anterior à presença europeia na costa da Guiné, ver Brooks (1993) e Trajano Filho (2005). As sociedades crioulas dos luso-africanos foram tratadas por Trajano Filho (1998) e Brooks (1993, 2003). Sobre a crioulização caribenha há um vasto leque de estudos, dentre os quais se destacam Mintz (1996) e Mintz e Price (1992). Tomarei cada um destes ecúmenos como vastos campos comunicativos e interativos que fornecem aos atores sociais que neles navegam os meios para desenvolver um sentido de diferença e um sentimento elusivo mas muito disseminado de compartilhamento de algumas formas simbólicas e instituições sociais.

A palavra tabanka 2 2 A grafia desta palavra varia bastante. Nos dicionários da língua portuguesa ela é grafada com um "C" (tabanca). Nos dicionários das diferentes línguas crioulas ela é escrita com um "K" (tabanka). Neste trabalho adotarei esta última forma porque ela sugere uma origem não portuguesa. é usada atualmente por falantes de no mínimo cinco línguas diferentes. Ela é largamente empregada nas variantes do português faladas em Cabo Verde e na Guiné-Bissau, nos crioulos de base portuguesa falados nestes países, em algumas variantes caribenhas do inglês (Allsopp 2003 1 Entendo crioulização como um processo de mudança linguística e cultural, que resulta de um fluxo de valores, práticas, saberes, crenças, palavras e outros itens da linguagem, que dá luz a uma entidade social ou linguística terceira: uma sociedade ou uma língua crioula. Sobre a crioulização primária anterior à presença europeia na costa da Guiné, ver Brooks (1993) e Trajano Filho (2005). As sociedades crioulas dos luso-africanos foram tratadas por Trajano Filho (1998) e Brooks (1993, 2003). Sobre a crioulização caribenha há um vasto leque de estudos, dentre os quais se destacam Mintz (1996) e Mintz e Price (1992). ) e no crioulo de base inglesa de Trinidad (Winer 2009WINER, Lise. 2009. Dictionary of the English/ Creole of Trinidad & Tobago. Montreal: McGill-Queen's University Press.).3 3 Devo mencionar, embora deixe sem listar, o uso corrente da palavra entre os falantes de várias línguas da costa da Guiné, pertencentes ao ramo Atlântico Ocidental, com o sentido semelhante ao que atualmente tem no crioulo da Guiné-Bissau. Nestes casos, tudo indica tratar-se de um empréstimo recente. Ver mais adiante. Uma só palavra, mais de cinco línguas e pelo menos três diferentes significados denotativos - este é, em seu formato mais simples, o quadro sincrônico que eu pretendo examinar. O panorama completo é muito mais complicado, pois envolve outros termos cognatos pertencentes a diversas línguas faladas na costa da Guiné, entre o Senegal e a Libéria, e complexos processos de flutuações semânticas despoletados por uma longa história de encontros intersocietários. Por se tratar de um termo largamente desconhecido pelos falantes do português brasileiro, eu começo com nossos dois dicionários mais conhecidos. A palavra está ausente no "Aurélio", mas no "Houaiss" encontramos as seguintes glosas: 1. aldeia ou localidade africana, geralmente fortificada; 2. (Cabo Verde) tipo de fanfarra tradicional na ilha de Santiago (Houaiss 2001HOUAISS, Antônio. 2001. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva.). O autor acrescenta que a primeira entrada do termo nos dicionários da língua portuguesa aconteceu em 1881 no dicionário "Caldas Aulete".

No restante deste trabalho, pretendo analisar as flutuações semânticas da palavra tabanka em sua jornada de cinco séculos por milhares de quilômetros da costa ocidental da África até Trinidad, com uma parada estratégica nas ilhas de Cabo Verde. Esta é, num certo sentido, uma investigação etimológica, tradicionalmente uma temática da linguística, muito distante, portanto, das preocupações comuns dos antropólogos. Se estivéssemos vivendo no tempo dos debates difusionistas na antropologia, com um foco especial na questão das origens e da distribuição dos artefatos culturais, o problema a ser aqui investigado dificilmente pareceria anacrônico e desprovido de sentido ou de interesse, como é muito provável que pareça. Para o meu alívio e sossego, ainda bem que a voga difusionista tem sido revisitada um tanto dissimuladamente no presente sob a forma dos fluxos e contrafluxos no sistema mundial globalizado. Com esta camuflagem, apresentarei minhas ideias sobre as turbulências que têm provocado alterações semânticas na palavra tabanka durante sua tortuosa travessia pelo oceano Atlântico.

O desafio que se põe aqui é mostrar como certas palavras têm viajado pelo tempo e espaço, de uma sociedade a outra, e como seus significados têm se alterado durante tais jornadas, se ajustando sempre às novas condições e a contextos de uso. A questão que trato neste texto é de alguma forma parecida com a análise de Merry (2006)MERRY, Sally E. 2006. Human rights & gender violence: translating international law into local justice. Chicago: University of Chicago Press. sobre como as ideias de direitos humanos são apropriadas por meio das formas vernaculares das mais variadas comunidades do planeta, como, nesse processo, seus núcleos de sentido são alterados e como, assim transformadas, elas têm sido usadas para fazer a crítica das práticas cotidianas de violência.

Contudo, diferentemente dos termos viajantes tratados por Merry, as apropriações e as ressignificações que vou examinar aqui têm uma profundidade temporal radicalmente diversa daquela que caracteriza a jornada das ideias sobre direitos humanos no mundo contemporâneo. Ao contrário destas, as transformações que analisarei não emanam de uma fonte hegemônica única, mas têm, antes, origem numa miríade de fluxos que dificilmente podem ser reconstituídos com acuidade. São mudanças semânticas lentas, cujos desdobramentos levam séculos para se cristalizar. As variações que me interessam estão mais próximas de certas alterações nas ideias morais dos povos semitas, conforme mostrado por Mauss (1985:170)MAUSS, Marcel. 1985. "Essai sur le don. Forme et raison de l'échange dans les sociétés archaiques". In: Sociologie et anthropologie. Paris: PUF. pp. 145-279.. Em seu clássico estudo sobre a dádiva, ele argumenta que o significado original dos termos árabe e hebraico sadaka e zedaqa estava relacionado à ideia de justiça. Porém, com o passar dos séculos, estas palavras tiveram seus sentidos gradualmente alterados, até que a referência se consolidou em torno das ideias de caridade e esmola. É algo semelhante a isto que eu quero examinar neste artigo.

Como toda aventura etimológica, a minha está entranhada de conjecturas que podem ser muito criativas, mas dificilmente respondem ao teste da falsificação. O caminho tomado pelo termo tabanka no tempo e no espaço não pode ser totalmente retraçado com os dados atualmente disponíveis. Tudo o que posso fazer é revisitar pequenos trechos da rota percorrida e fazer algumas inferências sobre a paisagem social e cultural pela qual ele perambulou: um sistema social crioulizado que tem conformado o mundo atlântico desde o começo da expansão europeia em meados do século XV, e que será descrito aqui como um processo de interseção de vários ecúmenos culturais.

A jornada interna: da proteção contra a violência aos confortos do lar

Nesta seção, focalizo as mudanças semânticas dos termos que, num passado longínquo, evoluíram de uma suposta raiz *abank(?), oriunda de uma das línguas do tronco linguístico Atlântico Ocidental. Estes vocábulos originalmente veiculavam o sentido de fortificação, que fornecia proteção contra a violência ocasionada por conflitos de várias ordens entre os agrupamentos da região conhecida como costa da Guiné. Durante cerca de 200 anos, eles vêm passando por transformações semânticas, referindo-se os seus novos significados ao espaço habitado da casa, do grupo de parentesco e da aldeia.

Embora meu principal foco de interesse não seja traçar as rotas tomadas na difusão desta palavra pelas cinco línguas mencionadas acima, a primeira questão a ser enfrentada diz respeito à origem do termo tabanka. De etimologia incerta, ele parece ter surgido em uma das muitas línguas do tronco Atlântico Ocidental que são faladas na costa africana entre o Senegal e a Serra Leoa - dezenas de línguas, entre as quais uolof (wolof), fula (fulani, peul), diola, balanta, banhum (banyun), pepel (papel), manjaco, beafada, bijagó, nalu, mancanha, baga, temne, que têm entre si grandes semelhanças sintáticas e morfológicas. Em muitas delas encontramos a variação de uma suposta raiz *abank(?), que encompassa o campo semântico em torno das ideias de localidade, residência, proteção, segurança, defesa e unidade (territorial) de pertencimento.

Entre os bagas-sitem contemporâneos da República da Guiné, a palavra abanka (pl. cibanka) se refere à seção da aldeia ou ao terreno comum do agrupamento residencial de três ou quatro grupos exogâmicos que descendem patrilinearmente (kor, "barriga") de um ancestral fundador, que veio de outro lugar (um estrangeiro). O termo baga abanka nomeia, portanto, um grupo corporado e é fundamento de uma identidade social que é frequentemente mais importante do que o kor ou grupo de parentesco. Cada abanka tem um espírito protetor (amanko) que traz prosperidade, proteção e bem-estar para os seus membros (Sarró 2009:35-38SARRÓ, Ramon. 2009. The politics of religious change on the Upper Guinea Coast: iconoclasm done and undone. Edin burgh: Edinburgh University Press.).4 4 Segundo Hair (1967: 46), o termo baga é ke-ba ŋ ka, significando "aldeia" Porém, tudo indica que o termo abanka só existe na variante linguística baga-sitem. Outros grupos baga têm outros termos para expressar outras lógicas territoriais. O antropólogo Ramon Sarró me informou (comunicação pessoal) que na língua dos bagas-bulong o vocábulo ebene cobre aproximadamente o mesmo campo semântico que abanka, mas eles não parecem ser provenientes da mesma raiz.

Segundo Walter Hawthorne (2003:12)HAWTHORNE, Walter. 2003. Planting rice and harvesting slaves: transformations along the Guinea-Bissau Coast, 1400-1900. Portsmouth, NH: Heinemann., os balantas da Guiné-Bissau chamam de tabanka as aldeias compactas nas quais eles vivem. Trata-se da mais importante unidade da organização social balanta. Pessoas vivendo numa mesma aldeia compartilham interesses comuns e é neste nível local que são planejados e organizados os rituais mais emblemáticos da vida do grupo e o trabalho coletivo associado às atividades agrícolas. Instituições-chave da organização social balanta, como os conjuntos etários, os conselhos de anciãos e os casamentos operam no nível da tabanka, funcionando para reforçar os laços comunitários. Contudo, os balantas reconhecem que a tabanka significa mais do que uma unidade de natureza coesiva. Ela também é a unidade territorial no interior da qual acontecem as maiores clivagens da sociedade, segundo as linhas de parentesco, de geração e de gênero (2003:120).

Como uma unidade de pertencimento, a tabanka balanta é uma arena onde se desenrolam complexos processos de conflito e integração - uma arena que tem uma longa e intricada história. De acordo com Hawthorne (2003:121-123)HAWTHORNE, Walter. 2003. Planting rice and harvesting slaves: transformations along the Guinea-Bissau Coast, 1400-1900. Portsmouth, NH: Heinemann., nos tempos pré-coloniais os balantas viviam em povoações dispersas no interior da Guiné. Insurreições e instabilidades políticas causadas pela expansão mande desde o século XIII e pela chegada dos europeus dois séculos mais tarde, que intensificaram o tráfico local de escravos, acabaram por empurrar os grupos balantas para a zona de manguezais em busca de refúgio. Neste novo ambiente, eles desenvolveram as técnicas de cultivo do arroz alagado e fundaram aldeias compactas, as tabankas, mais adequadas para a proteção contra os traficantes de escravos.5 5 Horton (1976) desenvolveu um modelo dinâmico que relaciona as sociedades com e sem Estado na África Ocidental. Este modelo atribui um papel-chave ao padrão de assentamento (aldeias dispersas ou compactas) das sociedades.

Consultei outros conhecedores da sociedade e cultura balanta e eles foram unânimes em afirmar que a palavra tabanka é estranha à língua balanta. Apesar de concordarem com a interpretação de Howthorne, eles argumentam que os informantes do autor estavam, na realidade, usando um termo crioulo para discorrer sobre alguns aspectos da organização social do grupo. Em outras palavras, eles notam que se o vocábulo tabanka tem sido usado pelos falantes balanta, isto seria um empréstimo recente vindo do crioulo da Guiné-Bissau.

O mesmo termo é empregado atualmente pelos mancanhas da Guiné-Bissau para significar aldeia, mas isto também parece ser um empréstimo direto do crioulo que surgiu nos aglomerados luso-africanos, ou indireto, dos povos vizinhos. Segundo o linguista Jean-Louis Rougé (2004:352)ROUGÉ, Jean-Louis. 2004. Dictionnaire étymologique des créoles portugais d'Afrique. Paris: Karthala., entre os manjacos, a palavra N-tab significa aldeia. A semelhança com o termo crioulo tabanka é cristalina, mas pode ser enganoso tomá-las como palavras cognatas. O caso poderia ser mais bem explicado como uma convergência linguística (ver abaixo). De qualquer modo, um dos maiores etnógrafos deste grupo me informou que a palavra majanca para aldeia é 'utchak; bolai é o termo para choupana, e kato, a palavra para residência (comunicação pessoal de Eric Gable).

Um pouco ao norte do chão dos manjacos, os diolas da Guiné-Bissau e do Casamansa senegalês também têm palavras oriundas da raiz *abank(?). Os diolas do sul (diola-kassa) usam o termo hankahu para designar o chão no qual a linhagem vive, composta de várias casas. Não é o mesmo que a casa-família, cujo nome seria ellupai, mas antes um domínio territorial cuja base é a linhagem. Entre os diolas setentrionais (diola-fogny), a palavra seria funk, com o mesmo sentido.6 6 Agradeço respectivamente aos colegas Joanna Davidson e Peter Mark por estas informações. A similaridade destes termos diola sugere que ambos derivam da raiz Atlântico Ocidental *abank(?). Movendo rumo ao norte no território senegalês, notamos que o vocábulo uolof tabakh atualmente significa "construção," "parede," "edifício" (usualmente construídos com materiais rígidos e duráveis, como cimento e tijolos, em oposição a sampe, construído com materiais frágeis, como madeira e barro).

Deixo o exame das cristalizações contemporâneas em torno da raiz *abank(?) nas línguas do ramo Atlântico Ocidental e passo a analisar o modo como o termo tabanka foi usado pelos primeiros viajantes portugueses e luso-africanos na costa da Guiné. Em outras palavras, examinarei os primeiros momentos da entrada, por empréstimo, deste termo nas variantes do português da costa guineense e nos crioulos ali falados. A primeira referência escrita que se tem do termo encontra-se no texto de André Álvares d'Almada (1964:367)ALMADA, André. A. 1964 [1594]. Tratado breve dos rios de Guiné do Cabo Verde. Lisboa: Editorial L.I.A.M., um comerciante cabo-verdiano que, em 1594, descreveu a costa africana. Ele usou a forma verbal atabancar para se referir ao hábito dos guerreiros manes da Serra Leoa de construir fortificações no interior das quais eles se protegiam. Ele também usou a forma nominal atabanca para designar os fossos e as trincheiras construídos pelos manes (1964:372). Como verbo, o termo parece ter sido incorporado à variante do português falado em Cabo Verde e na Guiné e, imagino eu, ao nascente crioulo de base portuguesa falado na região.

Trinta anos mais tarde, outro mercador cabo-verdiano, André Donelha (1977:102)DONELHA, André. 1977 [1625]. Descrição da Serra Leoa e dos rios de Guiné do Cabo Verde/Description of Sierra Leone and the rivers of Guinea of Cape Verde (edited and translated by A. Teixeira da Mota and P.E.H. Hair). Lisbon: Junta de Investigações Científicas do Ultramar., fez uso da palavra tabanka para nomear os muros com guaritas muito altas que cercavam as aldeias dos povos costeiros da Serra Leoa.7 7 Ele também faz uso deste termo para se referir a uma murada feita de paus altos a pique e pedaços de árvores que arrodeia a aldeia mandinga de Cação, na margem do rio Gâmbia (1977:150). Comentando esta passagem de Donelha, Teixeira da Mota (1977:300-302) aponta que outras descrições testemunham a existência de paliçadas nas aldeias mandigas da região. Contudo, isto não significa que a palavra tenha origem numa língua ramo mande, diferente do Atlântico Ocidental. Um terceiro comerciante cabo-verdiano, Francisco de Lemos Coelho, emprega o termo tabanca em sua descrição setecentista do vilarejo luso-africano de Cacheu, no norte do que é hoje a Guiné-Bissau. Segundo ele, Cacheu era cercada por "uma muralha feita de paus a pique, com as pontas aguçadas e pregadas com suas travessas e duas portas que se fecham à noite. A cerca se chama tabanca de Casa Forte" (Coelho 1990COELHO, Francisco L. 1990 [1669, 1684]. Duas descrições seiscentistas da Guiné (edited by Damião Peres). Lisboa: Academia Portuguesa de História. [1684]:149).8 8 Ver também Coelho (1990 [1669]:34; 1990 [1684]:151).

O historiador Paul Hair (1977:250)HAIR, Paul E. H. 1967. "An ethnolinguistic inventory of the Upper Guinea coast before 1700". African Language Review, 6:32-70., em seu comentário ao texto de Donelha, relata que nas formas arcaicas da língua temne, ainda hoje falada na Serra Leoa, ka-ba ŋ ca significava fortificação ou aldeias com paliçada.9 9 Ver também Hair (1967:46, 56). O relato de Coelho, referindo-se ao uso da palavra tabanka em Cacheu, não deixa dúvida de que ela havia entrado na língua crioula, então falada pelos luso-africanos, como um empréstimo oriundo do temne e outras línguas do grupo Mel, faladas na Serra Leoa. Este termo foi provavelmente trazido pelos falantes costeiros sapes (temnes e bulões) que buscaram refúgio e proteção em Cacheu depois de terem suas terras invadidas pelos manes em meados do século XVI.10 10 É interessante notar que a palavra temne não entrou no crioulo de base inglesa falado pelos krios da península de Freetown, muito mais próxima fisicamente do território tradicional dos temnes do que de Cacheu.

Uma evidência antiga de uma leve flutuação a afetar o significado de tabanka (ou um de seus cognatos na África ocidental) foi produzida pelo missionário escocês Henry Brunton em 1802. Depois de uma estadia na região em que presentemente se encontram a Serra Leoa e a República da Guiné, ele publicou em Edinburgo um livro contendo uma gramática e um vocabulário da língua susu. Aparece neste vocabulário a palavra bankhi, que ele glosou como casa residencial (1802:63), sem qualquer alusão a fortificação ou paliçada. Esta evidência apresenta, contudo, um problema para o caso que estou tentando construir. Susu é uma língua do grupo linguístico mande. Consequentemente, pertence a um ramo de línguas do tronco Níger Congo que é bastante diferente das línguas Atlântico Ocidental, de onde a raiz *abank(?) supostamente provém (ver nota 8). Como explicar isto? Bruce Mouser, em comunicação pessoal, admite que o termo bankhi é verdadeiramente susu, embora ele assegure que Brunton tenha coletado tal palavra em território baga (povo falante de uma língua Atlântico Ocidental). Então poderia se tratar de um caso de empréstimo da língua baga. Segundo fui informado por meu colega Ramon Sarró, é comum a terminação em /i/ nas palavras susu, especialmente quando se trata de empréstimos de outras línguas.

A despeito de sua origem, o fato que quero ressaltar aqui é que a palavra susu bankhi representa um primeiro passo para a concretização de um deslocamento semântico que vai das ideias de proteção contra a violência e das atividades guerreiras (claramente associadas ao tráfico de escravos) em direção ao sentimento de calor e proximidade, característico do domínio doméstico, e à prática da sociabilidade associada às atividades que têm lugar nos circuitos familiares e nas relações de vizinhança. Em sua parcimônia, os dados disponíveis não permitem uma explicação totalmente satisfatória das razões de este deslocamento ter ocorrido inesperadamente entre os susus que viviam no chão baga no início do século XIX, um período de violência intestina ligada ao tráfico de escravos e aos frequentes rearranjos das fronteiras políticas na área. Apesar de permanecer largamente inexplicado, o fato é que esta flutuação de sentido alcançará sua realização plena, segundo as mesmas linhas que acabo de examinar, algumas décadas mais tarde nas povoações crioulas da Guiné-Bissau.

Fontes escritas indicam que, até meados do século XIX, no crioulo falado pelos luso-africanos das praças da Guiné, tabanka significava localidade fortificada.11 11 Ver Oliveira (1888-1889:307): "As povoações mais importantes são protegidas por fortes tabancas [...] em torno das casas e choupanas destes vilarejos é construída uma forma de muralha, com troncos de árvore altos e grossos". Um olhar cuidadoso no "Glossário" (português-crioulo) publicado por Barros (1902) sugere que o termo tabanka ainda estava passando por uma transformação semântica no começo do século XX na sociedade crioula da Guiné-Bissau. Barros traduziu a palavra portuguesa "paliçada" como tabanca (1902:188). O vocábulo "aldeia" era vertido para o crioulo como aldya (1902:85), e o termo "murado" era traduzido como q'o ten tabanca(1902:186). Estes exemplos atestam que o sentido da palavra tabanka no crioulo da Guiné-Bissau ainda estava em conformidade com o uso antigo, mas um certo deslocamento semântico se insinuava então. Isto se mostra no fato de Barros traduzir a forma portuguesa "povoação" como tabanca (1902:270). Esta tradução sugere que o campo semântico do vocábulo crioulo estava passando por um processo de expansão lexical similar ao que havia acontecido décadas antes com o termo bankhi na língua susu. Daí em diante, ele perdeu os componentes semânticos de fortificação, defesa e proteção e passou a significar aldeia, vila ou uma forma de povoação permanente. Este foi, certamente, um processo gradual.

Nos documentos oficiais, as primeiras referências que encontrei sobre esta palavra, com o sentido de povoação, são posteriores a 1850. Elas se referiam ao local (imediatamente fora de Bissau) em que viviam os auxiliares dos comerciantes luso-africanos, recém-chegados ao mundo crioulo. Era chamado de tabanka dos grumetes. Curiosamente, os grumetes viviam separados da cidade luso-africana, localmente conhecida como praça, por uma muralha que se manteve em pé até 1923, mandada construir por um governador colonial. Tal muralha não foi construída para proteger o bairro africano dos grumetes, mas para assegurar que a população crioula de Bissau tivesse alguma segurança e controle sobre os frequentes abusos por parte destes auxiliares, cuja lealdade era sempre duvidosa. Foi somente a partir da queda do muro de Bissau, isto é, da implantação definitiva de um regime colonial na Guiné, que o termo crioulo tabanka ganhou o sentido primeiro de aldeia ou povoação.

Esta mudança semântica é exemplo de uma expansão lexical que é muito comum nas línguas crioulas, como pode ser estimado pelo lugar central que a chamada hipótese da relexificação tem na crioulística.12 12 Referências sobre esta hipótese encontram-se em Lefebvre (1986, 1998, 2009); Muysken (1981, 1997) e Voorhoeve (1973). Hancock (1980)HANCOCK, Ian F. 1980. "Lexical expansion in Creole languages". In: A. Valdman & A. Highfield (eds.), Theoretical orientations in Creole studies. New York: Academic Press. pp. 63-88. identifica 12 categorias de progressão lexical. O caso da tabanka é dúbio, pois ele tanto pode ser explicado como um caso de extensão semântica - "uma nova interpretação para um item lexical em adição ou em substituição ao seu uso original" (1980:74); um deslocamento semântico - "o mesmo que a extensão semântica, mas com a não permanência do sentido original" (1980:78); convergência - "duas formas originalmente distintas adquirindo a mesma forma fonológica de superfície" (1980:79); ou adoção - "a aquisição de itens lexicais de outras línguas" (1980:81).13 13 Ver também Baptista (2007) para uma análise da congruência entre as línguas de substrato e o português na formação do crioulo cabo-verdiano. Eu não posso me estender muito a este respeito, a não ser me referir ao argumento de Jean-Louis Rougé (2004:352)ROUGÉ, Jean-Louis. 2004. Dictionnaire étymologique des créoles portugais d'Afrique. Paris: Karthala. que favorece a convergência. Segundo ele, o sentido atual do termo tabanka no crioulo guineense (aldeia ou povoação) vem de uma convergência com a forma manjaca N-tab.

Porém, devo mencionar que seu uso tem uma conotação sociológica evidente. No crioulo da Guiné, o termo tabanka nunca é empregado para designar qualquer povoação, mas apenas aquelas dos povos indígenas locais. Aglomerados urbanos habitados por portugueses e/ou luso-africanos crioulizados são chamados de praças, não importando o seu tamanho ou localização. Esta dicotomia é uma clara manifestação de uma oposição constitutiva do mundo crioulo, isto é, a clivagem cultural entre o espaço da "crioulidade" - as praças - e o da "africanidade" - as tabancas - de onde a sociedade crioula tem historicamente recrutado a maioria de seus membros.

A jornada rumo às ilhas: da povoação à convivialidade

Nesta seção me detenho na segunda parada da longa jornada das flutuações semânticas que acometeram o termo tabanka. Desta vez, uma escala que alterou os rumos semânticos já tomados, que levou à ideia de aldeia, fazendo agora uma inflexão em direção à ideia de convivialidade.

Na viagem da palavra em direção ao crioulo da ilha de Santiago, em Cabo Verde, é possível notar uma transformação semântica que parece ser radical, mas que, na realidade, está profundamente associada aos sentidos subjacentes que a palavra tinha na costa da Guiné.14 14 Deixo inexplorada uma possível derivação da palavra funco (casa pobre, choupana de pedra), do crioulo de Santiago, da raiz Atlântico Ocidental *abank(?). Este termo aparece em diversas fontes históricas com o sentido de casa (Alvares 1990), celeiro (Alvares 1990; Kup 1961:102), capela ou altar (Álvares 1990) e sacada ou varanda (Almada 1964:348). Ele tem sido usado por estes autores em suas descrições de eventos que teriam acontecido na ilha de Bissau e em várias partes da Serra Leoa, na costa africana. Segundo Hair (1977:266), existem palavras semelhantes no temne moderno: αη -fu η k (celeiro) e αη -pu η ka η (varanda, sacada). Noto também a impressionante semelhança com o termo diola funk. Segundo o escritor cabo-verdiano Félix Monteiro (1948:14)MONTEIRO, Felix. 1948. "Tabanca: evolução semântica". Claridade, 6:14-18., num passado remoto, o termo também foi usado em Santiago com o sentido de aldeia ou povoação, mas esta referência original a uma unidade territorial se perdeu, e atualmente a maioria dos falantes do crioulo cabo-verdiano não a reconhece.15 15 Ver também Carreira (1964) e Rougé (2004) para os significados desta palavra no contexto dos maiores centros urbanos do país. É interessante observar que o que Monteiro chama de um uso antigo (tabanka como aldeia) é, de fato, muito recente. Para os moradores de Santiago, especialmente para os adultos, tabanka significa uma associação de ajuda mútua que é muito importante para os camponeses do interior e para os residentes dos bairros pobres da cidade da Praia. Para os jovens e os que vêm das outras ilhas, em particular as de barlavento, a referência à ajuda mútua está cada vez menos saliente e hoje em dia a palavra é mais usada para designar um tipo de festejo popular que é exclusivo das ilhas de Santiago e Maio.

Mais recentemente ainda, o termo é usado também para designar um gênero musical da cultura de massa derivado da música tocada por tambores e búzios durante as festividades da tabanka. Deste modo, falar de tabanka em Cabo Verde é falar de celebração e de alegria, de ruídos e de cores. Apesar disso, algo do sentido original de povoação ou aldeia ainda permanece. Se tabanka é festa, é sempre a festa de uma aldeia, de um bairro ou mesmo de um conjunto de residências dispersas. Este é o motivo de se falar em "Tabanca da Várzea", de "Achada Santo António", de "Achada Grande" (bairros da cidade da Praia que as sediam), de "Chã de Tanque", "Lém Cabral", e outras localidades da ilha. Assim, seja como uma instituição de ajuda mútua ou como uma celebração, o vocábulo no crioulo de Santiago retém uma relação metonímica com o sentido guineense de povoação, na medida em que a parte sugere o todo.

Para que ocorram festejos em larga escala, carece organizar atividades complexas e haver atores sociais que assumam a responsabilidade pela eficácia da celebração. Em outras palavras, se tabanka significa festividade, também significa a instituição que encabeça ou organiza o festejo. Apesar de ser menos visível para os cabo-verdianos das ilhas de barlavento, este componente institucional continua a ser o fundamento e a razão de ser da festividade. Sociologicamente falando, a tabanka cabo-verdiana é então uma instituição com uma estrutura complexa que recruta seus membros a partir de uma base territorial e funciona como uma associação de ajuda mútua ou uma irmandade.

Como instituição, a estrutura da tabanka copia a da sociedade, o que a torna um sistema social em miniatura. Assim como em uma sociedade, as tabankas têm chefes, agentes da lei e da ordem, trapaceiros, gente de bem, valores e símbolos próprios. Elas também têm reis e rainhas, ministros, médicos, polícias e ladrões, soldados com armas e uniformes, gente de prestígio, como conselheiros e embaixadores, e gente miúda e subordinada, chamada de catibos e negas. De modo crítico e irônico, este grupo subordinado mimetiza a sociedade escravocrata do passado e as desigualdades do presente. Conforme a categoria catibo sugere, na maioria das procissões ou cortejos da tabanka, este grupo é referido pela mesma palavra que no passado designava os escravos. E, interessante, em sua maioria é formado por mulheres.

As tabankas têm insígnias e estas são percebidas como valores. Entre outras, a bandeira que representa o santo padroeiro é a que se encontra no cume da escala de valores. Em sua simplicidade absoluta, ela é uma expressão mimética da pobreza e da pureza de membros e devotos da associação. Além da bandeira do santo padroeiro, existem outras de natureza diferente. Extremamente coloridas, elas têm desenhos e padrões muito diversos e rebuscados, revelando em sua exuberância o funcionamento de uma mentalidade sincrética que assimila vorazmente tudo o que encontra em seu caminho. Elas emprestam vida e cor aos longos cortejos que a tabanka faz às residências dos patrocinadores dos festejos, chamados de reis (rainhas) de agasalho, que via de regra residem em outras localidades.16 16 Sobre as bandeiras e sua presença nos cortejos das tabankas, ver Trajano Filho (2012). Estas insígnias de vida e de cor indicam a maneira peculiar com que os cabo-verdianos reproduzem sua sociedade, com o acionamento intenso das estratégias de emigração. Somente numa sociedade de emigrantes podemos encontrar objetos banalmente cotidianos, como bandeiras de times de futebol turcos, bandeiras nacionais estilizadas de vários países e, numa típica mistura da cultura de massas no mundo globalizado, a fusão num mesmo símbolo material das cores, dos símbolos e padrões nacionais da Jamaica e dos Estados Unidos, com um herói negro moderno, como Bob Marley, e um ícone da indústria cultural, como Michael Jackson.

Além das bandeiras, instrumentos musicais são outros símbolos poderosos das tabankas: dois ou três tambores rústicos, uma coleção de três a seis búzios e, em algumas associações, uma corneta militar. Todos eles são bens raros, cujas produção e distribuição não satisfazem as demandas locais, emprestando assim grande prestígio às associações que os têm.

Detenho-me agora nos valores que estas celebrações expressam. Vou me limitar àqueles que, com ironia crítica, tentam recriar simbolicamente a ideia de ordem, típica da sociedade colonial que serve de modelo à tabanka. Três elementos se apresentam de maneira enfática nas celebrações dessas irmandades, especialmente durante as longas caminhadas que seus membros fazem às casas dos reis ou rainhas de agasalho em busca de suas prendas para a associação. O primeiro é o valor da ordem e da disciplina, tal como elas se materializam no ato de marchar em bem formadas filas e na preocupação geral com uma caminhada muito bem ordenada e organizada. O cortejo é mais do que uma simples excursão. Ele é enquadrado como uma expressão crioulizada das marchas militares e das peregrinações religiosas (Trajano Filho 2011___. 2011. "Goffman en Afrique: les cortèges de tabancas et les cadres de l'expérience". Cahiers d'Études Africaines, 201:193-236.). Os catibos e as negas devem marchar em rigorosa fila indiana, havendo mesmo um personagem ritual responsável por castigá-los com chicotadas sempre que eles saem de linha e desfazem a boa ordem da marcha.

O segundo é a organização do tempo - uma outra forma de expressar a ordem e o controle social satiricamemte vividos nas celebrações da tabanka. Tratado de maneira absolutamente caricatural, o respeito aos horários estabelecidos para as diversas atividades e à programação é frequentemente dramatizado em encenações rituais durante os festejos. Um membro da tabanka que chega atrasado a qualquer uma de suas atividades é severamente punido. Ele é levado a um canto da povoação que funciona como prisão e, com uma coroa de espinhos na cabeça, é amarrado e submetido às mais variadas imprecações de todos os que por ali passam. Prisões, castigos corporais ritualmente violentos, multas elevadas e dramatizadas constituem o terceiro elemento ao qual a irmandade crioula recorre para encenar a ordem durante as celebrações. Assim, com multas, castigos e prisões, com um bizarro rigor no controle do tempo e com uma obsessão militarizada com filas, as tabankas, por um lado, parecem reviver e reafirmar (como sátira, talvez) a ordem, a disciplina e a hierarquia da sociedade dominante, do passado e do presente.

Cada tabanka tem seu próprio santo padroeiro, escolhido entre as figuras sagradas do catolicismo popular que são celebradas no mês de junho (Santo Antônio, São João e São Pedro). Para honrá-los, capelas ou cortes são erigidas, nas quais as suas imagens e a da sagrada família são cuidadosamente mantidas e veneradas. Tais construções são lugares para orações e para pedidos por abundância nas colheitas, fartura nas casas, boas chuvas no tempo certo e harmonia para a comunidade e seus residentes. Sob a proteção dos santos padroeiros, estas capelas abrigam as oferendas dos membros da tabanca e as de seus reis e rainhas de agasalho. Todas estas dádivas são leiloadas ao fim da série de refeições comunais que começam no dia do santo e duram atualmente quatro ou cinco dias.

Apesar das diferenças de superfície nos sentidos da palavra tabanka em Cabo Verde e na Guiné-Bissau, eu desejo enfatizar algumas conexões entre os sentidos que a mesma palavra veicula nas duas línguas crioulas. Primeiramente, como instituição ou como festividade, no crioulo de Santiago, a palavra mantém uma relação metonímica com a ideia de lugar de se viver, do mesmo modo que a parte sugere o todo. Além disto, como o termo cibanka entre os bagas-sitem e muitos outros povos da costa da Guiné, as tabankas cabo-verdianas têm um santo padroeiro como seu espírito protetor, como fonte de bem-estar, prosperidade, fertilidade e abundância. As alegorias, os uniformes e os instrumentos musicais das associações cabo-verdianas são chamados de armamento. Tanto os papéis rituais dramatizados durante os cortejos quanto a forma e o espírito que estes assumem nestas procissões estão carregados com sentidos oriundos dos domínios religioso e militar. Existem comandantes, soldados, polícias e cativos que parodiam a ordem e a disciplina durante suas marchas. Afinal de contas, deixar a sua comunidade e marchar por vales e ribeiras secas em direção a outras localidades é, cosmologicamente falando, enfrentar os perigos da terra-de-ninguém.

Subjacente a tudo isto, argumento que estão as ideias de proteção e defesa contra os inimigos humanos e místicos, no sentido original das tabankas fortificadas e cercadas da costa africana até, pelo menos, o fim do século XVIII. Finalmente, a própria existência destas associações em Santiago, associada à percepção que as elites crioulas locais têm delas, dá uma pista para a descoberta de uma oposição constitutiva no mundo crioulo, análoga à existente na Guiné-Bissau. Em Cabo Verde, em vez de uma clivagem entre os espaços da crioulidade e da africanidade, encontramos uma divisão social entre os camponeses do interior e os pobres da periferia da cidade da Praia, por um lado, e a elite educada do Platô, por outro.

Através do oceano: rumo à afetividade e aos sentimentos

Minha análise das mudanças semânticas da palavra tabanka deveria terminar aqui, e o leitor poderia ir diretamente para as considerações finais. Porém, creio que devo tomar uma atitude mais audaciosa e enfrentar as turbulências semânticas que teriam afetado o núcleo de sentido da palavra em sua provável jornada para o Novo Mundo. O uso do modo condicional e a qualificação do termo jornada como uma possibilidade indicam que entro aqui num campo caracterizado por conjecturas dificilmente falsificáveis. O ônus a pagar é bem conhecido: tratar-se de um falso cognato. Seu valor, creio eu, não pode ser muito elevado, pois num contexto social em que prevalecem uma prática e uma ideologia linguística difusas, como o das línguas em contato, "nunca se pode dizer de onde vem uma palavra" (Le Page 1998:66LE PAGE, Robert. B. 1998. "'You can never tell where a word comes from': language contact in a diffuse setting". In: P. Trudgill & J. Cheshire (eds.), The sociolinguistics reader: multilingualism and variation. Vol. 1. London: Arnold. pp. 66-89.).17 17 Sobre a oposição focado e difuso a caracterizar os sistemas linguísticos, ver Le Page e Tabouret-Keller (1985) e Le Page (1998). Mas creio haver dois bônus à espera na reta de chegada. O primeiro, talvez o de menor valor, depende do descarte do ônus. Se este é o caso, ganhamos uma camada extra de conhecimento sobre os fluxos históricos da costa africana às ilhas do Caribe. O segundo, de certo modo, independe do ônus, tendo a ver com a hipótese geral do trabalho: o encontro de ecúmenos (no caso, ecúmenos crioulizados ou em crioulização) provoca turbulências semânticas nas categorias classificatórias, nos valores e nos símbolos: mudanças de sentido que, por se tratar de ecúmenos crioulizados, mantêm algo do núcleo noemático anterior.

A viagem do termo tabanka da costa da Guiné para as ilhas de Cabo Verde e os deslocamentos semânticos de superfície que ocorreram durante esta jornada estão relacionados a uma persistente intercomunicação entre ecúmenos: o da alta costa da Guiné e o luso-africano, cujo contexto foi o processo de crioulização que fez surgir a sociedade crioula de Cabo Verde. Esses encontros intersocietários de longa duração teriam provavelmente causado algum tipo de turbulência social e cultural intensa o bastante para sacudir o kit das ferramentas conceituais usadas para pensar e conceber a sociabilidade, a segurança e a proteção enquanto mantinha algum grau de continuidade com o núcleo de significação mais profundo da raiz *abank(?).

Volto-me agora, e de modo breve, para um provável terceiro momento da jornada da tabanka, parando desta vez estrategicamente na ilha de Trinidad, ao largo da costa venezuelana. Ali, a palavra não faz referência à aldeia (fortificada ou não) ou à instituição de ajuda mútua que coordena a reciprocidade dentro e entre as povoações. Exibindo uma outra transformação semântica, o termo tabankaem Trinidad se refere a um tipo particular de sofrimento e opressão, de algum modo semelhante ao que a biomedicina classifica como psicopatologia. De acordo com Littlewood (1998:121)___. 1998. The butterfly and the serpent: essays in psychiatry, race and religion. London: Free Association Books., a palavra se refere a uma "resposta psicológica inapropriada ao abandono". É uma categoria da cultura da classe trabalhadora, ligeiramente diferente da ideia de adultério, que é restrita aos ambientes das classes médias locais.

A tabanka assola um homem quando sua mulher o abandona por um outro homem. Mais comumente ainda, ela surge quando o marido abandonado se entrega à infelicidade, à tristeza e à perda em vez de seguir a vida. Quando isto acontece, o sofredor se torna extremamente desanimado, e começa a mostrar sinais de letargia, anorexia e falta de interesse no trabalho. Passa a vagar sem rumo pelas ruas ou se retira para a solidão de sua casa, para alimentar seu ódio pela mulher infiel. Bebe e fuma excessivamente, come pouco ou nada, dorme mal e, em casos extremos, pode morrer por abandono de si, acidente ou mesmo cometer suicídio (Littlewood 1993:47-52LITTLEWOOD, Roland. 1993. Pathology and identity: the work of Mother Earth in Trinidad. Cambridge: Cambridge University Press.; 1998:85-86, 117-119).

Devo ressaltar, contudo, que este mal, que beira a loucura, não é causado pelo ato de ser abandonado, mas pela resposta da vítima ao abandono. Ele também não deve ser tomado como um mal de amor. A tabanka somente ocorre quando há um relacionamento sexual e econômico entre os parceiros, especialmente quando eles se casaram na igreja. Em Trinidad, ela é basicamente uma forma de expressão emocional que assola os homens, muito mais frequentemente do que as mulheres, e ocorre majoritariamente nos grupos crioulos, na população, entre os tibourgs (pequena burguesia) e os béke negres (pretos brancos) que aspiram a um modo de vida branco e das classes médias (Littlewood 1998:117___. 1998. The butterfly and the serpent: essays in psychiatry, race and religion. London: Free Association Books.).18 18 Atualmente, o sentido do termo tem se estendido bastante, designando luto e outros sentimentos de perda (Littlewood 1998:117). A palavra tem sido usada, por exemplo, para se referir à perda associada à competição ou disputa política, especialmente durante as campanhas eleitorias. Chama-se a isto "tabanka política" (cf. Winer 2009:871). Heike Drotbohm (comunicação pessoal) me disse que nos contextos urbanos trinidadianos a palavra é empregada no registro coloquial para expressar o sentimento de nostalgia pela perda de algo precioso. Além disto, parece que nos mesmos círculos sociais o termo está passando por uma extensão semântica e, com isto, começa a ter um novo papel nos discursos cotidianos. Ainda não está clara a direção exata desta mudança, mas tudo indica que a palavra está se tornando um bom candidato para representar o ethos da cultura do país.

Ao contrário do que se poderia esperar, aqueles que não são afetados por ela aproveitam a oportunidade para expressar desdém e ironizar o marido dilacerado. Eles debocham de seu investimento econômico e psicológico em uma outra pessoa num mundo assolado pela precariedade e pelo individualismo. Como claramente percebeu o antropólogo Roland Littlewood (1998:121-122)___. 1998. The butterfly and the serpent: essays in psychiatry, race and religion. London: Free Association Books. em relação ao humor associado à tabanka, não se trata de uma crítica à fidelidade e à respeitabilidade inerentes ao casamento cristão, mas, antes, aos devaneios de certa forma esnobes de pessoas oriundas dos estratos baixos da sociedade de emular um estilo de vida e valores dos brancos e das camadas médias locais. A vítima da tabanka perde sua reputação, um valor importante nos estratos baixos da sociedade crioula de Trinidad. Ela também perde o pouco de respeitabilidade que aos trancos e barrancos conseguiu ganhar macaqueando o ethos burguês ao se casar - respeitabilidade que é um valor central para as classes médias locais.19 19 Littlewood toma emprestado de Wilson (1995) a oposição entre reputação e respeitabilidade como os dois princípios básicos a conformar as estruturas sociais caribenhas

Com significados tão diferentes em Trinidad, Cabo Verde e Guiné-Bissau, não seria surpreendente se a relação entre a mesma palavra em três línguas crioulas diferentes fosse a de uma mera homonímia, sem nenhum sentido subjacente comum. Minha pesquisa ainda é muito inconclusiva, quando não negativa. Consultei alguns especialistas nas línguas crioulas caribenhas e não tive deles qualquer resposta definitiva. Lise Winer me informou (comunicação pessoal) que o termo parece ser de introdução recente no crioulo de Trinidad, sendo de 1957 o registro escrito mais antigo que ela encontrou. Ela também menciona interpretações vagas e altamente especulativas de que a tabanka trinidadiana poderia ser oriunda de tabaka, palavra kikongo - língua falada por um grande número de gente no Congo e em Angola. Ela é glosada por Winer (2009:871)WINER, Lise. 2009. Dictionary of the English/ Creole of Trinidad & Tobago. Montreal: McGill-Queen's University Press. "como esgotar completamente" (Winer 2009:871WINER, Lise. 2009. Dictionary of the English/ Creole of Trinidad & Tobago. Montreal: McGill-Queen's University Press.).

Em Trinidad (mas também na Guiana e em Granada, segundo Allsopp 2003), ela teria adquirido o sentido de perda amorosa. Outros autores acreditam que, no Caribe, o vocábulo pode ter vindo de um termo de uma língua de contato chamada kituba, falada na África central. É interessante notar que uma variedade desta língua crioula, nomeada de Kikongo ya leta ou Kikongo-matadi, emergiu no fim do século XIX como uma língua franca e, mais tarde, tornou-se a língua vernacular das populações que viviam nos postos administrativos avançados a oeste, leste e sul de Kinshasa. A expressão kikongo-matadi se refere à ferrovia que conectava uma cidade portuária a Kinshasa. Ela foi construída por trabalhadores trazidos do Senegal e da Serra Leoa (Mufwene 2009MUFWENE, Salikoko S. 2009. "Kituba, Kilela, or Kikongo? What's in name?". In: C. de Féral (dir.), Le nom des langues III: nom des langues en Afrique sub-saharienne: pratiques, dénominations, categorizations. Louvain: Peeters Publishers. pp. 211-222.:213), falantes das várias línguas do ramo Atlântico Ocidental, de onde vem a raiz *abank(?).

Roland Littlewood (1993:266)LITTLEWOOD, Roland. 1993. Pathology and identity: the work of Mother Earth in Trinidad. Cambridge: Cambridge University Press. também buscou a etimologia da tabanka trinidadiana, mas concluiu que ela é obscura e, provavelmente, múltipla. Entre possíveis candidatos, ele sugere que o termo possa vir de um cognato do termo ta banque (falência ou quebra de contrato), do crioulo de base francesa; de ti blanc (pequeno branco), do crioulo do Haiti; ou mesmo do jamaicano bacha (pequena banana ou, neste caso, falta de ereção). Uma outra origem possível seria tabanco, de uma variante do espanhol da América Central, cujo significado seria "o lugar dos galos castrados". Allsopp (2003:544)ALLSOPP, Richard. 2003. Dictionary of Caribbean English Usage. Kingston: University of West Indies Press. sugere que poderia vir de um cognato (ou empréstimo) de tabangke, um termo macuxi (uma língua carib) que significa "vaguear".

Em todo caso, muitos africanos que chegaram a Trinidad como escravos vieram da alta costa da Guiné, região onde se fala um grande número de línguas relacionadas que compartilham a raiz *abank(?). Isto dá credibilidade à suposição de uma origem guineense do termo. Mesmo que uma futura pesquisa linguística revele que este não é o caso, parece-me que a similaridade entre as formas guineenses, cabo-verdiana e trinidadiana não é meramente uma homonímia acidental, pois esta parte do Caribe em que se encontra Trinidad tem sido uma zona de interseção entre vários ecúmenos culturais gerados durante o processo de crioulização despoletado pela expansão europeia a partir do século XV. Convergiram para Trinidad gente, formas e itens linguísticos, bem como um repertório de ideias e valores da América continental, das outras ilhas caribenhas, das Índias Orientais, da Europa e da África (incluindo a alta costa da Guiné). Esta convergência pode ter produzido uma espécie de turbulência semântica que teria alterado o sentido original do termo que dá origem à tabanka trinidadiana, de modo que ela seria impregnada com algumas conotações (ou transformações destas) da palavra nos crioulos de Cabo Verde e da Guiné.

Além disto, o fosso de sentido não é tão largo. Vejo uma continuidade semântica no uso do termo nas três línguas crioulas. Primeiramente, há uma conotação de sentimento intenso, mas ambíguo, de segurança, proteção e sociabilidade. No caso de Trinidad, há uma clara inversão estrutural, na qual o sinal positivo associado a este sentimento torna-se negativo. Em segundo lugar, há uma semelhança no modo como a palavra é usada nos modos da paródia, caricatura e crítica social em Cabo Verde e em Trinidad. Finalmente, nas três línguas, o termo aponta para uma oposição básica entre grupos sociais e formas culturais: na Guiné-Bissau, entre os espaços da crioulidade e da africanidade; em Cabo Verde, uma oposição entre as formas sociais dos camponeses e da gente dos estratos mais baixos da sociedade e a elite educada; em Trinidad, uma oposição entre os princípios estruturais da reputação e da respeitabilidade, que é bastante similar ao que acontece em Cabo Verde.

Considerações finais

Eu teria ainda um longo caminho a prosseguir, mas devo concluir argumentando que um olhar minucioso para as flutuações semânticas do termo tabanka sugere um cenário de conexões históricas entre vários ecúmenos culturais que, por sua vez, derivam de uma crioulização linguística e cultural; e tudo isto se sobrepõe nas ilhas caribenhas. Tomo a ideia de ecúmeno de uma longa tradição antropológica que inclui os trabalhos de Kroeber (1946)KROEBER, Alfred. L. 1946. "The ancient oikoumenê as a historic culture aggregate" (Huxley Memorial Lecture for 1945). Journal of the Royal Anthropological Institute, 75:9-20. , Kopytoff (1987)KOPYTOFF, Igor. 1987. "The internal African frontier: the making of African political culture". In: I. Kopytoff (ed.), The African frontier: the reproduction of African societies. Bloomington: Indiana University Press. pp. 3-83., Hannerz (1991)HANNERZ, Ulf. 1991. "The global ecumene as a network of networks". In: A. Kuper (ed.), Conceptualizing societies. London: Routledge. pp. 34-56. e Mintz (1996)MINTZ, Sidney W. 1996. "Enduring susbstances, trying theories: the Caribbean region as Oikoumenê". Journal of the Royal Anthropological Institute, 2:289-293.. Inspirado por estes autores, eu entendo o ecúmeno como um campo de intensa comunicação através do tempo e do espaço, no qual os agentes sociais compartilham, além de um certo número de traços culturais isolados (idiomas, instituições, culinária, hábitos e práticas de nomeação e formas simbólicas em geral), um profundo sentido de história comum, mantido e reproduzido independentemente de haver contiguidade espacial (cf. Mintz 1996:297MINTZ, Sidney W. 1996. "Enduring susbstances, trying theories: the Caribbean region as Oikoumenê". Journal of the Royal Anthropological Institute, 2:289-293.).

Para Kroeber, o ecúmeno é uma "grande unidade histórica... um enquadramento no interior do qual ocorreu uma combinação peculiar de processos que obtiveram resultados únicos..." (1946:9). Como eu o entendo, contudo, o que o torna único não é tanto a combinação particular de processos ou de traços culturais compartilhados, mas a forma pela qual as diferenças internas ganham expressão e são vividas. O que dá a ele o amálgama necessário é um certo tipo de relacionamento entre alteridades, não baseado na lógica de oposições distintivas entre categorias sociocêntricas de identidades de grupo (Pina Cabral 2010:7-8PINA CABRAL, João de. 2010. "Lusopia como ecumene". Revista Brasileira de Ciências Sociais, 74:5-20.), mas o exercício de um "compromisso de trabalho". Este compromisso, diz Goffman (1967:11)GOFFMAN, Erving. 1967. Interaction ritual: essays on face-to-face behavior. New York: Anchor Books., é um atributo fundamental de qualquer interação que habilita os participantes dos encontros sociais a disporem de autorregulação. O compromisso de trabalho é então um ato ritual, e é nestes minúsculos ritos da interação que aprendemos a ser perceptivos, a ter sentimentos relacionados ao eu - um eu conectado a uma autoimagem - a ter orgulho e a sentir dignidade quando lidamos com outras pessoas, e a expressar consideração, sensibilidade, tato e postura. Em suma, estes pequenos ritos requerem uma certa condescendência, uma forma de "trégua temporária" que faz com que as interações prossigam, mesmo em meio a constantes ofensas.

Em contextos de intersubjetividade, o ecúmeno se torna visível na vida cotidiana quando ele fornece aos agentes sociais (não necessariamente sob a forma de uma consciência reflexiva) o sentimento de uma história compartilhada, especialmente em relação às formas de perceber as diferenças e de se conceberem as pessoas. Assim objetificado pelos agentes sociais, o ecúmeno aguça o nosso apetite e a nossa inclinação para pensar além da difusão dos traços culturais, da aculturação e do sincretismo. Conforme bem notado por Pina Cabral (2010:16)PINA CABRAL, João de. 2010. "Lusopia como ecumene". Revista Brasileira de Ciências Sociais, 74:5-20., ele permite e facilita a identificação de ecos que levam os participantes de um mesmo ecúmeno a reconhecer um ou outro. Estes ecos tornam seu mundo social mais plenamente inteligível.

Pensar na longa jornada da tabanka da costa ocidental da África às ilhas caribenhas como parte de um processo que interliga diversos ecúmenos nos livra da tentação empiricista de buscar entender o mundo em termos de fluxos de traços culturais individuais. Também nos protege de sermos tomados pelo hábito fácil de nos satisfazermos com noções genéricas, mas preguiçosas, tais como as de "mundo em fluxo", de "Atlântico negro" e outras. Além disto, nos induz a fazer duas perguntas que considero muito importantes. A primeira: o que acontece quando os ecúmenos culturais se sobrepõem? Isto nos faz refletir sobre os tipos de turbulência que estão por trás das flutuações semânticas que acabo de examinar e o quão forte são elas para fazer chacoalhar o kit de categorias culturais que enquadram a experiência dos agentes sociais (ideias de proteção, segurança, sociabilidade, reciprocidades, assim como a falta delas). A segunda tem a ver com o objeto concreto de minha análise. Embora eu tenha focalizado as flutuações semânticas de um simples item de léxico, eu espero ter mostrado que elas estão associadas a continuidades e descontinuidades na forma de se conceberem a sociabilidade e a diferença. Parece ser verdade que para assim fazer eu poderia ter escolhido seguir a jornada de qualquer outro objeto rumo ao espaço de interseção entre os ecúmenos. Mas isto realmente valeria para qualquer objeto? Como escolhemos os itens que carregamos em nossa bagagem nestas viagens que, ao fim e ao cabo, não são outra coisa que expansão e contração de ecúmenos?

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  • *
    Este texto se beneficiou do conhecimento etnográfico de muitos colegas que gentilmente me forneceram valiosas informações sobre o termo tabanka e seus cognatos nos contextos de suas áreas de investigação. Sou grato a Ramon Sarró, Eric Gable, Joanna Davidson, Peter Mark, Bruce Mouser, Heike Drotbohm e Lise Winner pelas respostas sempre generosas às minhas indagações. Juliana Braz Dias e Teté Montenegro também me beneficiaram com seus instigantes comentários. Não preciso dizer que, com tanta ajuda, sou eu o único responsável pelos enganos e as fraquezas argumentativas do trabalho.
  • 1
    Entendo crioulização como um processo de mudança linguística e cultural, que resulta de um fluxo de valores, práticas, saberes, crenças, palavras e outros itens da linguagem, que dá luz a uma entidade social ou linguística terceira: uma sociedade ou uma língua crioula. Sobre a crioulização primária anterior à presença europeia na costa da Guiné, ver Brooks (1993) e Trajano Filho (2005). As sociedades crioulas dos luso-africanos foram tratadas por Trajano Filho (1998) e Brooks (1993, 2003). Sobre a crioulização caribenha há um vasto leque de estudos, dentre os quais se destacam Mintz (1996) e Mintz e Price (1992).
  • 2
    A grafia desta palavra varia bastante. Nos dicionários da língua portuguesa ela é grafada com um "C" (tabanca). Nos dicionários das diferentes línguas crioulas ela é escrita com um "K" (tabanka). Neste trabalho adotarei esta última forma porque ela sugere uma origem não portuguesa.
  • 3
    Devo mencionar, embora deixe sem listar, o uso corrente da palavra entre os falantes de várias línguas da costa da Guiné, pertencentes ao ramo Atlântico Ocidental, com o sentido semelhante ao que atualmente tem no crioulo da Guiné-Bissau. Nestes casos, tudo indica tratar-se de um empréstimo recente. Ver mais adiante.
  • 4
    Segundo Hair (1967: 46), o termo baga é ke-ba ŋ ka, significando "aldeia"
  • 5
    Horton (1976) desenvolveu um modelo dinâmico que relaciona as sociedades com e sem Estado na África Ocidental. Este modelo atribui um papel-chave ao padrão de assentamento (aldeias dispersas ou compactas) das sociedades.
  • 6
    Agradeço respectivamente aos colegas Joanna Davidson e Peter Mark por estas informações.
  • 7
    Ele também faz uso deste termo para se referir a uma murada feita de paus altos a pique e pedaços de árvores que arrodeia a aldeia mandinga de Cação, na margem do rio Gâmbia (1977:150). Comentando esta passagem de Donelha, Teixeira da Mota (1977:300-302) aponta que outras descrições testemunham a existência de paliçadas nas aldeias mandigas da região. Contudo, isto não significa que a palavra tenha origem numa língua ramo mande, diferente do Atlântico Ocidental.
  • 8
    Ver também Coelho (1990 [1669]:34; 1990 [1684]:151).
  • 9
    Ver também Hair (1967:46, 56).
  • 10
    É interessante notar que a palavra temne não entrou no crioulo de base inglesa falado pelos krios da península de Freetown, muito mais próxima fisicamente do território tradicional dos temnes do que de Cacheu.
  • 11
    Ver Oliveira (1888-1889:307): "As povoações mais importantes são protegidas por fortes tabancas [...] em torno das casas e choupanas destes vilarejos é construída uma forma de muralha, com troncos de árvore altos e grossos".
  • 12
    Referências sobre esta hipótese encontram-se em Lefebvre (1986, 1998, 2009); Muysken (1981, 1997) e Voorhoeve (1973).
  • 13
    Ver também Baptista (2007) para uma análise da congruência entre as línguas de substrato e o português na formação do crioulo cabo-verdiano.
  • 14
    Deixo inexplorada uma possível derivação da palavra funco (casa pobre, choupana de pedra), do crioulo de Santiago, da raiz Atlântico Ocidental *abank(?). Este termo aparece em diversas fontes históricas com o sentido de casa (Alvares 1990), celeiro (Alvares 1990; Kup 1961:102), capela ou altar (Álvares 1990) e sacada ou varanda (Almada 1964:348). Ele tem sido usado por estes autores em suas descrições de eventos que teriam acontecido na ilha de Bissau e em várias partes da Serra Leoa, na costa africana. Segundo Hair (1977:266), existem palavras semelhantes no temne moderno: αη -fu η k (celeiro) e αη -pu η ka η (varanda, sacada). Noto também a impressionante semelhança com o termo diola funk.
  • 15
    Ver também Carreira (1964) e Rougé (2004) para os significados desta palavra no contexto dos maiores centros urbanos do país.
  • 16
    Sobre as bandeiras e sua presença nos cortejos das tabankas, ver Trajano Filho (2012).
  • 17
    Sobre a oposição focado e difuso a caracterizar os sistemas linguísticos, ver Le Page e Tabouret-Keller (1985) e Le Page (1998).
  • 18
    Atualmente, o sentido do termo tem se estendido bastante, designando luto e outros sentimentos de perda (Littlewood 1998:117). A palavra tem sido usada, por exemplo, para se referir à perda associada à competição ou disputa política, especialmente durante as campanhas eleitorias. Chama-se a isto "tabanka política" (cf. Winer 2009:871). Heike Drotbohm (comunicação pessoal) me disse que nos contextos urbanos trinidadianos a palavra é empregada no registro coloquial para expressar o sentimento de nostalgia pela perda de algo precioso. Além disto, parece que nos mesmos círculos sociais o termo está passando por uma extensão semântica e, com isto, começa a ter um novo papel nos discursos cotidianos. Ainda não está clara a direção exata desta mudança, mas tudo indica que a palavra está se tornando um bom candidato para representar o ethos da cultura do país.
  • 19
    Littlewood toma emprestado de Wilson (1995) a oposição entre reputação e respeitabilidade como os dois princípios básicos a conformar as estruturas sociais caribenhas

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2014

Histórico

  • Recebido
    13 Fev 2014
  • Aceito
    12 Ago 2014
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