Acessibilidade / Reportar erro

RENOLDI, Brígida. 2013. Carne de Carátula. Experiências etnográficas de pesquisa, julgamento e narcotráfico. La Plata: Edições Al Margen. 327 pp.

RENOLDI, Brígida. Carne de Carátula. Experiências etnográficas de pesquisa, julgamento e narcotráfico. 2013. Edições Al Margen, La Plata

No campo dos estudos sobre Estado e crime na Argentina, as agências públicas tinham sido habitualmente retratadas como dispositivos que agiam "sobre" a sociedade civil com um efeito disciplinante. Carne de Carátula intervém nesse campo, integrando um corpo crescente de estudos que propõe uma nova perspectiva: em lugar de ser um agente "externo", o Estado é pensado como um sistema institucional que é configurado na trama de relações sociais que articula agentes públicos com atores da sociedade civil. Em prol desse objetivo, o texto propõe três caminhos inter-relacionados.

Desde suas primeiras páginas sabemos que se trata de uma etnografia que se desenvolve ali, onde se juntam e se separam Brasil, Paraguai e Argentina: suas fronteiras. Nesse espaço, o texto aborda as formas de relação social entre aqueles que transportam e intercambiam substâncias ou objetos que são considerados ilegais (traficantes), aqueles que são encarregados de controlar para que isso não aconteça (guardas) e aqueles que "estabelecem", ex post facto, se isso tem efetivamente acontecido, quem é o responsável e qual punição caberia (juízes e fiscais). Contudo, se um dos percursos nos leva pelo território no qual esses atores intervêm (a floresta, a cidade e as populações rurais), outro leva-nos pelas instituições. E, neste caso, o trânsito não é apenas pela materialidade (escritórios, celas, tribunais), mas pelas práticas que dão lugar a relações sociais que simultaneamente configuram e são configuradas pelas instituições. Nesse trânsito revela-se uma das questões mais significativas.

Se em Carne de Carátula são descritas densamente as interações cotidianas entre os atores, naquelas em que o tráfico e seu pretenso controle e julgamento acontecem, é para mostrar que nessas interações "age-se", e nessas atuações o Estado cobra substância fática. Como declarado pela autora: "no movimento o Estado se faz...". O terceiro percurso apresenta a forma como uma antropóloga (não particularmente adepta dos atores que estuda) negocia reciprocamente seus próprios preconceitos e os de outros e, a partir daí, se inscreve e configura a trama de relações sociais que constituem seu "campo". Assim, sensível àquilo que a etnografia se propôs a ser, Brigida Renoldi escreve para que não possamos esquecer que no seu texto o Estado é duplamente construído. Emerge como configuração da trama relacional em que é feita sua enunciação formal. Mas ele também é constituído a partir da forma particular com que a antropóloga/autora (enquanto "alguém" que expressa em práticas o polissêmico protocolo da pesquisa etnográfica) participa, constitui e inscreve essa trama de relações no texto no qual ela é contada para nós. Talvez uma quarta dimensão aconteça quando lemos essa "ficção" do Estado e interpretamos o que ele possa ser.

Depois da introdução, o texto desenvolve esses percursos interligados partindo de "Notas Anteriores" (primeiro capítulo). Ali, são apresentados os pressupostos que permitirão alinhavar os capítulos posteriores. Para deslindar esse caminho, é fundamental conhecer os valores que subjazem à proibição das drogas e aqueles que estão inscritos nos processos políticos que dão origem à ordem normativa, sobretudo as reformas do Código de Procedimento Penal da Nação que regem o comportamento dos atores estudados (ou melhor dizendo, que aparece como o sistema de signos e significados por meio dos quais os atores dotam de sentido suas práticas como executores das formas de relação social que este código pretende regular). Em "Habitar, sentir y pasar la frontera", o segundo capítulo, a autora relata a constituição do campo no qual fez indagações a partir da narração de emoções recíprocas (entre ela e seus atores) que fizeram parte de sua entrada nele.

Adiante, são expostos no trabalho, em "Hombres, operaciones y experiencia: los centinelas", os sentidos que adquirem alguns significantes-chave: pátria, nação e Estado. A ideia é se distanciar das definições teóricas e doutrinais (tanto das doutrinas políticas quanto das jurídicas) para observar como se constituem no uso cotidiano entre os atores do campo estudado - e assim conhecer sua performatividade, embora com sentidos divergentes dos doutrinariamente pretendidos. Neste capítulo encontra-se um dos exemplos mais claros daquilo que pode ser conseguido olhando-se para o Estado como uma construção processual inscrita nas práticas cotidianas de uns atores e sendo captado por meio do exercício narrativo de uma etnógrafa.

Ao explorar as formas com que os guardas exercem a custódia das fronteiras e a implementação da lei (a defesa da "nação"), Brígida Renoldi repara no uso do "faro da polícia". Recorrentemente condenado pela imprensa, pela Justiça e por algumas pesquisas acadêmicas, o significante "faro da polícia" tem sido visto como a condensação de um estereótipo construído sobre formas fenotípicas que habilitam a estigmatização e a discriminação dos setores sociais mais prejudicados. Porém, a trama de empatias e distanciamentos em que a autora constrói seu campo permite-lhe enxergar além. O esforço para superar os próprios preconceitos e se deslocar das miradas normativas habilita Renoldi a reconhecer no significante "faro" uma ordem cognitiva. O "faro" incrementa a possibilidade de identificar quem é o portador de substâncias ou objetos cujo trânsito deveria ser interceptado por aqueles que, nesse ato, se constituem e são reconhecidos (por si mesmos e por outros) como guardas. Dessa maneira, o faro da polícia torna-se parte de um exercício da lei que não é mais arbitrário do que aquilo que está implicado na própria formalidade da norma.

A tensão entre a ordem formal das regras e a complexa mediação de saberes informais que intervêm, permitem e interferem em sua "implementação" é retomada e especificada em vários dos capítulos seguintes: "Operativos, procedimientos y inteligencia: la investigación"; "Tiempos, movimientos y lugares: la instrucción; "Letras, secretos y verdades: las pruebas"; "Palabras, gestos y impresiones: el juicio". Em todos eles não apenas se torna evidente que, tratando-se da lei, o enunciado não prediz linearmente a ação, mas que também acontece algo ainda mais paradoxal. Na maior parte dos casos, torna-se evidente que nada do enunciado poderia ser implementado se não fosse mediado por um conhecimento "informal" que minimamente se afasta, mas às vezes até contradiz esses enunciados. Para que seja possível avançar com um inquérito, completar os processos de instrução, coletar as provas, realizar um julgamento e emitir uma sentença, é indispensável introduzir um saber prático (não previsto pela enunciação formal) que permita que essas ações possam ser efetuadas de tal maneira que no mínimo imitem (e possam ser apresentados como o cumprimento de) esses procedimentos.

Cada um dos capítulos mencionados vai dando conta das múltiplas maneiras em que isso acontece, mas uma boa síntese, e que atravessa vários deles, emerge do relato de como é processado Ramón Borsnik (homem inicialmente acusado de narcotráfico e, depois, de ter ameaçado de morte uma testemunha). O problema com essa "causa" era que não podia ser dirimida com facilidade em função de o primeiro delito imputado derivar do fato de o acusado ser, com efeito, o proprietário de uma camionete que tinha sido achada com droga; ou se ele tinha sido alvo de uma armadilha preparada por um chefe de polícia despeitado porque Borsnik era o amante da sua esposa. A respeito da segunda "causa" imputada, também não estava claro se o que Borsnik tinha falado para a testemunha constituía uma ameaça de morte ou tinha sido um diálogo casual com o guarda que o custodiava.

A minuciosa descrição etnográfica deste caso mostra que nas instituições judiciais não se trata de achar a verdade fática (uma "verdade verdadeira" impossível de estabelecer). Trata-se antes de estabelecer a "verossimilhança" a partir dos procedimentos judiciais: a "verdade real", segundo a gíria dos tribunais. Contudo, paradoxalmente, não é a implementação rigorosa dos procedimentos que vai permitir a construção dessa verossimilhança. Conforme enunciado por Renoldi, "para além das normas processuais, é na experiência de habitar [as instituições judiciais] que são criadas e recriadas as habilidades com as quais é configurado o julgamento como um ato decisivo". Quer dizer, é o saber informal subjacente aos procedimentos formais que termina definindo a verossimilhança das posições em disputa e, portanto, a maneira como o Estado se configura na trama de vínculos sociais que articula traficantes, guardas, juízes, testemunhas e fiscais.

Ao mostrar como um sujeito é constituído em objeto de uma ação judiciária (em Carne de Carátula), essa etnografia revela a dimensão processual do Estado. Ilustra de forma eloquente a maneira com que as instituições públicas intervêm na vida social como se fossem práticas que, sem deixarem de estar referidas aos enunciados formais de um código, os instrumentalizam em função de contextos variados e de saberes informais que neles intervêm. Assim, fica claro que aquilo que habitualmente chamamos "o" Estado é na realidade um complexo processo em permanente configuração. E se este é, sem dúvida, um resultado interessante deste livro, é também porque abre perspectivas complementares. Na medida em que aceitemos que a institucionalidade formal do Estado somente se expressa em configurações sobre as quais incide por meio das interpretações que os próprios atores fazem dela, também podemos supor que essa institucionalidade formal surge de uma interpretação do que a sociedade espera de suas instituições coletivas (afinal, os processos políticos e os valores que estão inscritos "na lei" também se constituem em tramas relacionais com suas próprias contingências históricas e conjunturais). Desta forma, o Estado seria um processo inacabado em seus dois extremos: porque a implementação de seus enunciados é parcialmente contingente, e porque também existem contingências na maneira com que são configuradas as pautas que resultam em seus enunciados formais.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2014
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - PPGAS-Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Quinta da Boa Vista s/n - São Cristóvão, 20940-040 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel.: +55 21 2568-9642, Fax: +55 21 2254-6695 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revistamanappgas@gmail.com