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PRICE, Richard. 2013. Fesiten. La Roque-d'Anthéron: Vents d'Ailleurs. 252pp.

PRICE, Richard. 2013. Fesiten. La Roque-d'Anthéron: Vents d'Ailleurs, 252pp.

Uma tradução nem sempre acompanha um projeto político e epistemológico. Boa parte das versões em novas línguas visa tão somente ampliar o escopo de leitores, não necessariamente gerando efeitos retroativos sobre a obra inicial. Não é o caso de Fesiten, de Richard Price. Ao verter seu First-time para a língua dos saamaka do Suriname, povo acerca do qual trata, o autor dá continuidade a um projeto de experimentação etnográfica iniciado há mais de 30 anos.

First-time é hoje considerado um clássico contemporâneo da antropologia pós-moderna e dos estudos afro-americanos pela maneira inovadora com que tratou as narrativas históricas saamaka. Colocando-as lado a lado com fontes documentais e comentários do autor, criou um diálogo polifônico acerca dos momentos fundadores desta sociedade maroon (quilombola), sobre memória, oralidade, ancestralidade, escravidão, guerra e etnogênese. Trabalho primoroso, rico em detalhes, fruto de intenso esforço de pesquisa com história documental e oral.

Desde o lançamento do livro em 1983, Price experimenta com a narrativa etnográfica, fugindo dos modelos da chamada etnografia modernista. Dentre suas publicações estão Alabi's world (1990), continuação de First-time que trata da história saamaka entre 1765 e 1813, acrescentando à polifonia do livro anterior vozes de missionários moravianos alemães. Em Two evenings in Saramaka (1991, com Sally Price) reproduz ipsis literis e comenta gravações de duas vigílias funerárias em 1968, durante as quais o foco são os relatos míticos (kontu). Equatoria (1992, com Sally Price), inspirado em Michel Lieris, acompanha de perto os diários de campo de uma expedição feita pelo casal em 1990 pela Guiana Francesa, coletando objetos de arte maroon para um museu antropológico regional então em construção. The roots of the roots (2003, com Sally Price) retoma a questão dos diários de campo, lendo com atenção documentos de Melville Herskovits relativos às suas expedições ao Alto Suriname na década de 1920. Travels with Tooy (2008), de narrativa não linear, apresenta anos de diálogos com seu informante privilegiado, Tooy, um obiama (especialista nas artes mágicas) que lhe ensina história, linguagens esotéricas, espíritos e muitos outros temas. Recentemente, em Rainforest warriors (2011), o autor faz uma espécie de etnografia de sua participação como perito num julgamento acerca de questões fundiárias, levadas à Corte Interamericana de Direitos Humanas pela VSG (Associação de Líderes Saamaka) contra o governo surinamês.

A obra de Price propõe diálogos entre formas narrativas saamaka (históricas, míticas, artísticas, sobrenaturais, políticas) e dispositivos do fazer antropológico (diários, gravações, etnografias, conversas, coleções, arquivos, laudos), instigando questões fecundas acerca do povo que estuda, das populações afro-americanas e afro-caribenhas, e acerca do métier do antropólogo. Dentre seus experimentos estão novas formas de organizar páginas, notas, tipografia, argumentos teóricos e citações de fontes nativas, bibliográficas e arquivísticas.

Fesiten prolonga o experimentalismo, gerando novos efeitos sobre a escrita antropológica, uma vez que ela é vertida para o idioma nativo (em uma nova e prática ortografia elaborada por Vinije Haabo). O público-alvo não são os poucos antropólogos e linguistas que dominam o saamakatongo - ainda que se trate de um documento valioso para nós. A tradução, encomendada pela VSG, tem como objetivo disponibilizar a obra para um maior número de saamaka interessados. Quais seriam, então, os efeitos para os saamaka de terem agora a possibilidade de ler em sua própria língua uma obra antropológica que trata de eventos cruciais de seu passado?

Diversos saamaka já leram First-time em inglês ou francês, mas a grande maioria não domina tais línguas. Porém, saamakatongo é uma língua oral, não estandardizada, os saamaka alfabetizados em geral têm mais facilidade de leitura e escrita no holandês, idioma ensinado nas escolas surinamesas. Por que não traduzir para o holandês? Price e aqueles que encomendaram o livro tomam uma posição política, defendendo uma valorização do idioma saamaka similar àquela empreendida pela população creole no século XX, que elevou o sranan (crioulo afro-surinamês da costa) ao status de língua nacional, levando à produção de literatura escrita nesta língua predominantemente oral e amiúde considerada "inferior" ao idioma da ex-metrópole. Cabe dizer que Fesiten é o primeiro livro publicado em saamaka que não foi escrito ou encomendado por missionários.

Porém, First-time não é um livro qualquer, e mais do que autoafirmação linguístico-cultural decorre da tradução. Ao virar Fesiten, a obra perde o subtítulo The historical vision of an African American people: não é preciso, afinal, explicar ao leitor saamaka o que são esses "primeiros tempos". Tampouco, aparentemente, explicar-lhes a relevância de sua visão histórica para uma compreensão mais ampla das populações afro-americanas. No cotejo, percebemos que explicações e generalizações foram retiradas ou reduzidas. Ideias como a de que todo o mal se origina da ação humana; de que o processo de segmentação social avança com o tempo; de que a presença de determinados personagens em certos episódios históricos são "mecanismos retóricos" por parte dos narradores. Faz sentido, já que os saamaka não parecem demonstrar particular interesse por estas questões, o autor escolheu "desantropologizar" sua obra, tornando-a atrativa aos nativos. Seria instigante, porém, ver como traduziria certas ideias para uma língua na qual o jargão acadêmico inexiste. Igualmente, lançar certos debates para os nativos: desconfio, por exemplo, que a ideia da segmentação social avançando com o tempo geraria polêmicas estimulantes. Os poucos argumentos "teóricos" que restam mudaram radicalmente de teor na tradução: alguns tornam-se mais enfáticos, outros, mais elípticos, outros, menos matizados. Eis uma questão indireta que o livro levanta, sem responder: seria possível argumentar antropologicamente em uma língua como o saamaka?

Elementos foram adicionados à nova edição. Uma versão em saamakatongo do tratado de paz de 1762 (:239); explicações sobre o ofício do antropólogo e o campo de Price no Alto Suriname (:27ss), sobre como ler uma obra acadêmica (:10-11); algumas referências a eventos ocorridos de 1983 para cá (:passim). Um punhado de falas coletadas na década de 2000 enriquecem certos episódios. Muitos parágrafos tiveram a ordem rearranjada e um episódio foi sensivelmente aprofundado (:184-5). O fio da narrativa, porém, não se altera: a versão da história e de história apresentada é basicamente a mesma daquela de 1983.

Uma versão da história que, incontornavelmente, tem vieses. O grosso do trabalho de campo de Price foi junto ao clã Matyau e um número elevado de fragmentos históricos foi fornecido por Belifon Aboikoni, que em 2005 se tornou líder supremo (gaama) dos saamaka. Ao apresentar versões do passado alternativas às "oficiais" dos documentos holandeses, Price privilegia aquela mais "oficial" dentro do universo saamaka: a dos detentores de prerrogativas sobre os principais postos políticos tribais. Vieses são necessários, frutos da natureza do trabalho antropológico, e o autor não deixou de atentar para tais problemas, afirmando que o livro não deve ser lido "como uma Bíblia", contendo verdades absolutas (:34). Não foi intenção do autor estabelecer versões canônica e "autorizadas" do passado saamaka, mas o risco é real, dado o poder da palavra escrita. A potência da obra em reforçar certas clivagens internas à sociedade saamaka deve ser sublinhada, ainda que em nada destitua a obra de relevância e legitimidade.

Assim como as Mitológicas de Lévi-Strauss constituem um "mito da mitologia", Fesiten pode ser lido como uma meta-história saamaka que acrescenta nova transformação ao conjunto das narrativas trabalhadas. Tal transformação traz um salto qualitativo, por vir de um estrangeiro branco, ser impressa, recorrer a documentos, não ser secreta. Diferente dos mitos, porém, as narrativas aqui têm linearidade histórica e tanto o autor quanto seus informantes defendem - de maneiras distintas - haver referentes últimos para os relatos, verdades sobre episódios do passado. "O que realmente se passou?" é questão recorrente no livro, e Price pesa versões orais e escritas a fim de apresentar um julgamento sobre aquilo que parece mais plausível. Em alguns momentos, toma partido da versão documental (:97-8); em outros, das saamaka (:174), em outros ainda, posições intermediárias. Num ponto crucial - quando busca descobrir quem teria atacado uma comissão colonial que veio ao Alto Suriname negociar com os saamaka em 1750, postergando em 12 anos a paz definitiva - Price muda de ideia em relação a 1983. A adição de uma fala do obiama Tooy, coletada em 2003, faz o autor rever seu veredito, deixando agora a autoria dos ataques em aberto (:184-5). A história de Price, assim como a dos saamaka e todas mais estão em constante construção.

A versão de história aqui é factual, o que levou críticas a serem tecidas a Price nas últimas décadas acerca de seu "verificacionismo". Compreendo que, confirmando as narrativas saamaka via comparações com documentos, Price legitima-as e contribui para as lutas deste povo, mas resta o problema de como tratar simetricamente narrativas que não são confirmadas pelos arquivos ou que são diretamente desautorizadas por fontes escritas.

São as intervenções de Tooy que trazem tal questão de maneira mais clara na nova edição. Talvez por ser obiama antes de historiador, suas falas são mais esotéricas, convolutas, com mais referências a elementos sobrenaturais do que as de outros narradores. Mesmo assim, não é abordada aqui a incômoda questão da interferência do sobrenatural na construção do passado factual saamaka - através de narrativas reveladas em possessões - com a qual Price só foi se haver em Travels with Tooy, 25 anos depois de First-time. O livro de 2008 trouxe ruídos para aquilo que parecia, em 1983, ser uma historicidade plenamente comensurável com a moderna, ruídos que trazem novas dimensões ao problema da verdade e do verificacionismo. Mas talvez não seja mesmo o lugar de abordá-los, afinal, este livro é para os saamaka e entre eles a existência de espíritos ancestrais é uma das verdades mais elementares; que fantasmas falem sobre seu passado é completamente natural, esperado. Se os arquivos coloniais holandeses não concordam com isso, pior para os arquivos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2015
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