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MUSSI, Joana. 2014. O espaço como obra: ações, coletivos artísticos e cidade . São Paulo: Annablume Editora/ Fapesp/ Invisíveis Produções. 259 pp.

MUSSI, Joana. 2014. O espaço como obra: ações, coletivos artísticos e cidade. São Paulo: Annablume Editora, Fapesp, Invisíveis Produções, 259 pp.

O espaço como obra: ações, coletivos artísticos e cidade revela uma proposta de pensar intervenções urbanas de coletivos artísticos como modos de resistência ao poder da "sociedade de controle" imposta pelo capitalismo tardio. A autora, Joana Zatz Mussi, é integrante de uma rede de coletivos e artistas que surge em meados dos anos 1990 em São Paulo, justamente no auge do neoliberalismo, e ocupa o espaço urbano com novas formas de autoria e trabalhos artísticos. Mussi é o "outro", o próprio pesquisado, estudando a si mesmo, o que gera um desafio metodológico para a antropologia urbana. Os coletivos, para antropólogos que estudam a arte, podem ser pensados como alteridades no espaço urbano. O livro constrói uma narrativa que coloca a cidade como lugar possível de produzir formas de micropolítica por meio da arte. As intervenções artísticas, por se darem num espaço público, têm o intuito de alterar as possíveis formas de convivência neste meio e assim as subjetividades dos atores sociais.

Os quatro grupos (Contrafilé - passando pelo MICO, grupo que deu origem ao Contrafilé - Política do Impossível, Frente 3 de Fevereiro e Grupo de Arte Callejero) analisados no livro realizaram trabalhos em resposta às rebeliões de presídios, mortes de jovens na Febem, Copa do Mundo, comemorações de Brasil 500 anos, greve de professores, ou seja, aspectos de crise da sociedade em geral. Os coletivos partem da própria crise política para fazer política na cidade. Isto se dá em forma de ações artísticas que posteriormente poderão ir, como muitos foram, para exposições em galerias e museus. Este ciclo, da rua para o museu, tornou-se característico da arte contemporânea atualmente desenvolvida. As intervenções urbanas propostas por grupos de jovens artistas se inseriram, desde que surgiram, em instituições de arte e, assim, vêm contribuindo para mudanças no mundo da arte. Esse processo merece também a atenção de pesquisadores da sociologia e da antropologia, principalmente por suscitar discussões de "artificação" - quando algo que não é considerado arte começa a ser legitimado como tal - e por se aproximar do crescente turvamento de fronteiras entre alta e baixa culturas.

A leitura deste ensaio contribui para pensar as cidades e suas transformações na contemporaneidade, mostrando como o espaço público é um espaço de construção social e vem se tornando palco de novas formas de resistência a um sistema político que oprime as subjetividades e os corpos. A ressignificação dos espaços públicos por meio de intervenções de coletivos, tais como o cobrimento com cobertores de moradores de rua doMonumento às bandeiras, de Victor Brecheret, localizado em frente ao Parque do Ibirapuera feito pelo coletivo MICO, ou a instalação de uma catraca em um pedestal vazio do Largo do Arouche com a placa "Monumento à catraca invisível - Programa para descatralização da vida" - intervenção do coletivo Contrafilé - como é mostrado no livro, desencadeou ações para além do mundo da arte, evidenciadas em notícias de jornal e manifestações políticas nas ruas.

O argumento central de Joana Mussi é a apropriação dos espaços públicos da cidade pelas práticas artísticas dos coletivos investigados como um fenômeno não só macropolítico, mas também e principalmente micropolítico, por gerar redes de sociabilidades que evidenciam a necessidade de fazer emergir uma subjetividade política na contemporaneidade que esteja atenta às fragilidades do sistema econômico imposto, e que discuta e proponha novas alternativas de convivência que resistam a esse modelo.

A sua base metodológica da pesquisa é a investigação-ação, ou seja, uma observação participante que compreende a própria investigação como intervenção. A questão metodológica crucial é o afastamento que a autora procura realizar por ser parte integrante do campo, esta sendo uma problemática cara ao trabalho de campo da antropologia urbana. Segundo a metodologia da pesquisa realizada, a investigação é uma ação que intervém. Assim, Joana Mussi assume esta condição e tenta resolver a questão separando-se em duas vozes: a sua própria voz como estudante e pesquisadora, e a sua própria voz enquanto artista.

Ao longo de sua escrita e de todas as seções a autora consegue manter um fio condutor analítico. No Prefácio, Vera Pallamim, orientadora da autora na pesquisa de mestrado que originou o livro, aborda a questão política implícita no texto, e enfatiza como os ensaios se comprometem com a vontade de transformação das condições de existência coletiva, apoiando assim o argumento central da obra. Na introdução, a autora aborda sua metodologia e coloca uma conversa introdutória, uma gravação da sua qualificação de mestrado. Nesta conversa, Suely Rolnik, filósofa e crítica de arte, enfatiza como a autora é um documento vivo do atual momento da história da arte, contribuindo assim para o intuito da autora de dar a esses grupos um papel de destaque na arte contemporânea, fazendo parte de um novo movimento artístico.

O capítulo um é titulado "Nada é mais importante do que essa nuança fugidia". Nele, Mussi discorre principalmente sobre ações que deram origem aos coletivos MICO e GAC. Demonstra como ambos surgiram em reação a algum acontecimento social de violência ou crise da atual "sociedade de controle". Assim, neste capítulo, a autora parte da microssociologia de Gabriel Tarde e se detém longamente a explicar de que maneira as ações dos coletivos podem promover revoluções moleculares, de micropolítica, por trabalharem na reinvenção do cotidiano, na construção do espaço social da cidade - um espaço vivo que responde às provocações colocadas nas intervenções urbanas dos grupos analisados. Para isso são inseridas no texto reportagens da mídia nas quais ações do grupo foram confundidas com a vida real, pois comumente em seus trabalhos de intervenção urbana os coletivos não assumem sua autoria.

O capítulo dois se chama "A cidade em disputa", no qual há um mergulho em autores da antropologia e da sociologia para analisar as intervenções dos grupos e assim discutir a cidade e as dimensões sociais do espaço urbano. Busca mostrar como a cidade é um espaço de produção social, que é também uma discussão na sociologia e na antropologia urbana. As ações dos coletivos artísticos analisadas nesta parte têm em comum a representação social da memória e as disputas por apropriação do espaço público. Assim, a autora destaca como os grupos se manifestam nas ruas para buscar entrar em diálogo maior com distintas camadas da cidade, trazendo exemplos de performances interativas entre público e artistas.

O capítulo três, "Pensando a crítica", disserta sobre a questão da crítica institucional realizada pelos coletivos por trabalharem nos espaços públicos, mas ao mesmo tempo discute o fato de estes grupos, muitas vezes, receberem apoio institucional para realizar suas obras. Esta problemática é bastante debatida dentro do campo artístico, há sempre uma rejeição à instituição que se opõe a uma crítica que pode ser elaborada "de dentro" da instituição. Joana Mussi acredita na possibilidade de questionamento das instituições de arte, mesmo quando se é financiado por uma. Hoje, o poder hegemônico é um poder abstrato difícil de se identificar e, para combatê-lo, é preciso utilizar também estratégias performáticas abstratas, como as propostas pelos grupos coletivos, que permeiam distintas poéticas e camadas da vida social. Daí é possível perceber como questões de arte, política e cidade se tornam complementares neste campo e contribuem para o argumento deste livro.

No capítulo quatro, o último, intitulado "Eles não podem partir sem nós", a questão da autoria coletiva é abordada através da discussão teórica da relação com o outro. Esta discussão clássica da Antropologia é vista pela autora segundo a ótica de que, a partir do contato com o outro, há alterações na prática artística. A criação artística é colocada como uma prática social nesta parte do livro para pensar de que maneira a subjetividade é alterada na contemporaneidade. Mussi defende que atualmente, quando coletivos artísticos estão realizando intervenções urbanas, há a emergência de uma "subjetividade que se rebela contra a arbitrariedade do poder", sendo criado um contraespaço. Além deste aspecto, neste capítulo são analisadas algumas medidas externas que influenciaram a criação e o desenvolvimento desses grupos ao longo dos anos 2000. A política cultural do Ministério da Cultura de 2003 a 2010 é uma dessas fontes de influência. As viagens internacionais de alguns dos grupos são também tomadas como importante ferramenta para a construção da subjetividade dos integrantes de coletivos, devido ao contato com o outro estrangeiro.

No entanto, Joana Mussi dá indícios de que compra o discurso nativo, o qual acredita fortemente na potência das microações nas transformações sociais sem questioná-las ou ao menos titubear quanto à validade dessas concepções a partir do campo, trazendo novos questionamentos que a teoria não alcançou. O que pode ser observado hoje é a concepção do coletivo como fetiche. Atualmente, a fetichização transforma o coletivo em uma categoria de legitimação para que muitos grupos alcancem visibilidade no mundo da arte. Mussi não tangencia e nem problematiza a rápida proliferação dos coletivos e a vulgarização deste termo nos anos 2000. Contudo, o livro é uma importante etnografia da transformação do mundo da arte ainda em curso, e também de uma nova apropriação dos espaços públicos e de se fazer política. Mesmo sendo um estudo defendido em uma pós-graduação de Arquitetura e Urbanismo (FAU/USP), suas contribuições alcançam distintas áreas das ciências humanas, principalmente a antropologia urbana e da arte. A pesquisa coloca questões sobre espaço urbano e suas apropriações, novas formas de arte, interações sociais e problemáticas políticas, além de questões antropológicas, sendo um ponto forte do livro seu aspecto multifacetado e transdisciplinar.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2015
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