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SOUSA, Cássio & ALMEIDA, Fábio (orgs.) 2015. Gestão territorial em terras indígenas no Brasil. Série Via dos Saberes n. 6. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão/ Unesco. 268 pp.

Esta publicação organizada por Fábio Almeida e Cássio Sousa representa uma contribuição importante para o entendimento das diferentes questões relacionadas com a gestão territorial e ambiental de Terras Indígenas no Brasil, por meio da apresentação de conceitos, mas também de iniciativas concretas desenvolvidas pelos povos indígenas e seus parceiros. Os exemplos utilizados para as iniciativas nos auxiliam na compreensão de discussões muitas vezes complexas por suas especificidades, que também contam com um acúmulo de aprendizados.

Em que pesem a discussão e as experiências em gestão territorial e ambiental em Terras Indígenas no Brasil ocorrerem há muitos anos, existem ainda poucas publicações sobre esta temática. Nesse sentido, este trabalho supre uma lacuna importante e representa uma contribuição relevante para o entendimento das questões territoriais e ambientais nas Terras Indígenas no Brasil. Para além da compreensão desta temática, pesam ainda o compromisso e o desafio da implementação de ações concretas em territórios indígenas bem manejados por meio da soma de conhecimentos tradicionais dos povos indígenas e da ciência ocidental. Por outro lado, existe de fato uma quantidade razoável de publicações e materiais diversos sobre casos específicos e experiências pontuais desenvolvidas com diferentes povos indígenas, especialmente na Amazônia. Como destacado acima, alguns desses casos são apresentados ao longo da publicação, elucidando as diferentes estratégias com as quais os índios vêm lidando com seus ambientes, manejando recursos naturais e as transformações impostas pela sociedade envolvente. Merece destaque ainda o fato de que muitas dessas experiências citadas estão fora do chamado bioma amazônico, explicitando a importância de valorizar e visibilizar as ações de gestão ambiental dos povos indígenas brasileiros.

Aspecto importante ressaltado na publicação refere-se à ligação estreita e indissolúvel entre a gestão ambiental e o território. De fato, não há gestão sem terra. Elemento imprescindível à reprodução física e cultural dos povos indígenas, o território também é fundamental para o desenvolvimento de ações de gestão dos recursos e da vida. A PNGATI - Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas no Brasil, fruto de um processo único de protagonismo indígena e estabelecida por decreto em junho de 2012, procura articular um conjunto de políticas ambientais e indigenistas e superar os riscos apontados acima. Não por acaso, a PNGATI é frequentemente citada nos textos, dadas as suas importância e legitimidade junto aos povos indígenas.

A primeira parte aborda conceitos fundamentais para o entendimento da noção de gestão territorial em Terras Indígenas. Destaca a importância da dimensão da gestão territorial para povos e Terras Indígenas brasileiras, ressaltando o papel da terra e dos territórios para a sobrevivência física e cultural dos povos indígenas, relembrando as garantias constitucionais conquistadas e o passivo de Terras Indígenas ainda a serem demarcadas. São discutidos os novos desafios e oportunidades enfrentados pelos povos indígenas em relação aos seus territórios e, por fim, ainda é destacada a participação de diferentes setores nas discussões e nas práticas vinculadas à gestão territorial. Dentre os desafios citados destaca-se a crescente demanda por bens e serviços, o aumento populacional e o avanço de grandes empreendimentos e pressão fundiária no entorno de Terras Indígenas em todo o território nacional.

A segunda parte da publicação discute a importante e imprescindível dimensão fundiária da gestão territorial de Terras Indígenas no Brasil. Principal demanda dos povos indígenas em nosso país, a questão fundiária, para os autores, é destacada sob três aspectos: o de segurança territorial, a partir da definição formal de determinado espaço territorial para um grupo; o de base para a sustentabilidade, oferecendo as condições para a sobrevivência de um povo; e o de planejamento das ações dos povos indígenas, intrinsecamente relacionado aos anteriores, na perspectiva de se pensar o futuro de uma TI dentro dos limites predefinidos pelos marcos jurídicos e regulamentos do Estado brasileiro. A publicação apresenta ainda um breve balanço do processo histórico da questão fundiária das Terras Indígenas no Brasil, em seus vários aspectos, e uma contextualização atual desta questão e dos direitos indígenas sobre seus territórios a partir da Constituição de 1988. São apresentadas as principais diretrizes e um detalhamento das etapas de demarcação, assim como uma descrição da situação das Terras Indígenas, explorando os dados quantitativos referentes ao processo de regularização fundiária dessas terras, seus avanços e seus desafios. Por fim, o tema da proteção e da vigilância retorna, desta vez mais detalhado quanto às suas diferentes formas e estratégias de implementação, destacando-se ainda as ações de capacitação e articulação institucional entre essas estratégias. Faz-se menção aos PGTAs - Planos de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas como importante instrumento de planejamento estratégico dos povos indígenas para a proteção e a sustentabilidade de seus territórios.

A importância da dimensão cultural para a gestão territorial das Terras Indígenas é objeto da terceira parte da publicação. A errônea expectativa do Estado brasileiro no início do século XX de que os indígenas iriam se descaracterizar culturalmente e se incorporar à sociedade envolvente obviamente não se concretizou. A incrível resistência cultural dos povos indígenas, invariavelmente ligada à manutenção dos seus territórios, vem criando as condições para a reprodução não apenas física, mas também das culturas dessas populações, muitas vezes superando as condições de degradação ambiental e a pressão dos não índios de maneira surpreendente. Os autores ressaltam ainda as iniciativas em curso de proteção, valorização e instrumentalização do conhecimento tradicional, passando pela educação diferenciada, pelos mapeamentos participativos, por mecanismos de salvaguarda dos conhecimentos indígenas, pela criação de museus indígenas e pela concepção e a implementação de centros indígenas de formação e produção de novos conhecimentos.

A quarta parte do trabalho trata da dimensão ambiental na gestão territorial indígena, ressaltando de início a importância dos recursos naturais nos territórios indígenas, incluídas aí as questões da segurança alimentar e a dos sistemas produtivos, mas tomando o cuidado de acrescentar o papel simbólico no uso desses recursos, juntamente com sua função utilitária. As contribuições indígenas para a conservação ambiental também são discutidas, com especial ênfase nas ações de prevenção e combate ao desmatamento; no uso de conhecimentos tradicionais aplicados à biodiversidade, como na agrobiodiversidade, por exemplo; e na conservação da biodiversidade, tendo em vista o reconhecido e notável papel das Terras Indígenas como áreas protegidas, com índices de conservação invariavelmente superiores a muitas unidades de conservação. São destacados ainda alguns dos desafios e dos problemas ambientais em Terras Indígenas, tais como a intensificação do uso de recursos naturais dentro de uma TI; os custos e o tempo envolvidos em processos de recuperação ambiental; os conflitos relacionados com a sobreposição de Terras Indígenas e Unidades de Conservação de Uso Sustentável e Proteção Integral; a invasão dos territórios para retirada de recursos naturais; e a pressão exercida pelo agronegócio e pelos grandes projetos de infraestrutura. Por fim, são apresentados experiências e instrumentos de gestão ambiental em Terras Indígenas, elencando os principais programas e projetos governamentais associados à gestão ambiental em Terras Indígenas desde o PPTAL até mais recentemente o projeto GATI e a própria PNGATI. Esta parte é finalizada com uma discussão sobre instrumentos de gestão ambiental propostos para Terras Indígenas, especialmente sobre os dilemas e as perspectivas em relação ao pagamento de serviços ambientais e mecanismos de adaptação e mitigação das mudanças climáticas.

A importância da economia na gestão territorial é o tema da quinta parte da publicação. Salienta-se a relação entre disponibilidade de terra e desenvolvimento de atividades econômicas, assim como a complexidade da dimensão econômica contemporânea marcada pelas contradições provocadas pelas pressões do modo de produção capitalista, a dependência de geração de renda e de benefícios sociais para a aquisição de bens e alimentos. Ao discutir a relação das economias indígenas com a economia nacional, os autores salientam as inúmeras pressões que as Terras Indígenas sofrem de empreendimentos agropecuários, minerais, turísticos, de infraestrutura, entre outros, causando sérios problemas para as populações indígenas. Mas é fato que muitos pequenos projetos de desenvolvimento econômico vêm trazendo novas perspectivas para as comunidades indígenas através de suas associações representativas. Ressalta-se a importância do planejamento para o etnodesenvolvimento em Terras Indígenas em função das novas condições impostas pela sociedade envolvente. Esta parte é finalizada com um conjunto de dicas de ações práticas bastante interessantes quanto à implementação de projetos sociais, programas e projetos de mitigação de impactos de empreendimentos e comercialização no mercado de produtos indígenas.

A última parte do livro explora, num primeiro momento, aspectos da dimensão política da gestão territorial a partir das relações tanto intra como interétnicas de um determinado povo indígena e das relações de poder que aí se constituem. Ressalta-se a interdependência das estratégias indígenas com o marco jurídico e os regulamentos do Estado nacional, bem como com seus programas e políticas públicas. Ao serem tratados os elementos importantes da dimensão política para a gestão territorial das Terras Indígenas, são destacadas as políticas indígenas, sua estrutura política e seus papéis, e as políticas indigenistas, as políticas públicas no contexto do marco institucional oficial da relação entre o Estado e os povos indígenas. Quanto às políticas indígenas, são trabalhadas as noções de movimento indígena, organizações indígenas, lideranças tradicionais e lideranças políticas contemporâneas. No que se relaciona às políticas indigenistas, são discutidas as questões da participação/governança indígena, da educação e da saúde indígena, dos direitos sociais e da sustentabilidade - temas amplos e complexos que demandam discussões participativas e mais aprofundadas com os próprios povos indígenas. Por fim, é novamente explicitada a importância das questões territorial, ambiental e econômica para a gestão territorial de Terras Indígenas, relembrando-se, à guisa de conclusão, da necessidade de integração dessas diferentes esferas para a plena efetivação de uma gestão territorial e ambiental de Terras Indígenas, citando-se novamente a PNGATI como uma política promissora e estratégica para auxiliar na conquista desses objetivos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2016
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