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WATEAU, Fabienne. 2014. "Querem fazer um mar...". Ensaio sobre a barragem de Alqueva e a aldeia submersa da Luz. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais. 184pp.

WATEAU, Fabienne. 2014. "Querem fazer um mar...". Ensaio sobre a barragem de Alqueva e a aldeia submersa da Luz. . . Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 184pp.

Pensado à luz dos debates políticos e acadêmicos relativos às barragens no Brasil, "Querem fazer um mar", livro da pesquisadora francesa Fabienne Wateau, oferece certamente um desvio de perspectiva interessante. É esta chave comparativa, portanto, o que orienta esta resenha.

Wateau é pesquisadora do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) e professora na Universidade de Paris Ouest Nanterre la Défense e no Museu do Quai Branly, também em Paris. Ela trabalha há mais de 20 anos em Portugal, investigando os conflitos e as políticas em torno da gestão da água e buscando considerar estes últimos a partir dos processos e das interfaces que articulam suas dimensões locais, nacionais e globais. É no contexto de tal trajetória que emerge a obra em questão, fruto de uma colaboração de Wateau com o Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa - órgão que é responsável também pela publicação do livro. Aí, ela examina como a construção da barragem de Alqueva - realizada na virada deste século, no rio Minho, em Portugal - levou ao alagamento e à reconstrução, num outro lugar, de uma pequena aldeia de camponeses.

Para o exame desta situação, a autora dividiu o livro em seis partes, cada uma delas se desenvolvendo a partir de um registro narrativo distinto. Esta diversidade é tematizada já no prefácio, cujo título - "Escrita e Antropologia" - sinaliza a preocupação de Wateau em fazer do livro "uma empresa experimental, uma outra forma de escrever antropologia" (:21). Pode-se argumentar que nesta disciplina tais esforços experimentais não são tão incomuns como sugerido. De qualquer forma, no que diz respeito ao tema das barragens, esforços dessa natureza são sim uma raridade, como veremos a seguir.

A "Introdução", segunda parte do livro, se inicia com uma breve história dos efeitos sociais e ambientais ocasionados pelas barragens ao longo do século XX. O caráter panorâmico desta discussão se justifica pela intenção da autora de contrapor a "universalidade" de tais empreendimentos (e dos conflitos por eles produzidos) à "singularidade" (:23) do que se passou em Alqueva - e a discussão deste caso responde pelas páginas restantes dessa introdução. Para Wateau, essa "singularidade" evoca sobretudo o que Mauss chamou de cores e sabores locais, ou seja, os traços e as dinâmicas constituintes dos grupos e das situações que são objeto de interesse do etnógrafo. Da nossa perspectiva, porém, há outra possibilidade, mais fecunda, de conceber a "singularidade" deste caso: pela ênfase no fato de que este empreendimento foi construído na Europa, num momento em que a "contestação antibarragens" (:55) já havia deixado marcas indeléveis no cenário político e intelectual deste continente. A própria Wateau reconhece, en passant, que o contexto que estudou é bastante diverso daquelas situações presentes na literatura internacional sobre barragens, envolvendo sobretudo países do Terceiro Mundo e deslocamentos populacionais muito maiores (não chegam a 400 os reassentados pelo projeto de Alqueva, mesmo sendo este o maior lago de barragens existente na Europa).

Em toda esta introdução prevalece o que poderíamos chamar de um olhar sociológico, que privilegia uma análise relativamente abstrata das dinâmicas econômicas, políticas e sociais em torno da barragem. A autora investe deliberadamente neste olhar distanciado também com o objetivo de radicalizar o contraste entre ele e o registro prevalecente nas páginas seguintes. Ela nos convida então para "mudar de escala", para que possamos "conhecer o ponto de vista dos habitantes" (:53) da aldeia afetada.

É na seção seguinte - "Querem fazer um mar. Teatro" - que se evidenciam os experimentos formais anteriormente evocados. Wateau afirma se inspirar n'As Lanças do Crepúsculo, de Philippe Descola, e no Aramis, de Bruno Latour, para construir um relato híbrido: no seu caso, os dados etnográficos serão apresentados na forma de uma peça teatral em três atos. Os objetivos declarados de tal procedimento são "deixar a palavra às pessoas" e, ao mesmo tempo, "contar uma mesma história a partir de vários pontos de vista, de vários interlocutores" (:18) - aí se fazendo presente também a influência da antropologia americana pós-moderna dos anos 80.

Arrisco-me a dizer, porém, que são outras as razões que fazem este projeto experimental bem sucedido e relevante. Em primeiro lugar, há a questão do excesso de informação (ou "dados") com que se depara o pesquisador em campo, e o correlato problema de sua apresentação. Ainda que não explore a fundo este ponto, Wateau parece de alguma forma ciente dele, até mesmo porque inicia seu livro se perguntando: "Como dar a conhecer a história de uma barragem, de uma aldeia [...] de um projecto que levou mais de 80 anos a ser realizado? Como sintetizar e dar coerência a 15 anos de frequência muito regular do terreno [...]?" (:17). Que o problema se coloque de forma equivalente em outros campos de estudo, isto não nos interessa aqui. O ponto a ser destacado é o modo como tal "excesso" se faz presente para o estudioso das barragens, e a forma como é por ele trabalhado. É aí que está a principal qualidade do livro, e onde reside seu potencial interesse para o debate acadêmico brasileiro sobre o tema - no qual a preocupação com o trabalho político de denúncia e visibilização parece desestimular o reconhecimento dos desafios epistemológicos, metodológicos e etnográficos colocados por situações tão complexas e multifacetadas como essas.

Pois a autora deixa evidente, em inúmeras passagens, a "enorme mediatização" (:18) caracterizando o universo estudado - e com este termo ela evoca não meramente o trabalho da imprensa, mas a gigantesca produção de signos (textos, imagens, vídeos, documentos das mais diversos ordens etc.), em quaisquer meios de comunicação, levada adiante por uma infinidade de agentes. Ao invés de ignorar, não reconhecer ou se deixar confundir por essa profusão de discursos e meios, Wateau consegue se servir dela a seu favor. Ela constrói então cada cena de sua peça de teatro a partir de imagens disponíveis, registradas em vídeo por ela ou por terceiros. Produzindo antropologia a partir destes materiais, o trabalho da autora estimula a reflexão sobre outro ponto nevrálgico (também entre nós pouco trabalhado) da discussão a respeito das barragens: justamente aquele que diz respeito ao funcionamento das ciências sociais atuando e sendo produzidas nestes contextos.

Na seção seguinte àquela em que nos é apresentada a peça de teatro - "Retratos atualizados dos personagens" - Wateau nos conta sobre a situação atual das pessoas que aparecem no filme, dez anos após as filmagens e ao processo de realocação. Manifesta-se aí com especial significado aquela "singularidade" de que falávamos anteriormente. Há sim algo de "universal" (:150) nos sofrimentos e nas dificuldades enfrentados por aqueles obrigados a abandonar suas casas e aldeia; muitos adoecem de tristeza, e as promessas de desenvolvimento e emprego se revelam quase sempre, como em todo canto, um logro. O que há de raro e inusitado na barragem de Alqueva, no cotejo com outros casos, é o modo relativamente respeitoso com que a população é tratada, e a atenção com que é construída a nova aldeia. A autora sinaliza que este é, provavelmente, o último projeto desta natureza construído em solo europeu. Sua afirmativa de que uma barragem não corresponde "a uma infraestrutura ideologicamente aceitável nos nossos dias" (:41) deve então ser mais bem situada: tais infraestruturas não são aceitáveis na Europa; e se não são aceitáveis ali é porque o são alhures. A quase óbvia conclusão a ser tirada deste ponto não está presente no livro (no que não podemos criticar tanto a autora; é esta resenha que está orientada por um viés comparativo). Como bem evidenciam conceitos como o de "racismo ambiental", as consequências negativas de empreendimentos como as barragens tendem a reproduzir os padrões de desigualdade já existentes, atingindo especialmente minorias, grupos subalternos ou - no plano internacional - países do sul. Se estas barragens são cada vez mais raras na Europa é também porque, a partir dos anos 70 e justamente em função da consciência crescente de seus malefícios, estes projetos passaram então a ser exportados - juntamente com as indústrias sujas e eletrointensivas que os acompanham - para o Terceiro Mundo.

Na seção seguinte, "A partir dos bastidores", temos mais uma mudança de escala, que nos aproxima novamente daquele olhar mais distanciado e sociológico. Somos informados deste "contexto mais geral" organizando a peça de teatro e seus "três grandes temas" (:125): o deslocamento compulsório da população e a construção da nova aldeia; as políticas de gestão da água na escala nacional e internacional, sobretudo no que diz respeito a projetos de irrigação (a despeito de sua discussão neste trecho do livro, este é um tema que pouco aparece anteriormente); e a difusão de mecanismos de participação pública no processo de construção da barragem e definição do destino dos atingidos.

Por fim, a "Conclusão" retoma a preocupação de Wateau com as representações e os discursos sobre o empreendimento. Uma primeira mirada diacrônica havia sido oferecida pelos "retratos atualizados" dos personagens; já nestas últimas páginas, as transformações são apresentadas via um apanhado das notícias de jornais relativas a Alqueva desde o término de sua construção até 2013.

O livro de Wateau pode parecer ingênuo para os que advogam o imperativo de uma perspectiva crítica, que argumentariam então que o caso considerado é pouco representativo e por isso desinteressante. Por outro lado, este obra se abre para preocupações e inovações formais e metodológicas inusuais, também por isso bem vindas. Diante destas constatações, resta a questão de saber até que ponto, ou como, seremos capazes, nos debates sobre as barragens, de conciliar aquela perspectiva crítica com essas preocupações e inovações.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016
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