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"Coleção Aulas Inaugurais". 2016. Projeto Nova Cartografia Social. Edição Alfredo Wagner Berno de Almeida. Organização: Patrícia Maria Portela Nunes, Maria Consolação Lucinda, Cynthia Carvalho Martins, Camila do Valle e Alfredo Wagner Berno de Almeida. Rio de Janeiro/ São Luís: Casa 8.

Coleção Aulas Inaugurais. 2016. Projeto Nova Cartografia Social. Almeida, Alfredo Wagner Berno de. Nunes, Patrícia Maria Portela; Lucinda, Maria Consolação; Martins, Cynthia Carvalho; Valle, Camila do; Almeida, Alfredo Wagner Berno de. Rio de Janeiro: São Luís: Casa 8

Formulada no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Cartografia Social e Política da Amazônia da Universidade Estadual do Maranhão (PPGCSPA-Uema), a "Coleção Aulas Inaugurais" constitui uma iniciativa pedagógica inovadora no âmbito do ensino da pós-graduação no país. Ao conjugar as aulas inaugurais propriamente ditas com o memorial dos seus autores, a coleção amplia suas possibilidades de leitura e permite aos estudantes uma dupla aproximação com a pesquisa e a trajetória institucional e pessoal de pesquisadores estabelecidos. A leitura das aulas possibilita a introdução aos temas das ciências sociais, a releitura de trabalhos consagrados e a interposição de novas questões a pesquisas concluídas, enquanto o memorial proporciona uma leitura transversal do campo científico por meio de suas redes de relações políticas, sociais e afetivas estabelecidas ao longo do tempo. A interlocução entre a aula inaugural e o memorial constitui a possibilidade da leitura crítica da produção acadêmica, das circunstâncias sociopolíticas e do campo científico por meio do qual esses autores constituíram seus trabalhos e instituições.

Fundado em 2013, o PPGCSPA-Uema foi um desdobramento das ações de pesquisa e ensino realizadas pelo Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA) e pelo Grupo de Estudos Socioeconômicos da Amazônia (Gesea). Voltada para a aproximação entre pesquisa e formação dos movimentos sociais, a interlocução entre o PNCSA e o Gesea implementou em 2008 o curso de especialização "Sociologia das Interpretações do Maranhão", cujos estudantes foram integrantes dos diferentes movimentos sociais, filhos e filhas de quilombolas, quebradeiras de coco babaçu, pescadores e indígenas. Buscando ampliar essas ações, foi encaminhada a proposta de criação do PPGCSPA em parceria com a Universidade Estadual do Maranhão e o Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Minas Gerais. O conjunto de pesquisadores convidados a participar das aulas inaugurais do PPGCSPA diz respeito à rede de pesquisadores relacionados ao corpo de interesses acadêmicos do programa.

Até o momento a coleção conta com três aulas inaugurais. O primeiro volume corresponde à aula de Otávio Velho, antropólogo, professor emérito da UFRJ e presidente de honra da SBPC. O texto "Revisitando as Frentes de Expansão" propõe a releitura de uma de suas obras de referência, o livro Frentes de Expansão e Estrutura Agrária: Estudo do Processo de Penetração numa área da Transamazônica, desdobramento de sua dissertação de mestrado em Antropologia Social. O segundo, a aula ministrada por Heloisa Bertol Domingues, historiadora da ciência e diretora do Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast). Sua contribuição, "A História das Ciências e os Saberes na Amazônia (século XIX e XX)", busca refletir sobre seu projeto de pesquisa acerca das relações entre ciências e saberes tradicionais. E o terceiro, "Memória e Transformação Social", de José Sérgio Leite Lopes, antropólogo, professor titular do Museu Nacional/UFRJ e diretor do Colégio Brasileiro de Altos Estudos na mesma instituição, revisita trabalhos anteriores e desvela interessantes conexões entre memória e transformação social. No prelo, constam as contribuições do economista Henri Acselrad, professor do Ippur/UFRJ, e do antropólogo João Pacheco de Oliveira, professor titular do Museu Nacional /UFRJ, a serem lançadas em breve.

O conjunto das aulas inaugurais publicadas corresponde a esforços analíticos empreendidos sobre diferentes momentos das trajetórias acadêmicas dos seus autores. E dada a inegável importância dos autores nos seus respectivos campos, o projeto editorial justificaria por si só o empreendimento realizado. Cabe, contudo, observar algumas implicações que a sua realização provoca na atualidade ao possibilitar uma leitura não convencional do campo científico. Por isso, mais que explorar as particularidades de cada trabalho, gostaria de destacar alguns pontos que configuram a singularidade do projeto editorial até então apresentado. O primeiro diz respeito à articulação de uma rede institucional multissituada com o claro objetivo de formação de novos quadros. Além das instituições diretamente vinculadas ao projeto editorial (Uema, UFMG e UEA/Projeto Nova Cartografia Social), aparecem no conjunto das articulações o Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN/UFRJ), o Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast) e a Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC). Na produção do material vinculam-se pesquisadores consagrados no campo e jovens pesquisadores que buscam fomentar novas ações de pesquisa e ensino cumprindo assim com os pilares da atuação acadêmica - a articulação entre pesquisa, ensino e extensão, além da renovação crítica dos quadros de pesquisa e ensino.

Um segundo ponto diz respeito à produção de uma determinada leitura do campo intelectual, com destaque para o trabalho de campo como uma ação pedagógica. Aqui se trata de perceber como as trajetórias analisadas e as experiências revisitadas permitem aos estudantes reconhecer a permanência da etnografia como um valor em si mesmo. Otávio Velho, revisitando o seu livro, chega a mencioná-lo como um "documento histórico", retrato de uma época de pesquisa, ao mesmo tempo em que produziu uma memória sobre o movimento analisado. José Sérgio Leite Lopes menciona como o seu material de pesquisa foi reapropriado pelas gerações mais novas, filhos dos antigos operários, para a construção de suas histórias locais. E, por meio da trajetória de Heloisa Bertol Domingues percebemos como os atos de pesquisa envolvem a organização e a sistematização de acervos e instituições, possibilitando o desenrolar de novas pesquisas e interpretações.

Noutro plano, a leitura do conjunto de depoimentos nos leva a compreender os diferentes níveis em que a produção do conhecimento no Brasil foi afetada pelo regime político estabelecido entre 1964 e 1985. Nessa linha, aparecem deslocamentos, cortes e supressões de trabalhos, traumas e construção de redes de solidariedade. Enquadrado por esse contexto é possível notar como a Antropologia se constituiu em uma saída possível à perseguição mais direta às ciências sociais e ao fechamento de seus centros de formação, ao mesmo tempo em que se tornou um espaço de fortalecimento e investigação das frentes democráticas que permaneceram durante a ditadura (tais como os sindicatos, as associações campesinas, a atuação indígena). Nesse período, aparece o trabalho coletivo de salvaguarda e produção de arquivos institucionais, a criação de programas de pós-graduação, a formação de novas instituições e ainda o fortalecimento de instituições não acadêmicas, mas ligadas diretamente às pesquisas dos envolvidos, como os sindicatos e os museus, que permitiram o desenvolvimento das ciências no Brasil. Esse viés de leitura dos trabalhos mostra um interessante trânsito entre pesquisas e momento político vivenciado.

Outro aspecto de trânsito presente nos trabalhos diz respeito ao diálogo entre museus e os Programas de Pós-graduação. No caso da Antropologia, a passagem se deu do museu para Programas de Pós-graduação, enquanto na História da Ciência o caminho foi inverso - com o fortalecimento do Museu de Astronomia como um espaço de ensino, pesquisa e salvaguarda da memória científica brasileira, como indicado por Heloisa Bertol Domingues. Nesses trânsitos aparece ainda a atuação das agências de fomentos, como a Comissão de Aperfeiçoamento de Ensino Superior (Capes), o Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq), a Federação das Indústrias de Pesquisa (Finep) e a Fundação Ford, além das interlocuções entre áreas distintas dos saberes.

Conhecimentos provenientes dos domínios da Antropologia, Economia, Sociologia, Filosofia, História da Ciência e História Cultural foram combinados pelos autores para a abertura de novas frentes de pesquisa e de atuação profissional. Essa dimensão permite aos estudantes descortinarem o conhecimento como algo situado, processual e transdisciplinar, bem longe das amarras conceituais que tão fortemente prejudicam a compreensão e a interpretação dos processos sociais. A generosidade com que os autores analisam suas trajetórias possibilita visualizar como esse foi um trabalho coletivo do qual tomaram parte em decorrência das circunstâncias da época. Escapa-se do mito individualista do trabalho científico que nada acrescenta à formação dos jovens pesquisadores.

Ainda sobre os enfrentamentos explicitados na coleção, a revisitação das frentes de pesquisa orientadas pelas demandas contemporâneas sociais traz o entendimento de que aquilo de que se trata aqui não diz respeito ao passado, mas sim a uma ação contínua. Os autores se voltam para os seus trabalhos, analisando-os criticamente e, nesse processo, percebemos como os seus interlocutores também demandam a partir deles novas agendas de pesquisa na contemporaneidade, além do reforço do papel social do pesquisador e do compromisso com o seu universo de pesquisa. A dimensão transdisciplinar volta a ser abordada não apenas como uma característica decorrente da formação inicial dos pesquisadores, mas como resultante do esforço de compreensão e produção de análise dos objetos. Esse movimento não estanca no tempo, ao contrário, alcança ainda novos horizontes em face das demandas dos grupos e da disposição dos pesquisadores em atendê-las.

A produção do filme documentário Tecido Memória (2009) por José Sérgio Leite Lopes a partir do material acumulado demonstra como os rumos da pesquisa podem ser surpreendentes e inventivos, mesmo quando diante de um trabalho consolidado. Ou, ainda, o trabalho de Heloisa Bertol Domingues sobre a Rede de Museus Vivos da Amazônia, que revisita as relações entre ciência e política agora sob um novo viés, o da biopirataria. Esse movimento permite uma desnaturalização radical dos arquivos institucionais, ao mesmo tempo em que convoca os novos quadros a tomar parte das discussões mais recentes acerca da produção do conhecimento. Em realidade, o esforço de memória desses autores sobre suas trajetórias individuais nos apresenta o trabalho empreendido na construção de parte do atual campo de pesquisa.

Cabe destacar ainda a escolha editorial pela ampla difusão dos conteúdos aqui analisados, disponibilizando os volumes on-line, para download gratuito e em sua totalidade (http://novacartografiasocial.com/livros/colecao-aulas-inaugurais/). Essa escolha constitui uma ação importante para a divulgação dos conhecimentos produzidos, favorecendo sua incorporação em diferentes espaços de formação, notadamente nos períodos iniciais dos cursos de formação em ciências humanas. Embora o conjunto até aqui apresentado tenha se centrado no eixo sudeste do Brasil, com pesquisadores vinculados a instituições desta região, e em conexões internacionais (notadamente França e Inglaterra), o conhecimento por eles produzido diz respeito à região Amazônica, à região Nordeste e mesmo à formação do "pensamento social brasileiro". Sua difusão, portanto, dialoga não somente com os objetivos do PPGCSPA/UEMA, mas com um conjunto muito mais amplo de instituições de ensino e pesquisa. A leitura dos trabalhos apresentados permite algumas inferências sobre as conexões entre produção científica, condições políticas e econômicas, institucionalização das ciências e expansão do campo científico no Brasil, tornando-se obrigatória para iniciantes e iniciados.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016
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