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A Antropologia dos restos e o inventário das perdas

DEBARY, Debary. . Antropologia dos restos: da lixeira ao museu. Pelotas: UM2, 2017. 136 pp.

Antropologia dos restos: da lixeira ao museu é uma tradução publicada em 2017 de artigos avulsos de Octave Debary, “Maître de conférences” da Universidade Paris V, Sorbonne, na França. O autor, que também se apresenta como Membro do Laboratório de Pesquisa do Instituto Interdisciplinar de Antropologia do Contemporâneo (LAHIC), prepara a versão em francês do livro somente para 2019. Neste momento em que o Brasil inventaria suas perdas patrimoniais com o incêndio de seu primeiro museu e as tentativas de desmantelamento do Instituto Brasileiro de Museus, nada mais oportuno que se debruçar sobre este trabalho, ao qual, por iniciativa da professora Letícia Marzzucchi Ferreira, da Universidade Federal de Pelotas, tivemos acesso antes dos franceses. Malgrado o caráter de coletânea cunhado pelo autor, o livro se apresenta como uma obra estruturada, em que os capítulos se sucedem como camadas de prospecção a respeito do tema dos restos.

O prefácio de Philippe Descola sublinha o percurso singular de Debary, que se detém

nos traços, intencionais ou fortuitos, que o trabalho coletivo da memória deposita nas coisas - principalmente nos museus e nos monumentos, mas também nos resíduos, nas peças de mercados de usados, em todos os destroços que ficam à deriva em zona periférica de nossa vida cotidiana, tornando-se um especialista do que ele graciosamente denomina de uma Antropologia dos restos, de tudo o que subsiste quando a ação é concluída e são apagadas as lembranças daquilo que havia sido realizado (:6DEBARY, Debary. Antr opologia dos restos: da lixeira ao museu. Pelotas: UM2, 2017. 136 pp.).

Para tal, parece ter contribuído significativamente sua passagem pelo Ecomuseu do Creusot, oportunidade de contato com a musealização se não do banal, como aponta Descola, mas do cotidiano, ao passo que a França mantém a tradição dos museus como templos de erudição. É assim, de acordo com Descola, que Debary constrói “uma antropologia dos interstícios”, em que o autor reconhece que aprendeu a se distanciar permanecendo no lugar.

O livro conta ainda com apresentação de Marzzucchi Ferreira, um texto introdutório “A arte de acomodar os restos”, e mais seis capítulos, além de referências e biografia.

Os capítulos se encadeiam de uma maneira lógica e quase seguindo uma cadeia operatória, construindo uma obra densa, com partes bem acomodadas. A versão em português necessitaria, entretanto, de uma revisão para uma 2ª edição mais aprimorada.

Em A arte de acomodar os restos o autor introduz suas reflexões sobre a dificuldade em separar Antropologia e História, enquanto, ao retomar esses textos, realiza um mergulho autobiográfico estranho ao condicionamento do antropólogo de pensar sempre em um coletivo exterior a si. O que dá liga a esta produção é o “interesse por esses objetos que ultrapassaram os limites de seus usos originais, significando uma passagem em outro tempo, retornando a habitar no presente” (:18DEBARY, Debary. Antr opologia dos restos: da lixeira ao museu. Pelotas: UM2, 2017. 136 pp.)

A obra toma menos o objeto como presença e mais como resto (sem opô-los): aquilo que resistiu ao desaparecimento por meio de diversos processos, como a reciclagem ou o poder de dar novos usos; as “vendas de garagem” ou brechós, que permitem transmiti-los; o teatro, em que são encenados; a arte, que os transforma em algo novo; o patrimônio, que ilumina a recusa da perda; ou os museus, que o autor associa à nossa necessidade de confiná-los. Ao investigar todas estas nuances possíveis da segunda existência dos objetos do lixo ao museu, Debary lida transversalmente com a memória como “arte da recuperação, da reciclagem, da reutilização”.

No capítulo 1, “Da lixeira à fábrica”, somos levados ao Ecomuseu do Creusot, gerado pela conversão da cidade de “passado industrial em presente patrimonial” (:23DEBARY, Debary. Antr opologia dos restos: da lixeira ao museu. Pelotas: UM2, 2017. 136 pp.). Ali, a antiga indústria metalúrgica dos Schneider foi transformada, nos anos 1970, em uma experiência decerto mais conhecida no Brasil pelos profissionais do campo da Museologia que da Antropologia. O declínio da indústria, a transferência dos seus bens para a municipalidade e, finalmente, a saída da família do Creusot criaram as condições para a proposta inovadora de um museu com foco narrativo na história da classe operária e não em coleções. Assim, surge a identificação de ecomuseu: “longe de ser um detalhe semântico, essa dimensão ecológica responde a um verdadeiro trabalho de reciclagem cultural da história” (:27DEBARY, Debary. Antr opologia dos restos: da lixeira ao museu. Pelotas: UM2, 2017. 136 pp.).

Em paralelo, o pesquisador, imerso na comunidade do Creusot dos anos 1990, se vê às voltas com os desafios da coleta seletiva do próprio lixo e a luta contra o acúmulo. Visita a usina de tratamento de resíduos domésticos, entrevista usuários e reflete sobre a bricolagem como gesto de apropriação (:33). O que Debary não registra é que, ao contrário do ecomuseu, modelo bastante experimental e provocativo, o restante da história dos museus é feita de acumulação, nem sempre ativa, muitas vezes passiva diante de doações e outras formas desordenadas de ingresso, o que faz de cada museu um bricoloeur.

O capítulo “Os mercados da memória” aborda a circulação dos objetos por mercados de segunda mão, como brechós, mercados de pulgas ou vendas de garagem. Observa o fato de o domingo ser o dia mais frequente para estas vendas pois, na lógica cristã, não é dia de fabricar riquezas, mas são permitidas estas ações mais associadas a um sentido de permanência, passagem, quase ressureição. Trata-se, para o autor, de processos de transmissão, não exatamente de comércio, segundo uma nova lógica utópica e ecológica de uma vida sem excessos e sem restos.

O pano de fundo para o capítulo “O teatro dos objetos” é a obra do diretor Roland Schön. Para ele, o museu tem potenciais inexplorados que o afetam desde as primeiras visitas da infância, quando os objetos revelaram a ausência das pessoas. Debary destaca o teatro contemporâneo como espaço do jogo, com um alto grau de imprevisibilidade que é também liberdade, e no qual os objetos (novos ou usados) vêm para o primeiro plano. O texto reflete especialmente sobre os “objetos pobres”, precários, ordinários, descartáveis, destinados a se tornarem obsoletos e a desaparecerem, mas que são ressignificados, ganham uma segunda vida por meio de um teatro que explora seu potencial narrativo e memorial (:57DEBARY, Debary. Antr opologia dos restos: da lixeira ao museu. Pelotas: UM2, 2017. 136 pp.).

Os objetos são provas de que algo aconteceu, mas as narrativas que eles evocam podem nem sempre ser reais. Na ficção de Schön, o público é convidado a uma visita às avessas ao Museu de Artes e Ofícios de Paris. O museu se torna cenário de uma peça oblíqua, que realça exatamente o que é silenciado e invisibilizado no cotidiano da visitação ao museu.

A arte provoca Debary, que a ela dedica mais um capítulo, agora sob a forma de artes visuais, performáticas. A arte da semelhança aborda um tipo especial de obra de arte, pois se interessa pela supressão, encobrimento e desaparecimento do objeto: a obra independe de objetos e do espaço dos museus, ela ocupa ou atravessa outros espaços. O centro da prática artística é a ideia, que nos depara com o efêmero e com o sabor da experiência.

Debary se utiliza dessas obras de arte para falar de memória, lembrança, ausência e esquecimento, provocando o leitor com o seguinte contraponto à ideia de que o monumento nos retira o dever de lembrar: É preciso fazer monumentos e objetos que se fragilizam a ponto de terem de ser refeitos e reinterpretados. É neste refazimento que se transmite saber e história (:73DEBARY, Debary. Antr opologia dos restos: da lixeira ao museu. Pelotas: UM2, 2017. 136 pp.). Assim, apresenta obras em que o trabalho é o inventário, feito após o desaparecimento dos objetos. Ao pretender nos levar a refletir sobre restos no sentido do traço deixado pela experiência vivida, Debary nos dá a mão para atravessar este momento crucial da memória e do patrimônio no Brasil, após a perda que se abateu em nosso Museu Nacional.

No quinto capítulo, “Do patrimônio ao museu”, aparece uma metáfora que é cara ao autor: a postura patrimonial e museal repousa sobre a gestão dos restos (:85DEBARY, Debary. Antr opologia dos restos: da lixeira ao museu. Pelotas: UM2, 2017. 136 pp.). Após o banquete, o consumo de riquezas acumuladas para a festa, a maneira de lidar com os restos revela três possíveis perfis:

A ligação com o presente fará com que alguns queiram lançar tudo fora, enviar para a lixeira, tudo esquecer, tudo sacrificar. Outros, preocupados com o futuro, irão preferir fazer uma triagem antes de se desvencilhar dos restos, tendo em vista uma possível reciclagem. Outros, ainda, mais inquietos, darão ênfase à tendência de conservar e, assim, guardarão o que sobrou (:85DEBARY, Debary. Antr opologia dos restos: da lixeira ao museu. Pelotas: UM2, 2017. 136 pp.).

Pensar sobre o futuro, portanto, não é guardar tudo (aprendam, museus!), é selecionar, fazer escolhas. É a definição cumulativa de História que junta dois aspectos do comportamento em face dos bens que tentam se excluir reciprocamente criando tabus entre os mundos da economia/desenvolvimento e da memória coletiva: de um lado, a acumulação de excedentes (capitalização), de outro, a conservação dos restos (patrimonialização) (:97DEBARY, Debary. Antr opologia dos restos: da lixeira ao museu. Pelotas: UM2, 2017. 136 pp.). Os restos lembram aquilo que desapareceu. A acumulação/superlotação é “desumana” e leva a um sentimento de fastio em relação aos museus

Chegamos a “Objeto como resto”. Em diálogo com Miller, Appadurai e Kopytoff, Debary se debruça sobre a vida social das coisas e questiona a dicotomia sujeito/objeto, centrando seu interesse no poder do objeto de significar a passagem que ele representa ao se transfigurar e se decompor. Retoma de Mary Douglas a noção de impureza, que impõe a separação dos restos como rito de purificação. O resíduo como um perigo (de contaminação) afirma a cultura por ser seu oposto: “tudo o que não é resíduo tem seu valor” (:108DEBARY, Debary. Antr opologia dos restos: da lixeira ao museu. Pelotas: UM2, 2017. 136 pp.). Mas os resíduos também possuem valor arquivístico, permitem conhecer padrões de consumo e modos de vida e, segundo os defensores da Garbologia e da Sociologia dos resíduos, com mais sinceridade que outros testemunhos. A redução dos resíduos está longe de significar o “fim da morte das coisas”.

Referência

  • DEBARY, Debary. Antr opologia dos restos: da lixeira ao museu Pelotas: UM2, 2017. 136 pp.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2018
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