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VARELA, Sergio Gonzáles. Power in Practice: the paradigmatic anthropology of Afro-Brazilian Capoeira

VARELA, Sergio Gonzáles. . Power in Practice: the paradigmatic anthropology of Afro-Brazilian Capoeira. New York: Berghahn, 2017. 166 pp.

Expressões como corpo fechado, malandragem, manha, malícia, mandinga são categorias que não se limitam apenas ao universo da Capoeira Angola, mas dialogam diretamente com questões que remontam à identidade nacional brasileira. Estas categorias compõem o universo cosmológico dos capoeiristas e permitem a realização da contiguidade entre a arte marcial afro-brasileira e o Candomblé. Estas são apenas algumas questões que encontramos no livro de autoria de Sergio González Varela intitulado Power in Practice the paradigmatic anthropology of afro-brazilian CapoeiraVARELA, Sergio Gonzáles. Power in Practice: the paradigmatic anthropology of Afro-Brazilian Capoeira. New York: Berghahn, 2017. 166 pp..

A principal questão da pesquisa é como determinados mestres e mestras de Capoeira Angola recebem o reconhecimento por serem detentores de poder que, neste caso, se manifesta no corpo do lutador e é legitimado pela Comunidade de Capoeira Angola. Em sua pesquisa, Varela evidencia a relação entre os segredos da capoeira e uma vida de intenso treinamento dos mestres, contramestres e capoeiristas. Para isto, o texto dialoga com a Antropologia do Corpo através de intelectuais que já se tornaram referência nos estudos sobre a Capoeira no Brasil e no mundo. A novidade do livro do professor de Antropologia da Universidad Autónoma de San Luis de Potosí é a possibilidade de realizar uma etnografia que vise à compreensão do corpo como receptor do reconhecimento de poder em meio à Comunidade de Capoeira Angola. Neste quesito, as categorias como corpo fechado e mandinga são apresentadas pelo autor como uma “cosmo-práxis”, ou seja, como técnicas que se manifestam através do corpo dos mestres, porém, não podem ser transmitidas, mas sim conquistadas através de uma vida inteira de treinamento. Esta é a ideia central do trabalho, pois estabelece os limites entre o saber que pode ser transmitido pelo mestre e o domínio dos conhecimentos que devem ser conquistados pelo aprendiz, proporcionando uma relação de complementaridade entre estas duas partes.

Para dar consistência à sua tese, Varela busca entender as apropriações dadas à categoria de poder dentro do universo circunscrito dos angoleiros, enxergando este âmbito como um mundo em si. Para isto, o autor estabelece o recorte sobre a Comunidade de Capoeira Angola, compreendendo esta modalidade como distinta das duas outras: a Luta Regional Baiana e a Capoeira Contemporânea. Este recorte específico é sustentado pela existência de um ethos próprio, além de um código de conduta moral que diferencia a Capoeira Angola das demais, revelando a estratégia do antropólogo para entender esta luta através de um viés holístico, visando explicar este universo por meio de seus “próprios termos, suas próprias regras” (:5, tradução minha).

Para entender a difusão do reconhecimento, a hierarquia e a manutenção do poder dos mestres angoleiros, Sergio González Varela realiza seu trabalho de campo dentro de associações e grupos de Capoeira Angola em Salvador, Bahia, entendendo a relação entre noção do poder e as práticas que compõem o cotidiano dos lutadores. Neste quesito, além das associações, as rodas de jogo são essenciais para a circulação e a legitimidade do poder dos mestres de renome na Bahia e no Brasil. O poder em questão não se limita a uma prática de técnicas corporais presentes na luta, mas também se relaciona com questões transcendentais referidas a uma cosmologia própria que dialoga com o universo do Candomblé. São muitos os casos de mestres famosos que aprofundaram seus conhecimentos relacionados aos mistérios da capoeira ao se inserirem como integrantes de terreiros de renome da Bahia. Outro ponto fundamental apresentado pelo autor é a existência de mestres que, ao se tornarem evangélicos, se esforçam para se distanciar de seus grupos de capoeira da cosmologia do Candomblé.

A pesquisa de campo foi realizada entre os anos de 2005 e 2006 na Bahia. Antes disso, Varela já estava inserido no universo da Capoeira Angola treinando na cidade do México, dando continuidade ao seu estudo na Suécia e na Inglaterra, enquanto realizava seu doutorado na University College London. Foi em sua terra natal que o antropólogo se iniciou nesta arte marcial com um mestre brasileiro: Pedrinho de Caxias. O contato com os capoeiristas brasileiros em workshops realizados nas cidades europeias direcionou Varela à cidade de Salvador, onde seus principais interlocutores foram os mestres Boca do Rio e Valmir, e apontou para a relevância do conceito de poder nos processos de legitimação e reconhecimento dos mestres dentro da Comunidade de Capoeira Angola. Essa vasta experiência de campo permitiu ao autor recolher uma gama de informações que é disposta em dados etnográficos, trabalhados de forma contundente e clara, com uma escrita fluente.

O livro divide-se em seis capítulos e conta com imagens fotográficas e tabelas que corroboram a tese do autor. O fio condutor do texto é a noção de poder e corpo realizado através de um debate entre Antropologia do Corpo e metodologia. E conta ainda com uma discussão sobre o papel do berimbau e sua importância para a cosmologia da Capoeira Angola, somando a isto um aprofundamento sobre a Antropologia dos Objetos.

O primeiro capítulo é intitulado “A luta por reconhecimento: uma breve história da Capoeira Angola em Salvador, Bahia, Brasil” (tradução minha), no qual Varela apresenta um rico levantamento de fontes históricas sobre a capoeira no século XIX e uma recente bibliografia que dialoga com autores brasileiros e internacionais que se tornaram referência no tema como, Matthias Assunção, Lowell Lewis, Greg Downey e Eugênio Soares. Este capítulo não se limita a fazer um apanhado histórico sobre a institucionalização da Capoeira Angola no século XX, mas também problematiza as tensões e as ênfases discursivas acionadas pelos mestres capoeiristas e historiadores sobre as origens africanas desta arte marcial. Ainda se pode encontrar ali a trajetória de muitos mestres angoleiros que, pela sua determinação e coragem, foram capazes de se articular para o processo de institucionalização desta arte marcial.

O segundo capítulo: “Capoeira Angola por si só” (tradução minha), faz um recorte sociológico delimitando as práticas específicas desta arte marcial e as fronteiras estabelecidas pelos seus praticantes e mestres. A ênfase dada a esta modalidade se faz necessária para diferenciá-la dos estilos da Regional e da Contemporânea. Para isto, o autor explora características típicas como a indumentária, tipo de movimentos corporais, musicais, cantos e, principalmente, a relação aluno e mestre dentro da Comunidade de Capoeira Angola. No tocante a esta questão, a categoria nativa linhagem é o referencial para legitimar discursos fundamentados no pertencimento, ancestralidade e tradição.

No terceiro capítulo, “Corpos cosmológicos” (tradução minha), Varela visa esclarecer as mais variadas dimensões que a categoria corpo fechado pode assumir para os capoeiristas. Basicamente, refere-se aos conhecimentos do angoleiro relacionados à proteção do corpo contra ataques físicos e mágicos. A concepção de corpo fechado é entendida como caráter analítico, enquanto uma “cosmo-praxis” que estabelece uma conexão entre a Capoeira Angola e a cosmologia do universo religioso afro-brasileiro.

Varela enfatiza a importância da desconfiança, não como categoria, mas como uma atitude para o treinamento do capoeirista, seja ele iniciante ou mestre, pois este é o caminho utilizado pelo antropólogo para entender um universo em que a máxima é confiar desconfiando. De acordo com os mestres, “a expectativa de que um ato de traição será executado por um líder ou por um estudante dentro da academia de Capoeira faz parte do processo de aprendizado sobre a capoeira e uma lição importante para a vida em geral” (:85, tradução minha). A constante presença da possível traição faz com que o corpo fechado se torne uma estratégia fundamental para a proteção física e moral do capoeirista.

O quarto capítulo: “Mandinga: a criação de pessoas poderosas” (tradução minha), desenrola-se com o relato de uma experiência etnográfica em que o antropólogo foi pego pela mandinga do mestre Valmir em uma roda de jogo. Varela propõe entender a manifestação do poder dos mestres e mestras através das suas práticas e performances corporais, operando por meio da elaboração da categoria analítica que o autor denomina de “antimetafísica do poder” que, em resumo, é a “primazia da evidência empírica do corpo como uma inquestionável prova de autoridade dos mestres” (96, tradução minha).

Ainda nesta parte do texto, há o aprofundamento do debate para a diferenciação das categorias malandro e mandinga e sua importância para o universo da Capoeira Angola. A mandinga não seria uma técnica passível de ensinamento, seria algo que o capoeirista avançado ou mestre descobriria sozinho após anos, ou até mesmo décadas, de treinamento e realização de jogos. Para Varela, a descoberta da mandinga é um fator fundamental para a transformação do capoeirista em mestre e a sua legitimação como sujeito poderoso. Tal como corpo fechado, a categoria mandinga “encontra-se no entrecruzamento das ações corporais e das percepções do Candomblé” (:102, tradução minha), sendo a mandinga uma forma de axé que se manifesta na capoeira. A mandinga não se limita apenas às técnicas corporais utilizadas no jogo, mas também se estende aos mestres e contramestres tocadores de berimbau que, no momento de seus toques, estariam fundindo seus corpos ao instrumento e emanando sua magia.

O quinto capítulo, “Violência lúdica e a ambiguidade do engodo” (tradução minha), demonstra a dinâmica de um jogo em que não há regras inscritas. Na roda de capoeira o mestre é o juiz e é ele quem julga o que é ou não válido dentre as posturas assumidas pelos capoeiristas. Nesta parte do texto, o principal debate é a relação entre a brincadeira e a violência na roda de Capoeira Angola. Varela busca a resposta em um código de conduta moral assumido pelo capoeirista e inserido em uma lógica própria desta arte marcial e que só seria compreendido após anos de treinamento e se manifestaria pelo autocontrole corporal. As categorias que se tornam alvo de análise são malícia, manha e malandragem que, assim como a mandinga, não podem ser ensinadas, mas são aprendidas pelo capoeirista após anos de prática.

O último capítulo, “Como instrumentos musicais tornam-se pessoas, o poder da materialidade” (tradução minha), tem como principal sujeito de análise o berimbau e sua agência na roda de Capoeira Angola. Varela é amparado por uma vasta bibliografia antropológica sobre materialidade, com Arjun Appadurai, Bruno Latour, Marceu Mauss, Daniel Miller, Marlyn Strathern, dialogando mais diretamente com Roy Wagner. O texto inicia-se mostrando o quanto este instrumento está envolto de uma agência discursiva pelos mestres e pesquisadores, manifestando-se nas várias narrativas míticas que remetem a uma ancestralidade africana. Porém, Varela propõe analisar o quanto essas experiências discursivas são importantes para a autoafirmação do berimbau como manifestação da africanidade nas academias de Capoeira Angola.

Este instrumento musical é importante para a regência dos corpos dos capoeiristas dentro do jogo, quando o mestre torna-se juiz e regente junto ao berimbau. O instrumento “condensa todas as conotações simbólicas relacionadas à ancestralidade da capoeira, ao passado mítico, e à tradição, há um fluxo de energia ou espiritual que o torna um sujeito ou uma pessoa” (:139, tradução minha). Em suma, é através do toque do berimbau que se manifesta o fluxo que relaciona o presente das rodas de jogo e o passado incorporado pela ancestralidade africana, e os mestres fazem esta conexão por meio de suas músicas e cantos.

Para finalizar, Power in Practice discute categorias - corpo fechado, mandinga, malandragem - que remetem a uma identidade brasileira marginal. Os valores afro-brasileiros presentes tanto nesta arte marcial quanto na cosmologia do Candomblé apresentam-se inversamente proporcionais aos da classe média baiana, revelando a Capoeira Angola como uma prática cultural de resistência.

Referência

  • VARELA, Sergio Gonzáles. Power in Practice: the paradigmatic anthropology of Afro-Brazilian Capoeira. New York: Berghahn, 2017. 166 pp.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2018
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