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RIVERA ANDÍA, Juan Javier (ed.). 2019. Non-humans in Amerindian South-America: ethnographies of Indigenous cosmologies, rituals and songs. New York/Oxford: Berghahn. 382 pp.

RIVERA ANDÍA, Juan Javier. (ed.). 2019. Non-humans in Amerindian South-America: ethnographies of Indigenous cosmologies, rituals and songs. New York/Oxford: Berghahn. 382 pp.

Seres não humanos ocupam a Antropologia, esta putativa “ciência do humano”, desde sempre - naturalmente, porque estes seres interessam aos nossos interlocutores é que eles importam também aos antropólogos e às antropólogas. Desde o final dos anos 90, contudo, o interesse nesses seres vem ganhando renovado vigor, especialmente com a nova roupagem politicamente correta da clássica questão do animismo, e com o lançamento da “bomba” perspectivista. E ninguém ignora, é certo, que a América do Sul - seus povos, línguas, culturas, ontologias, ambientes e, claro, seus muitos seres não humanos - esteve na linha de frente desta poderosa repaginação contemporânea da disciplina.

Como se sabe, tudo começa com Claude Lévi-Strauss, partindo dos ameríndios rumo aos universais do pensamento humano. Mas as menções ao neoanimismo e ao perspectivismo ameríndio demonstram que os materiais etnográficos sul-americanos seguem iluminando novos itinerários e territórios na contínua exploração antropológica dos (outros) mundos (dos outros). A coletânea resenhada aqui, reunindo trabalhos sobre 12 grupos indígenas nas terras baixas e altas do continente, constitui mais um esforço na empreitada de investigação das relações entre sujeitos humanos e não humanos que importam. A novidade aqui, além de seu foco transregional e de sua estreita fidelidade às manifestações etnográficas destas relações, é a abertura das análises para o que diferentes coletivos ameríndios compreendem como seres outros, não humanos - animais, plantas, terras, rios e artefatos, logicamente, mas também almas dos mortos, Incas, montanhas, gado, membros das humanidades míticas, propriedades de clãs, oferendas rituais, paisagens, recursos naturais, camponeses e proletários rurais, elites sociopolíticas, danças, músicas, narrativas, trocas econômicas e reivindicações políticas.

O não-humano, assim, explode em uma miríade de loci de pesquisa e reflexão que nunca se esgota (e nem pode se esgotar) no que habitualmente contrastamos com o humano, seguindo os emparelhamentos apropriados pela nossa própria configuração ontológica. Não humanos são sempre “contextuais” (:4RIVERA ANDÍA, Juan Javier (ed.). 2019. Non-humans in Amerindian South-America: ethnographies of Indigenous cosmologies, rituals and songs. New York/Oxford: Berghahn. 382 pp.), e talvez sejamos, afinal, todos mais ou menos animistas (:9RIVERA ANDÍA, Juan Javier (ed.). 2019. Non-humans in Amerindian South-America: ethnographies of Indigenous cosmologies, rituals and songs. New York/Oxford: Berghahn. 382 pp.), quando focalizamos devires ou processos emergentes ligados às práticas sociais e relacionais humanas (:15RIVERA ANDÍA, Juan Javier (ed.). 2019. Non-humans in Amerindian South-America: ethnographies of Indigenous cosmologies, rituals and songs. New York/Oxford: Berghahn. 382 pp.). Nesse sentido, o conceito de “não humano” vai muito além da “natureza” ou da “sobrenatureza” que pretende superar (:4RIVERA ANDÍA, Juan Javier (ed.). 2019. Non-humans in Amerindian South-America: ethnographies of Indigenous cosmologies, rituals and songs. New York/Oxford: Berghahn. 382 pp.), pois elementos “da cultura” (tal como os artefatos) também podem cair nesta chave da subjetivação ou da socialidade.

A longa introdução de Juan Javier Rivera Andía, organizador da coletânea, revela-se como uma excelente compilação crítica dos debates que, em favor de abordagens teórico-metodológicas não dualistas, vêm convidando os não humanos para o centro do palco do empreendimento etnográfico. Esta seção inicial é bastante instrutiva, ao esclarecer algo das bases epistemológicas da incorporação da ontologia pela Antropologia recente - focalizando de que maneira a rediscussão do animismo e da natureza dos seres não humanos impacta este projeto de largo escopo. Não vem ao caso resumir aqui a rica discussão resenhada por Rivera Andía, que toca numa infinidade de pontos concernentes aos mais atualizados debates no campo antropológico. Mas é importante destacar o modo como o organizador reúne um número considerável de autores e trabalhos para clarificar os múltiplos desdobramentos das mudanças pós-anos 90: pesando os prós e os contras das novas orientações disciplinares - em dois campos que denomina de “radicalização” (da virada ontológica) e “questionamento” ou “ceticismo” (da mesma) - e advogando uma “posição moderada” que é, para ele, “metodológica”, e que envolve a genuína produção de alter conceitos ou transformação de conceitos antropológicos a partir do esforço etnográfico dialógico (:25-31RIVERA ANDÍA, Juan Javier (ed.). 2019. Non-humans in Amerindian South-America: ethnographies of Indigenous cosmologies, rituals and songs. New York/Oxford: Berghahn. 382 pp.).

Forte componente político - resgate das dimensões e dos impactos políticos da Antropologia de, para e sobre os povos ameríndios - permeia a proposta desta coletânea e lhe confere novidade, assim como a grande ênfase dada às manifestações estéticas (cantos, flores, adornos, músicas, objetos, pintura corporal) das relações entre humanos e não humanos, e o interesse em conjugar a investigação dessas relações em cenários contemporâneos de mudança, movimento e exploração trazidos pelo mundo globalizado moderno. Tudo isso acaba por produzir uma série de críticas à caracterização neoanimista das sociedades nativas da América do Sul, sugerindo que, mais do que cláusulas pétreas de ontologias ameríndias, estamos diante de conhecimentos e formas de ação em permanente transformação e negociação (:346RIVERA ANDÍA, Juan Javier (ed.). 2019. Non-humans in Amerindian South-America: ethnographies of Indigenous cosmologies, rituals and songs. New York/Oxford: Berghahn. 382 pp.).

Nesse sentido, é deveras produtivo que as reflexões em torno do animismo e do perspectivismo e de suas reverberações político-sociais incorporem, como é feito aqui, novos autores e autoras em contextos etnográficos ainda largamente ausentes das discussões em curso, como é o caso dos Andes chilenos e peruanos e das terras baixas a oeste da América do Sul, além do Chaco paraguaio, do Piemonte boliviano e da Amazônia - esta última, como é sabido, o tradicional reduto dos debates e de boa parte das inovações em torno dos não humanos na etnologia do continente - terra dos Achuar, dos Araweté, dos Yudjá - conforme demonstram coletâneas recentes como as de Santos-Granero, de Goulard e Karadimas, de Brightman, Fausto e Grotti, de Hill e Chaumeil, entre outras. Esta entrada de novas perspectivas etnográficas é altamente salutar, convidando-nos a revisitar velhas fronteiras, perseguindo cada vez mais de perto sínteses pan-regionais que apontam para a construção de um tecido contínuo de socialidade - entre humanos e não humanos, sempre - na América do Sul, que se espalha de Oriente a Ocidente e, talvez, também, de Sul a Norte, e incorporando a Mesoamérica e a América do Norte no conjunto de questões avançadas a partir do sul.

Dividido em três partes e um epílogo, a proposta do volume - e, como disse, sua novidade - está no profundo enraizamento etnográfico das análises aqui reunidas, e na sua radical atenção aos panoramas ou às situações sociopolíticas em que se inserem, refletindo sobre as interações entre humanos e não humanos - termo que, por esta mesma razão, aparece empregado de forma intercambiável com “ambiente” (environment) - em cenários de disputa, crise, turbulência e desigualdade que caracterizam o continente sul-americano de forma geral.

A parte I (Securing Body and Wealth) ocupa-se da constituição de corpos plenamente humanos e de modalidades de criação e exibição de riqueza (como os animais de criação) a partir de relações com seres não humanos (incluindo não indígenas) variados. Os quatro capítulos desta parte (por Dransart e Sax nos Andes, Ventura i Oller no oeste do Equador, e Ferrié no Piemonte boliviano) apontam para a centralidade das relações com seres outros-que-humanos na definição dos modos de vida indígena - o que algumas discussões correntes definem como “bem viver” - que incluem os complexos emaranhamentos com o que chamamos de “ambientes” ou “paisagens”. Estes estão estreitamente relacionados às formas de ser humano na América do Sul indígena, profundamente vinculadas aos corpos e à regulação de suas fronteiras. Aqui, nesta seção do livro, os autores estão majoritariamente preocupados com esta constituição permanente do humano por meio do controle (sobretudo ritual) do perigoso potencial predatório de vários não humanos com os quais se deve conviver.

A Parte II (Cohabiting and Sharing) muda o foco do conflito para a convivialidade entre humanos e não humanos. Seus quatro capítulos (por Brabec de Mori e Opas na Amazônia, Otaegui no Chaco, e Carreño nos Andes) aprofundam-se na conclusão de que a vida cotidiana nos mundos ameríndios depende do intercâmbio constante - de alimentos, pessoas, palavras, rituais, bens, canções, mortes, mas igualmente mercadorias e dinheiro - entre humanos e não humanos que partilham existências com intimidade (e as consequências disso) no mínimo distintas do que se vive no Ocidente moderno (na renitente oposição entre a cultura humana e a natureza não humana). Conviver é (com)partilhar - esta é a chave da contínua interação entre subjetividades várias na América do Sul, e dela depende a duradoura produção das vidas humanas e sua mútua interdependência com vidas outras-que-humanas. Os capítulos desta seção defendem, ademais, que as análises dessas modalidades de convivência generalizada precisam ser sempre historicamente contextualizadas, uma vez que não apenas observam com atenção as mudanças pelas quais passa(m) o(s) mundo(s), como também são o fundamento para as respostas que dão os povos indígenas aos fluxos cambiantes produzidos justamente nas interações entre humanos e o conjunto megadiverso de seres com os quais dividem o cotidiano.

Os três capítulos que fecham a obra em sua Parte III (Transformations and Slow Turbulences) discutem mudanças mais do que continuidades - ainda que as transformações sejam a tônica de todo o livro, sobremaneira preocupado com a dimensão política (incluindo-se suas relações com o capitalismo exploratório e o Estado-nação) das relações simbólicas entre humanos e não humanos nas paragens sul-americanas. Os textos desta seção (Hill e Yvinec na Amazônia e Ødegard nos Andes) abordam as estratégias indígenas - que produzem processos de continuidade ou de descontinuidade diretamente relacionados aos modos ameríndios de fazer história - em face das alterações sofridas por não humanos com os quais convivem há tempos e com novos atores nos quadros contemporâneos do capitalismo tardio e das violentas empresas extrativistas. As “mudanças culturais”, aqui, são observadas a partir da incorporação (e consequente transformação) de poderes, práticas, discursos, bens e riquezas estrangeiros, um tema clássico na etnologia sul-americana (ao menos nas terras baixas), destacando-se, assim, as dinânimas internas dessas novas modalidades de interação entre seres humanos e outros-que-humanos.

O livro termina com um epílogo crítico (por Münzel) que elogia os engajamentos etnográficos como modo de combater o (talvez) excessivo interesse antropológico pela metafísica, que pode ter, segundo o autor, ofuscado nossa atenção quanto às filosofias indígenas propriamente ditas - razão pela qual se define o livro como um “manifesto pós-perspectivista” ou “pós-ontológico” em favor do trabalho de campo aprofundado (:353RIVERA ANDÍA, Juan Javier (ed.). 2019. Non-humans in Amerindian South-America: ethnographies of Indigenous cosmologies, rituals and songs. New York/Oxford: Berghahn. 382 pp.).

Convocar os não humanos como agentes nas arenas sociopolíticas contemporâneas, e escutá-los atentamente, é tarefa urgente, advogada por muitos atores no interior dos movimentos por uma renovada forma de fazer (cosmo)política. Os variados coletivos não humanos na América do Sul clamam por esta ação, segundo as agendas de seus porta-vozes privilegiados, os povos ameríndios. Esta coletânea editada por Rivera Andía situa admiravelmente esses seres - montanhas, animais, florestas, lagos, espíritos, artes, solos e águas - nesta luta que é pelo presente e pelo futuro de humanos e não humanos em todos os mundos.

Referência

  • RIVERA ANDÍA, Juan Javier (ed.). 2019. Non-humans in Amerindian South-America: ethnographies of Indigenous cosmologies, rituals and songs New York/Oxford: Berghahn. 382 pp.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020
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