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Sobre mães, navios e cachaça: Carreira, crise e desilusão numa empresa brasileira representada como “patrimônio da nação”

Of mothers, ships and cachaça: Career, crisis and disillusion in a Brazilian company portrayed as “national heritage”

Sobre madres, navíos y cachaça: Carrera, crisis y desilusión en una empresa brasileña representada como “patrimonio de la nación”

Resumo

O objetivo deste artigo é destrinchar alguns contornos sociais e simbólicos do mundo da aviação comercial brasileira nas últimas décadas do século XX, a partir de três metáforas que impregnam os imaginários de antigos funcionários da extinta Varig. Signos de um mundo singular, recortado pelos traços de uma política económica nacional modelada no estreito vínculo entre mercado e estado, “mães”, “navios” e “cachaça” nos guiarão pelos sentidos atribuídos a esse mundo, conformado por mecanismos de seleção rigorosos, um tipo de organização do trabalho reconhecido como “paternalista” e disciplinador, com um claro “quadro de carreira”. A partir de uma etnografia desenvolvida entre 2015 e 2017 com funcionários da antiga companhia aérea que residem atualmente na cidade do Rio de Janeiro, e à luz de contribuições recentes das ciências sociais sobre experiências de crise, incerteza e esperança, procuro interpretar a grande desilusão que significou a falência, e suas consequências na conformação subjetiva atual do coletivo de trabalhadores danificados.

Palavras-Chave:
Aviação; Varig; Carreira; Crise; Desilusão

Abstract

This article aims to examine certain social and symbolic contours of the world of Brazilian commercial aviation in the last decades of the 20th century, based on three metaphors that permeate the imaginaries of former employees of the extinct Varig. "Mothers", "ships" and "cachaça", signs of a singular world defined by a national economic policy shaped by the close link between market and state, will guide us through the meanings attributed to this world, which was conformed by mechanisms of rigorous selection, a type of work organization recognized as "paternalistic" and "disciplinary", with a clear "career board". Based on an ethnography carried out between 2015 and 2017 with employees of the former airline that currently reside in the city of Rio de Janeiro, and in light of recent contributions from the social sciences concerning experiences of crises, uncertainty, and hope, I interpret the great disappointment stemming from the bankruptcy of the company and its consequences on the current subjective constitution of the group of aggrieved employees.

Keywords:
Aviation; Varig; Career; Crisis; Disappointment

Resumen

El objetivo de este artículo es examinar algunos contornos sociales y simbólicos del mundo de la aviación comercial brasileña en las últimas décadas del siglo XX, a partir de tres metáforas que impregnan los imaginarios de antiguos empleados de la extinta Varig. Signos de un mundo singular, recortado por los trazos de una política económica nacional modelada por el estrecho vínculo entre el mercado y el Estado, “madres”, “navíos” y “cachaça” nos guiarán por los sentidos atribuidos a ese mundo, constituido por mecanismos de selección rigurosos, un tipo de organización del trabajo reconocida como “paternalista” y “disciplinadora”, con un claro “plan de carrera”. A partir de una etnografía desarrollada entre 2015 y 2017 con empleados de la antigua aerolínea que residen actualmente en la ciudad de Rio de Janeiro, y a la luz de contribuciones recientes de las ciencias sociales sobre experiencias de crisis, incertidumbre y esperanza, busco interpretar la gran desilusión que significó la quiebra y sus consecuencias en la conformación subjetiva actual del colectivo de trabajadores perjudicados.

Palabras clave:
Aviación; Varig; Carrera; Crisis; Desilusión

Introdução

A longa trajetória da Varig1 1 A Varig - Viação Aérea Rio-Grandense - foi uma companhia de aviação brasileira fundada pelo imigrante alemão Otto Ernst Meyer em 1927, na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Alcançando uma posição de liderança entre as décadas de 1960 e 1980, operava rotas internacionais para América, Europa, África e Ásia, utilizando inicialmente os Lockheed Constellation e Douglas DC-6, posteriormente os Boeing 707 e Sud Aviation Caravelle e finalmente com os Douglas DC-10 e Boeing 747. Com a expansão, seus principais centros operacionais foram instalados em Rio de Janeiro e São Paulo, onde até hoje mora grande parte dos antigos funcionários da companhia. Angariando dívidas desde os anos finais da década de 1990, a Varig entrou em processo de recuperação judicial em junho de 2005 e, em 2006, teve grande parte de sua estrutura leiloada. Nesse ano foram realizadas demissões em massa e a empresa praticamente parou de funcionar, embora a falência da porção restante só tenha sido declarada em 2010. Os funcionários que estavam em exercício em 2006 foram lesados com meses de salários atrasados (e nunca pagos) e o não cumprimento das rescisões trabalhistas. Para agravar o cenário, o fundo de previdência “Aerus” sofreu a intervenção da justiça no mesmo período. Os funcionários continuam lutando até hoje pelos direitos trabalhistas e previdenciários lesados. Para uma história mais detalhada da companhia, ver: Fay 2001; Helms 2010; e Monteiro 2007, 2008, 2009, 2011. acompanha grande parte da curta história da aviação comercial no mundo. Em consonância com o clima político internacional, a atividade aeronáutica se desenvolveu no Brasil a partir da Primeira Guerra Mundial, com o estímulo gerado pela luta entre as nações que detinham tecnologia (Alemanha, Estados Unidos e França) e visavam expandir sua hegemonia pelo mundo. Nasceram assim as primeiras empresas do país, num contexto institucional precário que levou os historiadores da aviação a falar desses primeiros anos como uma fase “heroica”2 2 Neste artigo serão utilizadas aspas duplas para citações e termos ou expressões êmicas. O itálico será utilizado para palavras estrangeiras, conceitos analíticos próprios ou dos autores citados, bem como para enfatizar alguns pontos do texto. (Monteiro 2007:39MONTEIRO, Cristiano F. 2007. “A Varig e o Brasil, entre o desenvolvimento nacional e a competitividade global”. Civitas: Revista de Ciências Sociais, 7 (1).). Depois da Segunda Guerra Mundial, com a melhoria da infraestrutura de apoio ao voo - com a construção de aeroportos e a disponibilidade de recursos humanos qualificados - e da criação de organismos e normas visando regulamentar a atividade em nível internacional, as oportunidades de expansão das companhias aéreas brasileiras foram potencializadas. Foi nesse contexto que a Varig iniciou sua expansão para o Norte e o Nordeste brasileiro, e pouco depois conseguiu negociar junto ao governo federal a concessão da rota para Nova Iorque (inaugurada em 1955), ascendendo ao grupo das grandes empresas nacionais.

A partir da década de 1960, o setor cresceu reproduzindo de forma emblemática o padrão de articulação entre Estado e mercado que caracterizou o ciclo do nacional-desenvolvimentismo, marcado por uma forte intervenção estatal permeada por estreitos laços unindo autoridades governamentais e empresas aéreas (Monteiro 2008MONTEIRO, Cristiano F. 2008. “Empresários e ação política no contexto das reformas para o mercado: o caso da aviação comercial”. Revista de Sociologia Política, 16 (nº supl.):159-180.). Nesse período, a Varig se beneficiou especialmente do acesso individualizado às autoridades responsáveis pelo controle do setor, organizadas no Ministério da Aeronáutica e no Departamento de Aviação Civil, principalmente depois de 1965, quando as atividades da Panair, segunda maior empresa privada do país, foram encerradas por um “decreto autoritário” do General Castelo Branco depois do golpe militar (CNV 2014COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE (CNV). 2014. Relatório. Texto 9: A resistência da sociedade civil às graves violações de direitos humanos. Disponível em: Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/ . Acesso em 23/07/2020.
http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/...
). Para o interior da empresa, a criação da Fundação dos Funcionários da Varig, que posteriormente seria rebatizada como Fundação Ruben Berta (FRB) em homenagem ao seu idealizador, então presidente da companhia, conseguiu imprimir um espírito de coletividade inédito entre os diferentes cargos.3 3 Segundo Monteiro (2007), ao idealizar a fundação, Berta lançou mão de um discurso orientado pela doutrina social da Igreja Católica e recebeu o apoio de líderes trabalhistas para um projeto de “capitalismo social” no qual os trabalhadores se tornariam proprietários da empresa.

Foi nesse clima institucional, tão bem escrutinado por Monteiro (2007MONTEIRO, Cristiano F. 2007. “A Varig e o Brasil, entre o desenvolvimento nacional e a competitividade global”. Civitas: Revista de Ciências Sociais, 7 (1)., 2008MONTEIRO, Cristiano F. 2008. “Empresários e ação política no contexto das reformas para o mercado: o caso da aviação comercial”. Revista de Sociologia Política, 16 (nº supl.):159-180., 2009MONTEIRO, Cristiano F. 2009. “Estado e mercado no transporte aéreo brasileiro pós-reformas”. Política & Sociedade, v. 8, n. 15:117-143., 2011MONTEIRO, Cristiano F. 2011. “Political Dynamics and Liberalization in the Brazilian Air transport industry: 1990-2002”. Brazilian Political Science Review, 5 (1):35-53.), que grande parte dos meus interlocutores ingressaram para a aviação. Com base em uma etnografia concebida inicialmente junto à comissárias de bordo que ficaram na empresa até o fim de suas operações, em 2006, durante o trabalho de campo para minha pesquisa de doutorado participei de eventos, como festas e protestos, que nucleiam um grupo mais amplo de trabalhadores da Varig (como pilotos, mecânicos e operadores) atingidos pela falência.4 4 Trabalho de campo desenvolvido entre 2015 e 2017 em proximidade com diferentes “subgrupos” do grande coletivo de trabalhadores da Varig, principalmente mulheres, mas também homens, comissárias e comissários de bordo, que trabalharam na empresa no período 1975-2006, aproximadamente. Toda a pesquisa foi desenvolvida a partir do diálogo estreito com uma “informante-chave” que pertence a esse universo e com quem mantenho um vínculo familiar. Trata-se de minha tia, nascida em São Paulo em 1955, que começou sua trajetória na aviação trabalhando no aeroporto de Congonhas, e veio para o Rio de Janeiro em 1978 para tentar o processo seletivo na empresa Cruzeiro do Sul. Pouco tempo depois, essa empresa foi absorvida pela Varig, e foi assim que minha tia acabou sendo comissária de bordo da Varig durante 25 anos, até a falência. A maior parte dos contatos para as entrevistas foi realizada por ela (embora também tenha entrevistado pessoas apresentadas por colegas de doutorado), e foi com ela que assisti à maioria de comemorações, encontros e protestos. Foi ela também quem me advertiu, desde o momento inicial de concepção da pesquisa, sobre o papel exorbitante que teria a falência nos relatos dos funcionários da Varig, tanto que, segundo ela, se meu interesse fosse me concentrar na profissão de comissário, talvez fosse melhor escolher outra empresa. Assim, o caráter marcante da falência, estruturando o “antes” e o “depois” das histórias de vida desses aeronautas, foi um dado fundamental ao longo da pesquisa. Analiso alguns dos desafios e implicações de realizar pesquisa na própria família em Castellitti (2018:18-26). Trata-se, em geral, de aeronautas que ingressaram na atividade entre a década de 1970 e começo dos anos 1980, tendo a oportunidade de desenvolver suas carreiras num período de alta lucratividade e crescimento do setor, que tinha a Varig como empresa-líder e Vasp (única estatal), Transbrasil e Cruzeiro do Sul como coadjuvantes. A partir do legado de Everett Hughes (1984HUGHES, Everett C. 1984. The Sociological Eye: selected papers. New Brunswick: Transaction.), para quem a organização de nossa sociedade é, em grande medida, uma questão da relação do homem com o mundo do trabalho, este artigo explora a conexão entre carreiras, temporalidades e crises, na perspectiva dos funcionários da extinta Varig.

Dedico-me, então, a examinar alguns componentes marcantes do universo simbólico desse grupo,5 5 Em se tratando de uma empresa de mais de setenta anos de trajetória, que chegou a controlar outras 13 empresas (como a rede de hotéis Tropical, e outros serviços de turismo), é difícil achar fontes fidedignas que deem um detalhamento da dimensão dos recursos humanos empregados. Pereira (1987) oferece algumas estimativas interessantes até 1985, como horas e quilômetros voados, frota, número de passageiros transportados, entre outros. Segundo este autor, em 1985 a Varig tinha um total de 19.383 empregados, a maioria aeroviários (16.303) e o restante, aeronautas (3.080). Para atualizar esta informação, nos valemos de fontes jornalísticas que afirmam que, no momento da falência, a Varig contava com 9.485 funcionários (Estadão 2006). Tendo isso em conta, quando me refiro aos “trabalhadores da Varig” no plural, não estou fazendo nenhum tipo de generalização estatística. No entanto, a utilização desse coletivo se justifica a partir dos sentidos construídos pelos próprios trabalhadores, que constantemente afirmam um sentimento de comunidade ancorado única e fundamentalmente na passagem pela companhia. Assim, todas as segmentações identificadas na pesquisa, relativas às hierarquias (entre pilotos e comissários, por exemplo), turmas de ingresso, ou à permanência na empresa durante a falência (que hoje separa os atingidos entre aqueles que estavam “na ativa” e os aposentados) são englobadas pela identificação maior do coletivo de “variguianos”. fortemente atrelado à emergência e ao desvanecimento de um verdadeiro projeto profissional. O percurso analítico deste exercício de antropologia cultural num contexto urbano contemporâneo será traçado com base nos relatos dos antigos aeronautas que remetem às três metáforas referidas no título do artigo. “Mãe”, “cachaça” e “navio” são figuras ora metafóricas, ora literais, que nos guiarão pelos sentidos do trabalho na Varig, configurado a partir de um claro “quadro de carreira” que projeta uma temporalidade linear, automática e até certo ponto devoradora, somente interrompida pelo afundamento da empresa. Depois da introdução, na qual aponto algumas características importantes da carreira do aeronauta na Varig, me dedico, nas três seções seguintes, a cada uma das metáforas mencionadas, aproximando fragmentos de diálogos e entrevistas que mantive com esses funcionários de outras realidades etnográficas que permitirão ampliar nossos horizontes interpretativos. Nas considerações finais, faço algumas observações mais gerais sobre o símbolo da Varig como “patrimônio” da nação, e sugiro alguns caminhos hipotéticos sobre subjetividades, experiências de crise e projetos de futuro.

Carreira

“Aeromoças lindas, bem vestidas e maquiadas, tipo capa de revista. Serviço de bordo impecável, com comida de primeira classe, servida em fina porcelana. Bar com bebida à vontade e vinho em taças de cristal. Liberdade para fumar”: estes eram alguns dos atributos da aviação na chamada “época dourada”, entre 1960 e 1980 (Charlson 2015CHARLSON, Freddy. 2015. “A era de ouro da aviação comercial em 19 fotos”. 29/05/2015. O Blog da aviação. Disponível em: Disponível em: https://oblogdaaviacaocivil.wordpress.com/2015/05/29/a-era-de-ouro-da-aviacao-comercial-em-19-fotos/ . Acesso em 23/07/2020.
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). Durante esse período o setor atingiu um padrão de alta lucratividade no Brasil, oferecendo um serviço limitado às classes de maior poder aquisitivo e beneficiando-se dos dois princípios que passaram a nortear a atividade desde o golpe de 1964: a “competição controlada” e a “realidade tarifária”.6 6 Segundo Monteiro (2007:43), o princípio da “competição controlada” estipulava um rigoroso controle da oferta de assentos, procurando-se evitar que as empresas oferecessem voos em horários coincidentes, a menos que houvesse demanda comprovada. As tarifas eram padronizadas a partir de uma base de custos informada pelas empresas ao órgão controlador, o Departamento de Aviação Civil. O princípio de “realidade tarifária”, por sua vez, determinava que as empresas não deveriam depender de subsídios governamentais, de modo que os usuários deveriam arcar com os custos da operação, o que implicava a concentração do serviço nas classes de maior poder aquisitivo. Com Berta na presidência, a Varig se manteve próxima dos governos militares e, com a falência da Panair, garantiu a condição de “empresa de bandeira” do Brasil com exclusividade. Nos anos seguintes, o transporte de autoridades políticas e das comitivas da seleção de futebol criou novas oportunidades para a Varig afirmar a identidade de “empresa oficial”. Como aponta Monteiro, “neste contexto, a Varig se identifica como parte de um esforço no sentido da integração, modernização e desenvolvimento nacional em harmonia com os projetos governamentais, pautando-se numa representação de ‘Brasil Grande’, e por extensão, ‘Varig Grande’” (2007:46MONTEIRO, Cristiano F. 2007. “A Varig e o Brasil, entre o desenvolvimento nacional e a competitividade global”. Civitas: Revista de Ciências Sociais, 7 (1).).

Para o interior da empresa, esse espírito nacionalista e modernizador e o foco no serviço sofisticado representavam parte do padrão de “excelência” perseguido através de rigorosos processos de seleção e formação dos funcionários. Fora o trabalho dos pilotos e dos mecânicos, que exigia uma aprendizagem técnica específica, os candidatos às vagas de atendimento ao público, tanto “na terra” quanto “no voo”,7 7 “Pessoal de terra” e “pessoal do voo” são categorias utilizadas pelos aeronautas que conheci durante a pesquisa, que remetem às diferentes ocupações dos funcionários de uma companhia de aviação no aeroporto (mecânicos, operadores de voo, despachantes e atendentes) e no avião (pilotos e comissários). Não raramente, os comissários de bordo ingressavam na empresa como “pessoal de terra” e posteriormente “passavam para o voo”, ou o contrário (quando essas pessoas decidiam ou se viam obrigadas a parar de voar por diferentes motivos, como problemas de saúde). deviam atravessar um longo processo de avaliação enfocado nas habilidades de comunicação - que incluíam o conhecimento de línguas estrangeiras, mas também qualidades como simpatia, cordialidade e confiança - e na figura corporal. Muitas vezes, as convocatórias eram explícitas em alguns dos itens a serem avaliados: entre 18 e 25 anos de idade, mais de 1,60 metro de altura, ser brasileiro nato ou naturalizado, com instrução ginasial ou equivalente, “saúde, bons olhos (não são permitidos óculos) e sorriso de dentes bonitos” são os requisitos listados em um anúncio da VASP no Diário de Notícias, de 17 de fevereiro de 1982 (Imagem 1). Como observei em outro lugar (Castellitti 2018:59-67CASTELLITTI, Carolina. 2018. A carreira de comissária de bordo na Varig: processos de individualização feminina em contextos urbanos. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional/UFRJ.), através desse exigente escrutínio do corpo, da pele, do cabelo e dos dentes, variáveis implícitas de seleção, como as marcas de classe e raça do candidato, também condicionavam a possível admissão na empresa.

Imagem 1:
“Suba na vida com a VASP”

Na Varig, os candidatos aprovados nessa primeira instância, grande trunfo que inaugurava um novo estilo de vida, recebiam uma passagem de avião para realizar o curso de formação no Rio de Janeiro ou em São Paulo. Faculdades, famílias e cidades ficavam para trás, quando esses jovens de 18, 19 e 20 e poucos anos se lançavam na aventura de conhecer o mundo “voando”. Entre as mulheres, sair do lar paterno para trabalhar, e não para casar, muitas vezes implicou certa ruptura, considerando o contexto provinciano e de classe média do qual muitas provinham. Mas sair com o objetivo de virar “aeromoça” significou, ainda mais, enfrentar estigmas, medos e receios dos mais próximos. Por outro lado, o impacto da chegada na grande cidade era atenuado pela incorporação em uma verdadeira instituição, cujos objetivos pedagógicos transcendiam o mero ensino de um métier, dirigindo-se à plena socialização dos aprendizes. Para isso, as relações de trabalho estavam investidas de claras marcações hierárquicas, e a autoridade era exercida de uma forma “paternalista”, em que o controle significava também proteção, a disciplina, uma forma de cuidado e o respeito, um gesto de amor. “Tia Alice”, “mãe Varig”, “base Rio”, “turma 83-a”, “tripulação x” eram algumas das novas relações que passavam a impregnar o cotidiano, enquanto a distância dos vínculos familiares era suprimida algumas vezes ao ano graças à concessão de passagens aéreas gratuitas por parte da companhia. Desse modo, o desentranhamento da relacionalidade original (Duarte & Gomes 2008DUARTE, Luiz Fernando D. & GOMES, Edlaine de Campos. 2008. Três famílias: identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares. Rio de Janeiro: Editora FGV.) era substituído por um re-englobamento em uma instituição caracterizada por uma sociabilidade com fortes traços hierárquicos.

Passado o curso de formação, os aprendizes de comissário de bordo faziam um “voo de instrução e xeque”, no qual eram avaliados com base em um detalhado formulário que continha itens relativos à apresentação pessoal, ao conhecimento do serviço de bordo, à localização do material de emergência, à checagem do avião e dos passageiros, entre outros. Aprovados nesse primeiro voo, o período de aprendizado era completado e os comissários eram finalmente colocados em escala para voar na Rede Aérea Nacional (RAN). A partir daí, a carreira seguia um roteiro mais ou menos planejado de promoções, que podia variar, principalmente, em função do conhecimento de idiomas estrangeiros por parte do funcionário e da compra de novos aviões por parte da companhia.

Os primeiros voos e a evolução das promoções constituem eventos muito presentes nas memórias desses funcionários, repletas de anedotas que remetem à inicial inexperiência para lidar com imprevistos e às primeiras impressões de uma vida de “aventuras”, que com o tempo passaria a ser o cotidiano. Bandejas derrubadas atravessando turbulências, pedidos extravagantes dos passageiros, muito cansaço e até o medo de voar provocado pela notícia de algum acidente fazem parte dessas lembranças. Mas o resultado é sempre o mesmo: o rápido “apaixonamento” pela profissão. Segundo meus interlocutores, aqueles que “não tinham nascido” para essa vida percebiam isso rapidamente, e solicitavam o traslado para atividades de terra ou saíam da aviação. Esse tempo é também lembrado pelo fascínio provocado pela grande aventura de “conhecer o Brasil”. Permanecendo nas rotas domésticas por um período entre um e três anos, tinham a oportunidade de explorar todos os cantos desse enorme país, destinos remotos que nunca antes teriam imaginado conhecer.

No livro Aceita um Cafezinho? Diário de uma aeromoça, Malu Grabowski conta a história do seu primeiro voo longo na Varig, para Fortaleza, com dez escalas (Belo Horizonte, Governador Valadares, Itabuna, Salvador, Petrolina, Crato, Juazeiro do Norte, Crateús e Quixada), em um Avro (avião turbo hélice de fabricação inglesa). Em suas memórias, relembra aquela “exuberância de imagens, do deslumbramento de camponesa que nasceu num pedaço da Europa encravado e isolado no sul do Brasil e descobria agora um Brasil tropical, com cenário de sonho árabe que pensava existir só no paraíso” (Grabowski 1998:51GRABOWSKI, Malu. 1998. Aceita um cafezinho? Diário de uma aeromoça. Rio de Janeiro: Relume Dumará.). A imagem da mulher do sul, filha de imigrantes europeus, impactada com as paisagens e as “culturas” do norte do país, é uma constante nos relatos desses primeiros anos de voo.8 8 A mulher branca, do sul, magra e um pouco alta, com nível médio de instrução, simpática e um pouco submissa era o modelo de comissária de bordo predileto da Varig. Se minha intuição fosse pouco confiável neste quesito, os funcionários confirmaram essa opinião reiteradamente. Contudo, conheci e entrevistei mulheres cujos perfis e trajetórias fugiam desse padrão: mulheres provenientes de famílias pobres, filhas de mães solteiras, negras, “morenas”, com ascendência asiática também chegaram a compor o quadro de funcionários da empresa que, mesmo impondo rigorosas provas e eliminando candidatos frequentemente sem justificação, conseguiu até certo ponto transmitir a imagem de companhia que colocava “a diversidade do Brasil no interior dos seus aviões”. Procuro olhar para essas trajetórias e esses discursos a partir de uma lente interseccional em Castellitti (2018:59-67).

Colocados na escala para voar na RAN, os comissários eram oficialmente desligados da Diretoria de Ensino e começavam sua carreira na profissão. A partir daí, as promoções seguiam um critério que se aplicava ao interior de cada avião (“de trás pra frente”, em relação aos diferentes setores - turista, executiva e primeira classe, podendo variar segundo a aeronave - e tipos de serviço), e entre aviões (listados segundo uma ordem em que letras e números parecem fazer parte de uma linguagem codificada, na qual a principal diferença radicava nos tipos de rotas a que essas aeronaves seriam destinadas: domésticas ou internacionais). Para Alice,9 9 Os nomes próprios utilizados ao longo do texto são fictícios, com a finalidade de conservar o anonimato das fontes. o legal das promoções, do jeito que eram organizadas na Varig, era que “te davam aquela vontade de continuar no trabalho”, porque “você sabia que sempre ia crescer”. Ela descreveu essa sucessão da seguinte forma:

Tinha o item sobre os idiomas. A Varig sempre deu muito valor aos idiomas e ´quanto mais idiomas tu tivesses melhor, né? O inglês era o mínimo, o imprescindível. O inglês já dava direito, no tempo, no teu tempo, né, pra ir pra internacional. Quem não tinha inglês não ia, ou ia como galley. Galley é o cara que trabalha dentro da cozinha, aquela suposta cozinha do avião que se chama galley, por não ter idioma ele ficava trabalhando ali. [...] Mas o normal era tu ter obrigatoriamente inglês e seguir a tua turma na ordem cronológica de promoção. E aí começava, né? A gente começava voando 37, ou ponte aérea. Ponte aérea não, ponte aérea sempre ficou meio distante, separada, né? porque eram as meninas que tinham filhos e que iam fazer só bate e volta, então começou a ficar um pouco distinta a ponte aérea. Mas a real mesmo era o 37, 27, 737, 727 no início. De lá a gente ia pro Airbus, quando chegou o 67, o Airbus ficou junto com o 767. Depois tinha o DC-10, enquanto o DC-10 ficou, ele voou como Internacional, DC-10, 747. Depois puxou o DC-10 porque chegou o MD-11, aí ficava MD-11, depois o 747 - 747 era o tope de linha, enquanto a Varig teve. Depois ela vendeu e virou o 777, o triple seven, que era tope de linha também. Dentro de tudo isso, tinha o auxiliar e o chefe de equipe. No 37 era só isso, já nos aviões maiores tinha o auxiliar da primeira, o auxiliar da executiva [risos] o auxiliar da turista, o supervisor de cabine da turista, o supervisor de cabine da executiva, o supervisor de cabine da primeira classe e chefe de equipe. Na época do Júnior, do 747, ainda tinha chefe de equipe Júnior e Sênior!

[Carolina] Nossa! Toda essa gente num avião só?

E o legal disso é que eram promoções mesmo, que te davam aquela vontade de continuar no trabalho, porque tu sabias que sempre ias crescer. A impressão que a gente tinha na Varig era que quando tu chegasses no 747 Sênior, tu já estavas pra te aposentar, então era o top de carreira! Então, criou essa sensação de que tu estavas sempre sendo reconhecida. Tu subirias na tua carreira. Existia uma carreira, exatamente, um quadro de carreira. Isso era bem legal.

A exposição detalhada de Alice do que ela denomina “quadro de carreira” do comissário de bordo na Varig corresponde à já clássica definição de Hughes (1984HUGHES, Everett C. 1984. The Sociological Eye: selected papers. New Brunswick: Transaction.) das carreiras em uma sociedade altamente estruturada e rígida. Segundo o autor, independentemente das expectativas serem ou não alcançadas, elas envolvem alguma sequência de relações com a organização da vida. Para Hugues, a carreira consiste, objetivamente, em uma série de status e tarefas claramente definidos. “There are more adventurers and more failures; but unless complete disorder reigns, there will be typical sequences of positions, achievement, responsibility, and even adventure” (Hughes 1984:137HUGHES, Everett C. 1984. The Sociological Eye: selected papers. New Brunswick: Transaction.). Subjetivamente, a carreira é a perspectiva móvel a partir da qual uma pessoa observa sua vida como um todo e interpreta os significados dos seus atributos, ações e eventos.

Mais do que um trabalho, a carreira na Varig forjou para meus interlocutores o ingresso em um mundo novo: o mundo das “pessoas que voam”. Nesse mundo, a Varig ocupava o lugar de todas as instituições de uma vida “normal”: a Varig era casa, família, universidade, e até religião (a “religião variguiana”10 10 Expressão utilizada por uma antiga comissária de bordo em livro publicado por ela sobre a história da companhia, usando a própria trajetória como coluna dorsal (Vasconcelos 2011:22). ). A Varig era tempo e espaço: a escala de voo regia a jornada antes que qualquer relógio; o avião, o hotel e o aeroporto eram espaços mais frequentados que a própria casa. Mas esse novo mundo tinha regras estritas. As primeiras restrições eram impostas a partir do processo seletivo. Posteriormente, durante o curso, os candidatos a comissário de bordo continuavam atravessando uma rigorosa formação dirigida ao corpo e ao comportamento: aulas de etiqueta, saúde corporal, maquiagem, sommelier, catering, idiomas, coordenadas pela sempre presente figura da instrutora, “Tia Alice”, lembrada por sua firmeza e rigorosidade. Nos relatos, a organização do serviço de bordo chega a evocar uma verdadeira cerimônia real, como as analisadas por Norbert Elias (1996ELIAS, Norbert. 1996. La sociedad cortesana. México, D. F.: Fondo de Cultura Económica.), com sua meticulosa planificação, em que cada ato tinha o caráter do prestígio vinculado a ele. De modo semelhante, na Varig, a rígida disciplina e o cuidado com as “boas maneiras” na formação dos comissários tinham a função social de apagar os vestígios de uma origem social inferior, convertendo-se, assim, no que Elias denomina fetiche de prestígio (1996:116ELIAS, Norbert. 1996. La sociedad cortesana. México, D. F.: Fondo de Cultura Económica.), servindo de indicador da posição do indivíduo dentro da estrutura de poder.

Esse universo social fortemente estratificado reservava às mulheres um papel específico. No seu livro The managed heart, a socióloga Arlie Hochschild (1983HOCHSCHILD, Arlie Russel. 1983. The managed heart. Commercialization of human feeling. Berkeley: University of California Press.) dedicou especial atenção ao trabalho emocional realizado pelas aeromoças, entendido como o esforço de induzir ou suprimir sentimentos, com o objetivo de sustentar uma performance que produzisse no outro o sentimento de estar sendo cuidado, em um ambiente amigável e seguro. De acordo com Hochschild, neste tipo de trabalho opera-se uma “doutrina dos sentimentos”11 11 Entre aspas no original. (1983:172HOCHSCHILD, Arlie Russel. 1983. The managed heart. Commercialization of human feeling. Berkeley: University of California Press.) segundo a qual diferenças de status (como entre um executivo e uma secretária, um médico e uma enfermeira) são interpretadas como se refletissem diferenças de gênero. Como corolário disso, ser comissário de bordo implica um tipo de trabalho diferente para homens e mulheres, já que são elas as mais expostas aos maus-tratos dos passageiros e as que na maioria das vezes recebem as queixas contra o serviço e a companhia.

As mulheres que eu conheci durante minha pesquisa concordariam com o observado por Hochschild, apesar de seus discursos sobre as hierarquias de gênero, classe e raça presentes na companhia serem esquivos. Raramente denunciam esses tratos diferenciais, com a única exceção do “machismo da Varig”, que algumas comentam em relação ao antigo impedimento de as comissárias assumirem cargos de “chefia”. O racismo é geralmente atribuído à “aviação da época”, como um todo. Os relatos de dificuldades de acesso de negros e negras à carreira e de certa condescendência da empresa em face das práticas de racismo exercidas por passageiros embaralham-se ambiguamente com uma ideia de que a Varig assumia a diversidade como bandeira. Nessa representação, a “pioneira” agiria como mais um agente positivador da miscigenação e da mistura cultural do povo brasileiro, em concordância com a imagem transmitida pela empresa nas publicidades (Castellitti 2019aCASTELLITTI, Carolina. 2019a. “Varig, ‘a Real Brazilian Embassy Outside’: Anthropological reflections on aviation and national imaginaries”. The Journal of Transport History, v. 40 (1):82-105.).

Imagem 2:
“Huum?”

Essas eram as condições de desempenho da carreira de comissário de bordo nas décadas finais do século XX em uma das principais companhias de aviação comercial do mundo. Com todos os controles e as exigências mencionados, a dedicação e o comprometimento dos funcionários eram retribuídos com bons salários (acrescentados de diárias em dólares, durante os voos internacionais) e o orgulho de pertencer a uma das mais prestigiosas empresas brasileiras da época. O acesso a um mercado de consumo internacional restrito no país, a beleza dos uniformes e dos rostos retratados nas publicidades, a sofisticação do serviço de bordo e a oportunidade de conhecer países dos cinco continentes faziam parte do “glamour” da profissão. Assim, graças às oportunidades usufruídas em e através da empresa, os funcionários sentiam-se privilegiados, pertencentes a um universo de luxo e sofisticação a que poucos tinham acesso.

Com serviços e infraestrutura que chegaram a ser equiparados aos das “gigantes” Lufthansa e Air France, a Varig fazia parte do cenário desenvolvimentista que posicionou o Brasil como destaque no contexto latino-americano e internacional.12 12 Seria interessante aproximar esse papel ao de outra companhia de origem nacional, que também floresceu no espaço da indústria aeronáutica: a Embraer. Surgida por iniciativa do governo brasileiro dentro de um projeto estratégico para implementar a indústria aeronáutica no país, em um contexto de políticas de substituição de importações, a Embraer foi fundada em 1969 como uma sociedade de economia mista vinculada ao então Ministério da Aeronáutica. Privatizada nos primeiros anos da década de 1990, a Embraer chegou à quarta posição mundial no setor em 2012, abaixo da principal concorrente, a canadense Bombardier, da Airbus e da Boeing. Segundo Monteiro, embora o modelo regulatório do setor tenha sido desafiado na virada da década de 1980, com a redemocratização do país e as políticas de combate à inflação, a Varig demonstrou certo descompasso em relação à agenda governamental, mantendo-se fiel às estratégias da “Varig grande” até meados da década de 1990 (Monteiro 2007:47MONTEIRO, Cristiano F. 2007. “A Varig e o Brasil, entre o desenvolvimento nacional e a competitividade global”. Civitas: Revista de Ciências Sociais, 7 (1).). Entre os funcionários, a imagem de empresa com “vocação pública”, símbolo de um Brasil desenvolvido e moderno, foi perdurável, e ainda demonstra certa eficácia nas lutas pelos direitos trabalhistas lesados depois da falência.

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“Varig leva o Brasil mais longe, e traz o Japão mais perto”

Mães

No sentido preponderante do vínculo materno na cultura ocidental (a progenitora ou responsável de sexo feminino, ligada por laços consanguíneos ou não), as mães ocupam um papel relevante nos relatos das trajetórias das comissárias de bordo da extinta Varig.13 13 Nessa seção, me referirei mais especificamente às mulheres comissárias, pois se trata de discursos extraídos em grande medida das entrevistas gravadas, realizadas em sua maioria com elas. Em primeiro lugar, elas aparecem como influências importantes no momento da escolha da carreira. Apesar do que eu previamente imaginara, a ideia do “sonho de ser aeromoça”, como uma ilusão atesourada desde a infância, não se revelou como um dado significativo em nenhum momento do trabalho de campo. Segundo aprofundei em outro lugar (Castellitti 2018CASTELLITTI, Carolina. 2018. A carreira de comissária de bordo na Varig: processos de individualização feminina em contextos urbanos. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional/UFRJ.), quando questionadas sobre a decisão que as levou a se inscreverem no processo seletivo para ingressar na aviação, essas mulheres frequentemente responderam atribuindo certa dose ao acaso e à surpresa. Chegadas ao Rio de Janeiro de cidades menores para estudar ou trabalhar como secretárias, ou nessas mesmas cidades onde se sentiam um pouco perdidas na encruzilhada entre trabalho, faculdade e noivado, um anúncio no jornal, a figura da aeromoça de uma icônica companhia internacional caminhando por Copacabana ou uma carta de uma amiga foram alguns dos eventos que teriam despertado a curiosidade e o interesse por essa carreira.

Esses imaginários e os discursos nos exortam a refletir sobre o papel do acaso, que não pode ser descartado como fútil para a análise social. Como alguns autores têm argumentado (Becker 2014; Elias 1995ELIAS, Norbert. 1995. Mozart, sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Zahar.; Peirano 1992PEIRANO, Mariza. 1992. “Artimanhas do acaso”. Anuário Antropológico, 89:9-21.), um pouco a contrapelo do que foi tradicionalmente concebido como o cerne do social - aquilo que é frequente e, por ter uma regularidade, é passível de explicação -, o acaso, a indeterminação e a coincidência fazem parte da instabilidade dos equilíbrios de poder próprios das configurações sociais, possibilitando o imaginário útil de que as coisas não são exatamente aleatórias, mas não estão completamente determinadas. Em minha pesquisa, esses eventos fundadores que direcionariam os sujeitos no sentido de suas vocações (Ricoeur citado em Peirano, 1992PEIRANO, Mariza. 1992. “Artimanhas do acaso”. Anuário Antropológico, 89:9-21.) adquiriram também o sentido retórico de reforçar o caráter um tanto mágico da perfeita adequação dessas mulheres para a carreira. Mesmo que nunca tivessem sonhado em ser aeromoças, hoje, quando olham para trás, têm a certeza de que elas “nasceram para isso”.

Por outro lado, dar um lugar aos eventos disruptivos nas trajetórias não nos impede de ponderar sobre as condições de realização de um projeto determinado. De modo geral, é inegável que tais condições são aquelas somente propiciadas pelas metrópoles modernas, com sua heterogeneidade e variedade de experiências e estilos de vida, contribuindo para uma forte diferenciação de papéis.14 14 A relação entre a grande cidade e a divisão do trabalho foi objeto de importantes reflexões por parte dos autores clássicos das ciências sociais, magistralmente sintetizadas por Simmel, com atenção particular ao fundamento psicológico sobre o qual se elevam os tipos de individualidade da metrópole moderna (Simmel 2005:577). Em termos objetivos, a instalação de pelo menos um grande aeroporto na cidade, que servisse de base de operação de importantes companhias aéreas nacionais e internacionais, foi fundamental para que existisse a demanda por este cargo, assim como a infraestrutura necessária para a qualificação dos candidatos. São as condições que delimitam o campo de possibilidades em que emerge a escolha, ponto de partida para se pensar em projeto (Velho 1981VELHO, Gilberto. 1981. Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar .). Isto ficou muito claro para mim, que provenho de uma cidade média argentina que até hoje não possui nenhum aeroporto dessa magnitude, e que antes de vir morar no Brasil jamais tinha conhecido pessoalmente alguém que trabalhasse na aviação.

Voltando às mães, que papel foi então o assumido nessa escolha, junto com o acaso e a configuração específica da grande cidade? Antes ou depois do alerta provocado por esses eventos fundadores, as mães frequentemente participavam da elaboração do projeto, sugerindo, incentivando ou apoiando suas filhas, inclusive quando certa cumplicidade era necessária para driblar a desaprovação de outros parentes (fundamentalmente do pai). Assim, a ruptura entre uma geração de mulheres de camadas médias que conquistaram certa qualificação, ingressando no mercado de trabalho por um curto período de tempo, até que as “obrigações familiares” as fizeram se afastar de seus empregos, e a geração de suas filhas, que escolheram carreiras vistas como problemáticas ou pouco compatíveis com esse papel familiar tradicional, emerge neste contexto de pesquisa como um mecanismo de transmissão transgeracional (Duarte 2011DUARTE, Luiz Fernando D. 2011. “Geração, Fratria e Gênero: um estudo de mandato transgeracional e subjetivação diferencial”. Trivium. Estudos Interdisciplinares, 3 (1):1-19.) evidente. Por outro lado, vale a pena apontar que esse tipo de entrecruzamento de marcadores de classe, gênero e geração é coerente com o colocado por outras pesquisas sobre os efeitos indubitáveis da atividade profissional das mães na entrada das filhas no mercado de trabalho (Lins de Barros 2009:50LINS DE BARROS, Myriam. 2009. “Três gerações femininas em famílias de camadas médias”. In: G. Velho & L. F. D. Duarte (orgs.), Gerações, família e sexualidade. Rio de Janeiro: 7Letras. pp. 46-62.). Nesse sentido, refletindo sobre as consequências de sua frequente ausência durante a infância das filhas, uma interlocutora um dia me disse que se sentia tranquila porque pelo menos assim ela não lhes teria transmitido a “frustração” por ter parado de trabalhar.

Para além desse momento de definição profissional, a filiação materna é constantemente evocada pelas antigas comissárias de bordo em relação à dificuldade da distância dos primeiros anos da carreira e pelo fundamental papel de suporte que muitas exerceram durante a criação dos netos, quando as filhas tinham que voar por vários dias para o outro lado do mundo. São as mães, assim, as principais depositárias de um sentimento de retribuição por parte das comissárias, materializado em presentes de todo tipo trazidos do exterior, convites para acompanhá-las durante alguma viagem mais longa, assim como no pagamento dos seus planos de saúde - “ajuda” que algumas fazem questão de manter até hoje, embora represente uma pesada carga. Assim, a forte presença das mães nos relatos e nas fotografias da época “do voo” contrasta com uma chamativa ausência dos pais nesses mesmos registros.15 15 Somente em um caso essa ausência virou objeto de reflexão (e ironia), por parte de uma interlocutora que criou sua filha sozinha, repetindo em certa medida a história de sua mãe, abandonada por seu pai durante a gravidez. Ver: Castellitti (2018:134-136).

Desejos e frustrações transmitidos, ajudas dadas e recebidas: seja na linguagem psicanalítica, seja na linguagem da dádiva, esses sentidos atribuídos ao vínculo mãe-filha fazem parte da multiplicidade de participações subjetivas fundadas na mutualidade do ser (Sahlins 2011:10SAHLINS, Marshall. 2011. “What kinship is (part one)”. Journal of the Royal Anthropological Institute, 17: 2-19), atribulações do parentesco em sociedades urbanas contemporâneas. É nesse fluxo que podemos constatar a identificação de um corte ou uma descontinuidade que permite assinalar a elaboração de uma singularidade (Velho 2009:12VELHO, Gilberto. 2009. “Sujeito, subjetividade e projeto”. In: G. Velho & L. F. D. Duarte (orgs.), Gerações, família e sexualidade. Rio de Janeiro: 7Letras . pp. 9-16.): não “abrir mão” do emprego, mesmo nas encruzilhadas mais angustiantes, será para elas sempre uma conquista.

Mas existe outro sentido da filiação materna bastante pungente no universo “variguiano”: aquele que se refere à própria companhia como uma “família” e, mais propriamente, como uma “mãe”. Até certo ponto, tanto a empresa quanto alguns agentes específicos (instrutores, diretores e outras autoridades) desse novo campo institucional assumiam o papel de parentes. Assim como os candidatos ganhavam novas “tias” e “mães”, a Varig no todo passava a constituir uma nova “família”: uma instituição rigorosa, mas protetora, que compensava devidamente a dedicação fiel de seus membros e contribuía para a formação de um sentimento de comunidade. Em uma direção semelhante, no seu estudo sobre o processo de formação da classe operária em um caso de fábrica com vila operária, Neiburg (1988) observa que a projeção da personalidade do patrão como a de um “grande pai” sobre seus filhos, constituindo “a grande família de Loma Negra”, é um elemento fundamental desse complexo sistema de relações. Um sistema que subordina a esfera da reprodução da força de trabalho, e que coloca a empresa como um grande campo de relações de poder, no qual se desenvolvem tanto a coerção como o consenso. Assim, o sistema de poder é ao mesmo tempo resistido e interiorizado em uma grande quantidade de níveis que transcendem a relação estritamente contratual (Neiburg 1988:68).

Também Lea Carvalho Rodrigues (2004RODRIGUES, Lea C. 2004. Metáforas do Brasil. Demissões voluntárias, crise e rupturas no Banco do Brasil. São Paulo: Annablume/Fapesp.) observou o uso de metáforas familiares por parte dos funcionários do Banco do Brasil em sua etnografia sobre o processo de mudanças instaurado em 1995 a partir da implementação de um amplo programa de ajustes, sobretudo em momentos de desabafo, depoimentos pessoais e cartas de despedida. Nesse contexto, há concordância com o apontado por Hirata (1988HIRATA, Helena. 1988. “Trabalho, família e relações homem/mulher. Reflexões a partir do caso japonês”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 2 (1):1-9.) quanto à moderna empresa japonesa, na qual o “paternalismo” ou “familiarismo” não se esgotaria na condição dos benefícios sociais outorgados pela empresa, atingindo a superposição direta das ligações de tipo salarial sobre as estruturas familiares e as relações de parentesco. Para Rodrigues, a essência desse paternalismo estaria no teor dos vínculos de trabalho “que permite ao superior hierárquico dispor de seu subordinado numa relação que engloba o profissional e o pessoal, o trabalho e a vida fora dele, gerando uma relação de profunda dependência e subordinação” (Rodrigues 2004:137RODRIGUES, Lea C. 2004. Metáforas do Brasil. Demissões voluntárias, crise e rupturas no Banco do Brasil. São Paulo: Annablume/Fapesp.).

Essas observações são certamente esclarecedoras das relações de interdependência estabelecidas na Varig. Como aponta também Sigaud (1996), examinar as relações sociais que vinculam trabalhadores, patrões, membros da hierarquia administrativa e dirigentes sindicais nos permite reconstruir as condições sociais que favorecem as associações entre fatos relevantes do direito, da moral e dos sentimentos. Na Varig, a rigorosa disciplina e a hierarquia inculcadas, a subordinação à escala de voo - impressa e colada na geladeira de todos os aeronautas ativos - e incluído o “medo” por certas autoridades tinham como contrapartida todas as atenções, os presentes e os cuidados que faziam parte da “família variguiana” (e que, depois da FRB, se estendiam à participação dos funcionários como acionistas da Varig), transformando a empresa em credora quanto às obrigações morais dos funcionários, garantindo sua lealdade, inclusive depois da falência. Talvez resida aqui uma das chaves para interpretar o motivo de esses funcionários identificarem como principal algoz das mazelas vividas depois da falência o governo, e muito raramente a direção da empresa.

Ao mesmo tempo, se a Varig era como uma “mãe”, e não como um pai, um irmão, um amigo, é porque algo desse vínculo, fortemente marcado por atributos generificados, como cuidado, generosidade, sacrifício e incondicionalidade, era expressivo do trabalho e do modo de vida desses funcionários. Nessa direção, não deixa de ser significativo que o vínculo paterno fosse simbolizado pela figura de Ruben Berta, presidente da Varig desde 1942 até sua morte, em 1966.16 16 Em uma entrevista concedida ao Arquivo Jetsite, Alice Klausz, conhecida como “a primeira comissária do Brasil” e escolhida por Ruben Berta para dirigir a Escola de Comissários da Varig, refere-se ao chefe e então presidente como uma pessoa séria, focada e exigente, que inspirava respeito e até medo. Ao mesmo tempo, utiliza a expressão “estilo paternalista de administrar” para falar da “generosidade” de Berta, que “cuidava de todos como se fossem filhos. Era austero, sim, mas era de certa forma o pai de todos” (Jetsite 2020). Na minha pesquisa não tive como explorar melhor esses discursos, já que a maioria dos aeronautas que conheci ingressou na companhia após o falecimento de Berta. No entanto, a imagem de Berta como um trabalhador incansável é perdurável e impregna grande parte das memórias da companhia. Lembrado como um trabalhador incansável e sacrificado, dizem que a própria esposa de Berta falava jocosamente da Varig como a “amante” do seu marido. Nesse sentido, se existe uma tradução da linguagem do parentesco nesse universo moral, é necessário reparar que essa linguagem incorpora os atributos diferenciais do gênero e da geração próprios do universo familiar.

Cachaça

“Quando você escolhe a aviação, você está casada com ela. Porque aquilo ali é uma cachaça, tá entendendo? E que você até prefere... sem saber, você abre mão de uma vida pra voar. É sem querer.” Entrevista com Ana Beatriz, Rio de Janeiro, 2016.

Assim como a palavra “mãe”, “cachaça” tem um significado literal e um significado metafórico no discurso dos antigos funcionários da Varig. O primeiro é aquele que normalmente escutamos e utilizamos no cotidiano brasileiro, em que “cachaça” remete a qualquer bebida alcoólica consumida de forma abundante em festas e comemorações. Nos encontros de que participei durante meu trabalho de campo - comemorações de aniversários de antigos colegas realizadas em um restaurante (de propriedade de uma ex-comissária da Varig) no centro da cidade - essas bebidas eram principalmente cerveja e caipirinha. Dos vários lugares reservados em uma grande mesa central no meio da calçada da Rua do Ouvidor,17 17 Rua do Centro da cidade do Rio de Janeiro que, sendo fechada ao trânsito de carros, é ocupada pelas mesas dos bares e restaurantes ali localizados, e que conta com atrativos musicais, como a roda de samba dos sábados. A combinação de construções históricas, música e gastronomia a converte em um grande atrativo para turistas e locais. os copos acompanhavam o movimento dos corpos em direção à roda de samba, ou mesmo daqueles que permaneciam sentados conversando. Como é frequente no ritual dos botecos cariocas, nesses eventos observei que manter sempre cheios os copos do circuito mais próximo de amigos e parentes era vivenciado como um compromisso moral por parte do aniversariante.

Na época “do voo”, o consumo abundante de álcool também era frequente nos mesmos contextos recreativos, assim como entre a tripulação de um voo determinado durante os períodos de descanso. Apesar de ser um assunto menos falado abertamente, o consumo excessivo de álcool e outras drogas tornava-se ocasionalmente um problema entre colegas, assim como para a direção da companhia. Foi somente ao longo da etnografia, das conversas mais triviais e dos escritos de antigos tripulantes que fui percebendo o quanto esta era uma questão espinhosa, um velho assunto do qual não se fala muito abertamente.

Justamente devido ao seu caráter velado, nas entrevistas que realizei com antigos funcionários da Varig, somente expressões muito indiretas faziam algum tipo de alusão à questão. Um desses raros momentos aconteceu quando uma interlocutora estava me falando sobre a estrita vigilância da companhia em relação à apresentação pessoal, diferentemente da pouca responsabilidade assumida quanto ao consumo de álcool por parte dos funcionários. Para ela, a Varig tinha uma “coisa meio exército” de controlar os horários, o cabelo, o respeito pela autoridade; mas esse era um tipo de disciplina “no trato com o passageiro”, que elas aprendiam a respeitar e a conduzir. A questão do peso e da magreza do corpo, porém, chegava a ser “absurda”, a ponto de esse tipo de controle ser mais rigoroso que a preocupação com outros “problemas de saúde”, como o alcoolismo.

Hábito cultural histórico e disseminado, o consumo de álcool não é sempre e por si só um problema. No campo antropológico, trata-se de um tema bastante estudado e debatido em relação aos povos indígenas. Convencionalmente chamado de “alcoolismo indígena”, esse consumo tem sido considerado um dos maiores problemas enfrentados pelos índios em seu cotidiano e, com frequência, tem sido alvo dos programas de Saúde Pública. No entanto, até que ponto esse é um problema do mesmo tipo para os indígenas e para os brancos? Esta é uma questão a ser respondida, como aponta Camila de Caux (2011). Segundo reflete a autora a partir de um breve trabalho de campo com os Asurini do rio Tocantins, as bebedeiras eram para eles um grande sofrimento, uma dificuldade, e também um “tema”, isto é, algo que ocupava seus pensamentos e os preocupava. De certo modo, configurava, sim, um problema. Porém, para Caux, não era tão claro se esse problema dos Asurini era o mesmo que o dos funcionários dos órgãos públicos, da Escola ou, ainda, dos habitantes da cidade vizinha, que poucas relações mantinham com os índios em seu cotidiano.

Esta reflexão nos permite ponderar sobre alguns contornos do “problema do consumo de álcool” em nossa própria cultura, cambiantes histórica e geograficamente. Entre nós, o consumo “desejável”, “apropriado” ou “legal” de álcool tem lugares e momentos específicos. Geralmente entendido como meio de descontração, relaxamento e divertimento, e aceitando que ele produz algum tipo de entorpecimento das funções motoras e intelectuais, o álcool é normalmente relegado aos momentos recreativos e de descanso. O consumo realizado fora desses limites espaço-temporais pode ser entendido como transgressor ou diretamente delituoso. Em lugares como o interior de um avião, durante o voo, o consumo de álcool é permitido e viabilizado aos passageiros, e completamente interditado à tripulação. Pilotos e comissários são responsáveis pela segurança do voo e dos passageiros a bordo e a ingestão de bebidas alcoólicas representa um risco para o correto desempenho dessas funções. Neste aspecto o consumo de álcool representa, sim, um problema para todos os atores envolvidos (autoridades competentes e tripulação), e são estes os motivos por trás da evitação e do relativo silêncio em relação ao tema.

Ainda assim, o problema do alcoolismo na aviação sempre existiu e, mais ou menos tardiamente, foram adotadas rigorosas medidas para controlá-lo. Nas poucas ocasiões em que o tema emergiu durante meu trabalho de campo, ouvi breves comentários sobre os possíveis motivos desse excessivo consumo, entre os quais se mencionava a facilidade de acesso a bebidas, disponíveis no próprio avião para o consumo dos passageiros, assim como nos freeshops que esses trabalhadores devem literalmente atravessar no dia a dia do oficio; os problemas de sono que afetam os aeronautas, submetidos a frequentes variações nos fusos horários, assim como a distância e a constante ausência da família e dos afetos. Nesse sentido, é interessante apontar que a atitude pelo menos hesitante da companhia em relação a tais comportamentos, mencionada pelos funcionários como o hábito de “fazer vista grossa”, “se preocupar mais com o peso”, não seria exclusiva da aviação.

Em estudos realizados na Marinha do Brasil, a instituição naval tem um posicionamento dúbio, ora cultivando as tradições navais que requerem a libação, ora aplicando punições pelos erros no trabalho decorrentes dessa prática, como atestam Halpern e Leite (2015HALPERN, Elizabeth & LEITE, Ligia M. C. 2015. “Tradições e punições: A cachaça do marujo e o uísque do comandante”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, 8 (2):357-388.). Segundo estes autores, apesar de pioneira no tratamento desta questão, tendo criado em seu Hospital Central um Centro de Dependência Química, as medidas administrativas e punitivas da Marinha carecem de critérios claros, evidenciando-se diferenças nos modos de beber entre as “praças” e os “oficiais”.18 18 “Praças” e “oficiais” remetem à ordenação hierárquica dos cargos na Marinha, em que “oficial” corresponde ao grupo hierarquicamente superior (subdividido em almirantes e tenentes), e “praças”, aos agrupamentos inferiores (subdivididos em marinheiro, soldado, cabo, sargento e suboficial). Entendimentos contrapostos sobre os prejuízos causados pelo consumo excessivo de álcool acabam assim sendo reproduzidos pela ação e a omissão da instituição.

Vestígios de tradições militares são notáveis na aviação comercial, em uma variedade de aspectos que incluem as classificações e as nomeações hierárquicas (como “comandante”, e o próprio “comissário”), o “nome de guerra” que recebem os tripulantes quando são aprovados no curso, além de certas características dos uniformes, assim como todo um manual menos explícito de códigos de honra, lealdade, traição e segredo. Na época em que meus interlocutores voavam, o consumo de psicoativos fazia parte dessa tradição de cumplicidade, segundo a qual colegas e empresa lidavam silenciosamente com os casos problemáticos, afastando-os temporariamente das funções com pretextos dissimulados. Uma atitude mais determinada levou a enrijecer os controles na atualidade, obrigando os tripulantes a se submeterem constantemente a exames, a ponto de ser difícil beber, inclusive fora do trabalho (sobretudo quando o tempo de descanso entre voos é reduzido), como me disse um dia uma interlocutora, não sem certo desprezo pela restrição.

Cativante, aprazível, relaxante e companheira (em solidão, ou mesmo na presença de outros), a “cachaça” faz parte da sociabilidade normal e patológica - no sentido durkheimiano, mas também biomédico - do mundo da aviação, como em muitos outros. Durante o trabalho de campo e nas entrevistas, no entanto, eu ouvi falar de “cachaça” num sentido muito mais específico e, para nós, menos corrente: aquele que compara a aviação, como trabalho e como modo de vida, à “cachaça”. Metáfora temporal e afetiva, quando a aviação se transfigura em cachaça, converte-se numa força encantadora e devoradora, que seduz e consome tudo: corpo, mente, afetos e, principalmente, tempo. É essa aflição em relação ao consumo dos anos que chama a atenção nos dois fragmentos de entrevistas que cito na continuação.

O primeiro depoimento é de Raissa, mulher branca, de 55 anos, nascida em Porto Alegre, mas “carioca” por autodefinição. Proveniente de uma “família de tripulantes” - pai comandante, tio comandante, tia comissária, marido comissário e filho comandante -, somente não entraram para a aviação sua mãe, “porque naquela época não podia”, e sua filha mais nova, de 24 anos, nascida no seu segundo casamento. Sobre sua trajetória profissional, Raissa que é psicóloga e atualmente trabalha com orientação vocacional, opina que “a gente pode abrir o horizonte para várias coisas”: ela “com certeza seria uma ótima professora, ou antropóloga”, pois gosta de estudar “o comportamento, o homem”. A aviação, no entanto, nunca foi seu objetivo. Ela sabia bem o tipo de vida que as pessoas da aviação levavam e “não queria isso para [ela]”. Ainda assim, com 17 anos e um filho pequeno, precisava trabalhar, e a aviação lhe oferecia um caminho mais “fácil” e um sustento mais rápido do que a psicologia. Em suas palavras:

Era, era natural, né? Uma família de advogados, uma família de médicos, era natural. Não tinha uma coisa assim... Apesar de que eu lutava um pouco contra, sabe? O voo. Eu lutava muito assim, eu não queria! Eu queria ser, assim, eu queria uma coisa mais fácil pra mim! No final, foi aquela coisa, uma cachaça! No final, você vai ficando, quando vê, passou um ano, quando vê, ah nas férias você viaja, e a minha vida lá dentro era muito boa! Por conta desse diferencial, eu fazia a rota Los Angeles, fazia três voos por mês! [Pequena pausa; expressão de incredulidade] Três voos por mês. Entre um voo e outro eu ia pra Fernando de Noronha! Entendeu? Eu entrei não querendo. Eu entrei querendo sair. Eu entrei, assim, não querendo ficar, querendo fazer minha carreira como psicóloga. Mas fui ficando, fui ficando, e é boa a aviação! É bom. Hoje meu filho é tripulante da X.19 19 Omito o nome da empresa para conservar o anonimato de minha interlocutora e sua família.

Esse sentimento ambíguo, tão marcado no relato de Raissa que, apesar de evitar a aviação, foi finalmente capturada - depois de tudo, a vida na aviação era “muito boa” - é o núcleo significativo da metáfora da aviação como cachaça. Ele aparece também no relato de Ana Beatriz, mulher negra, de 55 anos, moradora de Copacabana, comissária de bordo “na ativa” na atualidade. Em nossa entrevista, gravada no salão em função do curto tempo de descanso entre os preparativos para o próximo voo, Ana me contou sobre um relacionamento que teve por alguns anos com um colega de voo, que não deu certo porque ele era “muito louco”. Diante da minha surpresa por terem morado juntos cinco anos, ela respondeu rapidamente que na aviação esse tempo não passa da mesma forma, porque grande parte do mês “você está voando” e, se as folgas “não batem”, você pode passar longos períodos sem ver a outra pessoa. Até esse momento, depois de meia hora de conversa, de conhecer sua rotina e suas preocupações hoje em dia, eu imaginava que Ana não tinha filhos, mas o assunto não tinha surgido. Foi então que aproveitei o tema e, quase afirmando, perguntei: “mas você não foi mãe?”. Ela me respondeu que não, “graças a Deus”:

Eu digo assim “graças a Deus não” porque... eu não conseguiria cortar vínculo com ela [a outra pessoa]. Porque eu, até pra isso eu tenho que agradecer a Deus. Porque eu vejo que tem pessoas que, assim, fazem um filho com alguém, e quando acaba o relacionamento, o homem não prestava, não sei o quê, e o filho paga. E eu não seria uma pessoa assim. Então, eu teria que carregar aquele homem na minha frente pelo resto da minha vida. Então, graças a Deus, eu não tive esse problema, porque seria um problema, né? Porque teria que ficar... porque filho é pra sempre, né?

- Mas isso, no momento de escolher a profissão, foi uma questão? Porque dizem muito isso, que comissário não pode ter família...

Então, sabe, quando você vai, entra direto num navio, e vai? Eu fui. Assim, você está falando uma coisa que eu fico me questionando, como se passaram trinta anos? [Pequena pausa] Só que aquela coisa, quando você escolhe a aviação, você está casada com ela. Porque aquilo ali é uma cachaça, tá entendendo? E que você até prefere e, sem saber, você abre mão de uma vida pra voar. É sem querer. Você não sabe o que está acontecendo. Hoje, que já se passaram muitos anos, eu olho pra trás e “ai, meu Deus, isso”. Po, eu ‘tava ali naquele barco, mas não ‘tava nem, tá?

É verdade que, até certo ponto, qualquer retrospecto, no qual somos colocados na situação de ter que dar conta de nossa vida, nos submete a uma relação específica com o passado, em que a passagem do tempo nos pega de surpresa. Mas existe algo do efeito da contingência, da crise ou ruptura, que é específico desse relato. Nessa direção, é necessário considerar que se o testemunho constitui uma via de acesso ao estudo da mudança, ele próprio é produto dessa mudança (Balán & Jelin 1979BALÁN, Jorge & JELIN, Elizabeth. 1979. “La estructura social en la biografía personal”. Estudios Cedes, 9 (2):23-38.). Para Leclerc-Olive, os eventos marcantes são os pontos nodais da experiência biográfica, pois é no momento em que as representações incorporadas de si, da sociedade e do mundo são desestabilizadas que o sujeito se interroga, interpreta, tenta produzir um sentido e novas representações (Leclerc-Olive 2010:334LECLERC-OLIVE, Michèle. 2010. “Enquêtes biographiques entre bifurcations et événements. Quelques réflexions épistémologiques”. In: M. Bessin (org.), Bifurcations: Les sciences sociales face aux ruptures et à l’événement. “Recherches”. Paris: La Découverte .).

A falência da Varig, apontada invariavelmente como o grande “trauma” da vida desses funcionários, estabelece um marco temporal que divide um passado de abundância e júbilo de um futuro de desilusão e fatalidade. Atribuindo um novo significado às transformações da experiência temporal (Fassin & Rechtman 2009), o trauma da falência deixou marcas no presente (transtornos físicos e mentais, degradação econômica e social) que se projetam num futuro frustrado. Assim, enquanto estava “naquele barco”, apaixonada e embriagada, Ana Beatriz não parava para pensar nas coisas de que teve que “abrir mão” para permanecer na aviação; também para Raissa era só “ir ficando”, desfrutando dessa boa vida. Mas quando a Varig parou de funcionar, passado e futuro irromperam no presente. Nesse sentido, Visacovsky (2019VISACOVSKY, Sergio E. 2019. “Futuros en el presente. Los estudios antropológicos de las situaciones de incertidumbre y esperanza”. Publicar, XVI (XXVI):6-25.) recorre a Goffman do frame analysis para apontar que a normalidade como aparência, como pressuposto normativo da ação social, emerge nitidamente quando o futuro se torna incerto, quando o sentimento de continuidade do fluxo da vida parece se perder. Essas rupturas produzem uma deslocação parcial ou massiva da vida cotidiana, da ordem e da normalidade que as pessoas atribuem ao mundo, são eventos críticos (Das 1995DAS, Veena. 1995. Critical events: An anthropological perspective on contemporary India. Delhi: Oxford University Press.) que redefinem as categorias vigentes, com as quais até então se dava ordem e sentido à realidade.

Navios

Chegamos assim à terceira metáfora e desta vez o céu é substituído pelo mar, e o ato de voar pelo de navegar. Se a Varig foi para muitos uma “mãe”, quando ela faliu, a imagem que predominou foi a de navio; e não qualquer navio, mas o próprio Titanic, colidindo contra um iceberg e se afundando no oceano. Sendo um pouco mais precisos, é possível verificar que na metáfora da “orquestra do Titanic” o foco não é colocado no navio, mas na relação entre este e o sujeito: a orquestra. Assim, quando antigos funcionários da Varig utilizam essa metáfora, reforçam o ato heroico de ter permanecido na empresa até o final, mesmo quando a água começava a invadir o salão e “o navio afundava a pique”. Fidelidade, lembremos, era um dos principais valores perseguidos pela direção. Como observa Claudia Vasconcelos, transmitindo um espírito de congregação, a companhia inculcava nos aprendizes a meta a ser alcançada, “que era basicamente atender ao passageiro de forma a conquistá-lo, transformando-o em cliente fidelizado” (2011:22VASCONCELOS, Cláudia. 2011. A Estrela Brasileira. Petrópolis: KindleBookBr.).

Não me debruçarei extensamente nesta última metáfora, à qual me dediquei com bastante atenção em outro lugar (Castellitti 2019bCASTELLITTI, Carolina. 2019b. “O naufrágio da Varig: bifurcações biográficas, desilusão e quebra do futuro”. Revista Latinoamericana de Antropología del Trabajo, v. 3, p. 5-30.). No entanto, para entender o drama representado pela falência é necessário considerar que, do ponto de vista dos funcionários, os desafios enfrentados pela empresa no começo dos anos 2000 não constituíam um cenário inédito. Desde os anos 1990, com a eleição de Collor, foram introduzidas no país mudanças no setor, que começaram com o fim da exclusividade da Varig na designação para voos internacionais e com a privatização da Vasp. Do ponto de vista da política macroeconômica, segundo Monteiro (2007MONTEIRO, Cristiano F. 2007. “A Varig e o Brasil, entre o desenvolvimento nacional e a competitividade global”. Civitas: Revista de Ciências Sociais, 7 (1).), iniciou-se o tempo das medidas de controle da inflação via redução na demanda, o que levaria a década de 1990 a ser uma segunda década perdida em termos de crescimento econômico. Com uma estrutura expandida que não correspondia à realidade da demanda, em 1992, pela primeira vez, a empresa teve que promover um expressivo corte de funcionários.

Assim, passando a se retratar como uma empresa global, integrada ao mercado mundial através de parcerias, ao mesmo tempo em que priorizava os resultados financeiros e não mais se apresentava como “empresa a serviço do país”, a Varig atravessou uma década instável, com momentos de crises e fases de recuperação. No entanto, mesmo com essas reestruturações, para parte significativa da sociedade brasileira, a Varig continuava sendo uma empresa robusta, moderna e com projeção internacional. Talvez por isso, a imprevisibilidade da crise é salientada nos discursos, minando a capacidade dos funcionários de se anteciparem aos efeitos perturbadores dessa contingência. Talvez todo evento crítico ou bifurcação implique certa dose de imprevisibilidade e irreversibilidade (Grossetti 2010GROSSETTI, Michel. 2010. “Imprévisibilités et irréversibilités: les composants des bifurcations”. In: Marc Bessin; Claire Bidart & Michel Grossetti (dirs.), Bifurcations. Les sciences sociales face aux ruptures et à l’événement. “Recherches”.Paris: La Découverte .), ou quiçá ficar até o final representou “um último acto [sic] de obstinação e de honra”, como o dos músicos da orquestra do Titanic que prosseguiram na execução da música “já com água a invadir os instrumentos e a bloquear a sua acústica, numa sonoridade cada vez mais imperfeita e variável” (Bogalheiro 2015: s/pBOGALHEIRO, Manuel. 2015. “O Naufrágio como metáfora da contingência: um ensaio a partir de ‘The Sinking of the Titanic’ (1969) de Gavin Bryars”. Interact: Revista on-line de Arte, Cultura e Tecnologia. Disponível em: Disponível em: http://interact.com.pt/22/naufragio-bryars/ . Acesso em 03/01/2018.
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).

As próprias ciências sociais, mais preocupadas com as regularidades dos processos sociais do que com as eventualidades da existência, deram pouca atenção ao carácter imprevisível, instável e, no entanto, irreversível de certos acontecimentos, sendo assim relegados aos caprichos do acaso. Segundo um grupo de estudiosos franceses dedicados recentemente a uma pesquisa exploratória e interdisciplinar sobre os eventos e as bifurcações (Bessin; Bidart & Grossetti 2010BESSIN, Marc; BIDART, Claire & GROSSETTI, Michel (dirs.). 2010. Bifurcations. Les sciences sociales face aux ruptures et à l’événement. “Recherches”. Paris: La Découverte.), preocupada com as causalidades, os efeitos de estrutura, as regularidades e os processos contínuos, a sociologia (assim como a história e a economia) elaborou poucos conceitos e ferramentas capazes de auxiliar na análise das mudanças mais bruscas e imprevisíveis, mudanças estas que permitiriam interpretar situações de ruptura de percursos, de contingência e eventualidade.

Mais recentemente, e de forma paralela à emergência das perspectivas biográficas, à noção de carreira e àquela associada de turning point (Hughes 1984HUGHES, Everett C. 1984. The Sociological Eye: selected papers. New Brunswick: Transaction.), o aumento crescente do interesse pela contingência e o risco está relacionado à dinâmica das transformações sociais contemporâneas. Neste sentido, Giddens também aponta que a aceleração do ritmo das mudanças sociais e a expansão de sua abrangência geográfica, junto com a supressão das barreiras da comunicação, são as principais características da modernidade radicalizada ou reflexiva (Giddens 1993). Sintoma fundamental dos imponderáveis da vida social, o risco chegou a caracterizar um tipo social na teoria do sociólogo alemão Ulrich Beck, designando uma fase no desenvolvimento da sociedade moderna caracterizada pelo retorno da incerteza, a reflexividade como autoconfrontação e a individualização como forma social compulsória (Beck 2012:32).

Por parte da antropologia, bem recentemente, se reconheceram esforços para abandonar um uso não reflexivo da categoria crise, explorando os modos como os partícipes da vida coletiva percebem, pensam, nomeiam e agem em situações sociais entendidas como críticas (Das 1995DAS, Veena. 1995. Critical events: An anthropological perspective on contemporary India. Delhi: Oxford University Press.; Roitman 2014ROITMAN, Janet. 2014. Anti-Crisis. Durham/London: Duke University Press.; Visacovsky 2011VISACOVSKY, Sergio E. (comp.) 2011. Estados críticos. La experiencia social de la calamidad. La Plata: Ediciones Al Margen.). No contexto brasileiro, podemos destacar a recente etnografia de Lucas de Magalhães Freire (2019FREIRE, Lucas M. 2019. A gestão da escassez: uma etnografia da administração de litígios de saúde em tempos de “crise”. Tese de Doutorado em Antropologia Social, PPGAS-Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro.) sobre a administração de litígios de saúde em tempos de “crise” no Rio de Janeiro, que o levou a observar como a crise produz um enquadramento da realidade social utilizado para justificar uma série de medidas e decisões acerca dos rumos das políticas nos âmbitos municipal, estadual e até mesmo federal. Longe de ser um evento excepcional, a “crise” constituiria o ponto crítico de um modo de governo que se faz por meio da produção incessante da escassez. A partir do contexto argentino contemporâneo, o antropólogo Sergio Visacovsky (2019VISACOVSKY, Sergio E. 2019. “Futuros en el presente. Los estudios antropológicos de las situaciones de incertidumbre y esperanza”. Publicar, XVI (XXVI):6-25.) observa que os estudos antropológicos do risco e da incerteza receberam um forte impulso do pujante campo de estudos sobre desastres e catástrofes, embora a questão de como os agrupamentos humanos respondem ao contingente e ao inesperado possa ser rastreada até etapas preliminares do desenvolvimento da disciplina. Assim, traça um percurso que vai das observações de Malinowski sobre a magia entre os Trobiandeses e de Evans Pritchard sobre a bruxaria e a consulta ao oráculo entre os Azande até as reelaborações de Lévi-Strauss sobre o mito como aparência de estabilidade e ilusão de atemporalidade, e de Sahlins sobre o modo como certos relatos arquetípicos tornam possível a experiência presente, denominados como mito-práxis.

Inspirados por estas pesquisas, cujas agudas reflexões poderiam ser desenvolvidas em direções que nos afastariam demais dos limites deste artigo, podemos observar que a incerteza, enquanto traço constitutivo da vida humana, não estava excluída da cotidianidade dos funcionários da Varig. Desde o começo de sua formação, eles eram treinados para enfrentar com celeridade e eficiência todo tipo de acidentes. Tratava-se, no entanto, de um treinamento focado na contingência da técnica. Cabe aqui traçar de novo uma comparação com o Titanic, cujo naufrágio, para além do profundo trauma das perdas humanas, constituiu uma espécie de derrota da civilização tecnológica, na medida em que tinha sido anunciado como impossível de afundar. Como aponta Bogalheiro:

a mitologia popular apregoara que nem os próprios deuses conseguiriam afundar esse prodígio náutico da técnica moderna. O naufrágio viera, todavia, comprovar, de forma dramática, a impossibilidade de a intenção humana conter toda a escala de possibilidades que podem determinar o curso de um evento. Terá também residido aí o facto [sic] de a derrota da magnitude do Titanic ter reavivado toda uma mitologia do desafio e da superação (Bogalheiro 2015: s/pBOGALHEIRO, Manuel. 2015. “O Naufrágio como metáfora da contingência: um ensaio a partir de ‘The Sinking of the Titanic’ (1969) de Gavin Bryars”. Interact: Revista on-line de Arte, Cultura e Tecnologia. Disponível em: Disponível em: http://interact.com.pt/22/naufragio-bryars/ . Acesso em 03/01/2018.
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).

Na Varig, a vulnerabilidade da técnica poderia, até certo ponto, ser contornada pelo profissionalismo dos funcionários, tanto pilotos quanto comissários. Existem de fato muitas histórias sobre ações mais ou menos heroicas empreendidas por eles para evitar pequenos e grandes acidentes. Poderíamos chegar a afirmar que esses componentes técnicos e míticos fazem parte da missão do aeronauta como vocação, no sentido weberiano. Mas a contingência maior do fim da companhia e de toda uma vida de “dedicação” a ela ficava certamente excluída das possibilidades de futuro imaginadas.

Considerações finais

As metáforas fazem parte da atividade dos cientistas sociais, e estão presentes de um ou do outro lado da prática de pesquisa: emergem como dados empíricos relevantes quando são utilizadas pelo chamado discurso nativo, mas também fazem parte das ferramentas de que abrimos mão para dar inteligibilidade a esse discurso. Em ambos os casos, as metáforas funcionam somente quando fazem sentido; e funcionam precisamente criando sentidos. Nas palavras de Sahlins, “é no nível da fala que a história é feita [...]. Os signos, portanto, assumem valores funcionais e implicativos num projeto de ação [...]. Eles estão sujeitos à análise e recombinação, das quais emergem formas e significados sem precedentes (metáforas, por exemplo)” (2008:23SAHLINS, Marshall. 2008. Metáforas históricas e realidades míticas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.).

Metáforas são, então, recombinações de signos que forjam significados, na eterna conformação das práticas através da cultura, e da cultura através das práticas. Tendo em conta isso, através de uma etnografia com funcionários de uma antiga companhia de aviação brasileira, tivemos acesso aos significados da carreira, do trabalho, da crise e da desilusão que significou a falência. Nesse sentido, falar do universo empresarial brasileiro por meio desses discursos resulta quase artificial, pois a imagem de empresa é esvaziada nessas representações, praticamente esmagada por uma imagem superior, que a excede: a de “patrimônio da nação”. Paradoxalmente, as poucas vezes em que ouvi falar da Varig como uma empresa foi para compará-la à Petrobras: um capital que pertence à nação brasileira, símbolo da riqueza e do progresso econômico do país.20 20 Na época da falência, o escritor Zuenir Ventura publicou um pequeno texto no jornal O Globo que sintetiza de forma magistral essa representação. Reconhecendo a inviabilidade da situação financeira da companhia, e inclusive eximindo dessa responsabilidade o governo, Ventura lamenta o desfecho da empresa expressando: “há marcas comerciais que se identificam de tal maneira com o país que chegam a fundir e confundir seus interesses. Pode ser exagerado dizer que a Varig é a nossa Coca-Cola - talvez a Petrobras seja mais - mas não há dúvida de que ela é o que o próprio Lula classificou em 2003 de ‘marca estratégica’” (Ventura 2006). Nessa direção, se a Varig era como uma mãe, generosa e protetiva, e ao mesmo tempo como um enorme transatlântico, símbolo da superação tecnológica característica da sociedade moderna, sua queda é resultado de um fracasso que, do ponto de vista dos funcionários, nunca poderia ser um fracasso da própria empresa.

A recuperação judicial da Varig, em 2005, as demissões em massa e o encerramento das atividades da empresa, em 2006, se deram numa conjuntura nacional de reativação do setor. Segundo Monteiro (2009MONTEIRO, Cristiano F. 2009. “Estado e mercado no transporte aéreo brasileiro pós-reformas”. Política & Sociedade, v. 8, n. 15:117-143.), enquanto na virada para a década de 2000 a agenda do transporte aéreo estava fortemente marcada pelo debate sobre a crise das empresas, entre 2005 e 2007 observa-se um vigoroso crescimento dos indicadores, tanto das empresas individualmente quanto do setor como um todo. Sem entrar no debate sobre as conflitivas negociações entre o Executivo nacional e a direção da Varig, do ponto de vista dos trabalhadores o que sobrou foi a negativa do presidente Lula de “prestar auxílio” à empresa. Durante meu trabalho de campo, embora as pessoas dificilmente dominassem os labirintos jurídicos da falência, o sentimento de decepção me foi constantemente afirmado com a frase: “um presidente que vem do Partido dos Trabalhadores deu as costas aos trabalhadores da Varig”. Assim, em razão das acusações de corrupção que cercaram os últimos anos do governo Lula e durante o golpe de Estado contra a presidenta Dilma Rousseff, observei como essa decepção se transmutou em raiva, compondo os repertórios do coletivo de atingidos que, frequentemente, participaram das manifestações na Praia de Copacabana a favor do impeachment e, mais adiante, manifestaram seu apoio à candidatura de Jair Bolsonaro à Presidência do país.

Essa conjuntura mais recente exige um esforço empírico que foge dos limites iniciais de minha pesquisa. Considero-a somente porque me parece que ela nos permite traçar algumas hipóteses sobre o modo como a constituição de regimes específicos de subjetividade a partir de uma experiência de “crise” pode decantar em repertórios políticos específicos. Como observa Visacovsky, uma consequência importante que lançam os estudos antropológicos sobre a incerteza e a esperança “é a necessidade de entender que aquilo que determinados conjuntos sociais imaginam como ‘futuro melhor’, como resposta a um presente crítico, pode se distanciar enormemente dos nossos desejos como pesquisadores ou militantes” (2019:20VISACOVSKY, Sergio E. 2019. “Futuros en el presente. Los estudios antropológicos de las situaciones de incertidumbre y esperanza”. Publicar, XVI (XXVI):6-25.). Nessa direção, as metáforas analisadas neste texto nos permitiram observar como a crise da Varig significou, para os funcionários, o desvanecimento do projeto profissional e da esperança depositada no futuro, numa conjuntura em que estava em implantação um novo pacto nacional (Bresser-Pereira 2013BRESSER-PEREIRA, Luiz C. 2013. “Empresários, o governo do PT e o desenvolvimentismo”. Revista de Sociologia e Política, v. 21, n. 47:21-29) que os deixava de fora. Nesse sentido, mesmo aqueles que conseguiram se reinserir no setor em alguma das nascentes companhias aéreas comprovaram amargamente que essa nova aviação tipo “escritório” os desvalorizava e “humilhava”. Para finalizar, podemos lançar mão de uma última metáfora, a do avião da Varig como símbolo de progresso e modernidade21 21 De forma semelhante, Achille Mbembe e Janet Roitman falam do automóvel como atributo e metáfora do progresso em Camarões até meados dos anos 1980, considerada uma terra plena de recursos econômicos, como petróleo, madeira, cação, café e algodão (1995:329). - que não deixa de ser um símbolo de prestigio e classe - e de sua queda como o fracasso de uma identidade nacional singular, que a conjuntura política brasileira atual poderia - para um setor da sociedade - fazer renascer.

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Notas

  • 1
    A Varig - Viação Aérea Rio-Grandense - foi uma companhia de aviação brasileira fundada pelo imigrante alemão Otto Ernst Meyer em 1927, na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Alcançando uma posição de liderança entre as décadas de 1960 e 1980, operava rotas internacionais para América, Europa, África e Ásia, utilizando inicialmente os Lockheed Constellation e Douglas DC-6, posteriormente os Boeing 707 e Sud Aviation Caravelle e finalmente com os Douglas DC-10 e Boeing 747. Com a expansão, seus principais centros operacionais foram instalados em Rio de Janeiro e São Paulo, onde até hoje mora grande parte dos antigos funcionários da companhia. Angariando dívidas desde os anos finais da década de 1990, a Varig entrou em processo de recuperação judicial em junho de 2005 e, em 2006, teve grande parte de sua estrutura leiloada. Nesse ano foram realizadas demissões em massa e a empresa praticamente parou de funcionar, embora a falência da porção restante só tenha sido declarada em 2010. Os funcionários que estavam em exercício em 2006 foram lesados com meses de salários atrasados (e nunca pagos) e o não cumprimento das rescisões trabalhistas. Para agravar o cenário, o fundo de previdência “Aerus” sofreu a intervenção da justiça no mesmo período. Os funcionários continuam lutando até hoje pelos direitos trabalhistas e previdenciários lesados. Para uma história mais detalhada da companhia, ver: Fay 2001FAY, Claudia M. 2001. Crise nas alturas: a questão da aviação civil (1927-1975). Tese de Doutorado em História, UFRGS.; Helms 2010HELMS, Henrique. 2010. O panorama da aviação nacional de 1986 a 2006 e a quebra da Varig. Dissertação de Mestrado em História, FFCH, PUC-RS.; e Monteiro 2007MONTEIRO, Cristiano F. 2007. “A Varig e o Brasil, entre o desenvolvimento nacional e a competitividade global”. Civitas: Revista de Ciências Sociais, 7 (1)., 2008MONTEIRO, Cristiano F. 2008. “Empresários e ação política no contexto das reformas para o mercado: o caso da aviação comercial”. Revista de Sociologia Política, 16 (nº supl.):159-180., 2009MONTEIRO, Cristiano F. 2009. “Estado e mercado no transporte aéreo brasileiro pós-reformas”. Política & Sociedade, v. 8, n. 15:117-143., 2011MONTEIRO, Cristiano F. 2011. “Political Dynamics and Liberalization in the Brazilian Air transport industry: 1990-2002”. Brazilian Political Science Review, 5 (1):35-53..
  • 2
    Neste artigo serão utilizadas aspas duplas para citações e termos ou expressões êmicas. O itálico será utilizado para palavras estrangeiras, conceitos analíticos próprios ou dos autores citados, bem como para enfatizar alguns pontos do texto.
  • 3
    Segundo Monteiro (2007MONTEIRO, Cristiano F. 2007. “A Varig e o Brasil, entre o desenvolvimento nacional e a competitividade global”. Civitas: Revista de Ciências Sociais, 7 (1).), ao idealizar a fundação, Berta lançou mão de um discurso orientado pela doutrina social da Igreja Católica e recebeu o apoio de líderes trabalhistas para um projeto de “capitalismo social” no qual os trabalhadores se tornariam proprietários da empresa.
  • 4
    Trabalho de campo desenvolvido entre 2015 e 2017 em proximidade com diferentes “subgrupos” do grande coletivo de trabalhadores da Varig, principalmente mulheres, mas também homens, comissárias e comissários de bordo, que trabalharam na empresa no período 1975-2006, aproximadamente. Toda a pesquisa foi desenvolvida a partir do diálogo estreito com uma “informante-chave” que pertence a esse universo e com quem mantenho um vínculo familiar. Trata-se de minha tia, nascida em São Paulo em 1955, que começou sua trajetória na aviação trabalhando no aeroporto de Congonhas, e veio para o Rio de Janeiro em 1978 para tentar o processo seletivo na empresa Cruzeiro do Sul. Pouco tempo depois, essa empresa foi absorvida pela Varig, e foi assim que minha tia acabou sendo comissária de bordo da Varig durante 25 anos, até a falência. A maior parte dos contatos para as entrevistas foi realizada por ela (embora também tenha entrevistado pessoas apresentadas por colegas de doutorado), e foi com ela que assisti à maioria de comemorações, encontros e protestos. Foi ela também quem me advertiu, desde o momento inicial de concepção da pesquisa, sobre o papel exorbitante que teria a falência nos relatos dos funcionários da Varig, tanto que, segundo ela, se meu interesse fosse me concentrar na profissão de comissário, talvez fosse melhor escolher outra empresa. Assim, o caráter marcante da falência, estruturando o “antes” e o “depois” das histórias de vida desses aeronautas, foi um dado fundamental ao longo da pesquisa. Analiso alguns dos desafios e implicações de realizar pesquisa na própria família em Castellitti (2018:18-26CASTELLITTI, Carolina. 2018. A carreira de comissária de bordo na Varig: processos de individualização feminina em contextos urbanos. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional/UFRJ.).
  • 5
    Em se tratando de uma empresa de mais de setenta anos de trajetória, que chegou a controlar outras 13 empresas (como a rede de hotéis Tropical, e outros serviços de turismo), é difícil achar fontes fidedignas que deem um detalhamento da dimensão dos recursos humanos empregados. Pereira (1987PEREIRA, Aldo. 1987. Breve história da aviação comercial brasileira. Rio de Janeiro: Europa Empresa Gráfica e Editora.) oferece algumas estimativas interessantes até 1985, como horas e quilômetros voados, frota, número de passageiros transportados, entre outros. Segundo este autor, em 1985 a Varig tinha um total de 19.383 empregados, a maioria aeroviários (16.303) e o restante, aeronautas (3.080). Para atualizar esta informação, nos valemos de fontes jornalísticas que afirmam que, no momento da falência, a Varig contava com 9.485 funcionários (Estadão 2006). Tendo isso em conta, quando me refiro aos “trabalhadores da Varig” no plural, não estou fazendo nenhum tipo de generalização estatística. No entanto, a utilização desse coletivo se justifica a partir dos sentidos construídos pelos próprios trabalhadores, que constantemente afirmam um sentimento de comunidade ancorado única e fundamentalmente na passagem pela companhia. Assim, todas as segmentações identificadas na pesquisa, relativas às hierarquias (entre pilotos e comissários, por exemplo), turmas de ingresso, ou à permanência na empresa durante a falência (que hoje separa os atingidos entre aqueles que estavam “na ativa” e os aposentados) são englobadas pela identificação maior do coletivo de “variguianos”.
  • 6
    Segundo Monteiro (2007:43MONTEIRO, Cristiano F. 2007. “A Varig e o Brasil, entre o desenvolvimento nacional e a competitividade global”. Civitas: Revista de Ciências Sociais, 7 (1).), o princípio da “competição controlada” estipulava um rigoroso controle da oferta de assentos, procurando-se evitar que as empresas oferecessem voos em horários coincidentes, a menos que houvesse demanda comprovada. As tarifas eram padronizadas a partir de uma base de custos informada pelas empresas ao órgão controlador, o Departamento de Aviação Civil. O princípio de “realidade tarifária”, por sua vez, determinava que as empresas não deveriam depender de subsídios governamentais, de modo que os usuários deveriam arcar com os custos da operação, o que implicava a concentração do serviço nas classes de maior poder aquisitivo.
  • 7
    “Pessoal de terra” e “pessoal do voo” são categorias utilizadas pelos aeronautas que conheci durante a pesquisa, que remetem às diferentes ocupações dos funcionários de uma companhia de aviação no aeroporto (mecânicos, operadores de voo, despachantes e atendentes) e no avião (pilotos e comissários). Não raramente, os comissários de bordo ingressavam na empresa como “pessoal de terra” e posteriormente “passavam para o voo”, ou o contrário (quando essas pessoas decidiam ou se viam obrigadas a parar de voar por diferentes motivos, como problemas de saúde).
  • 8
    A mulher branca, do sul, magra e um pouco alta, com nível médio de instrução, simpática e um pouco submissa era o modelo de comissária de bordo predileto da Varig. Se minha intuição fosse pouco confiável neste quesito, os funcionários confirmaram essa opinião reiteradamente. Contudo, conheci e entrevistei mulheres cujos perfis e trajetórias fugiam desse padrão: mulheres provenientes de famílias pobres, filhas de mães solteiras, negras, “morenas”, com ascendência asiática também chegaram a compor o quadro de funcionários da empresa que, mesmo impondo rigorosas provas e eliminando candidatos frequentemente sem justificação, conseguiu até certo ponto transmitir a imagem de companhia que colocava “a diversidade do Brasil no interior dos seus aviões”. Procuro olhar para essas trajetórias e esses discursos a partir de uma lente interseccional em Castellitti (2018:59-67CASTELLITTI, Carolina. 2018. A carreira de comissária de bordo na Varig: processos de individualização feminina em contextos urbanos. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional/UFRJ.).
  • 9
    Os nomes próprios utilizados ao longo do texto são fictícios, com a finalidade de conservar o anonimato das fontes.
  • 10
    Expressão utilizada por uma antiga comissária de bordo em livro publicado por ela sobre a história da companhia, usando a própria trajetória como coluna dorsal (Vasconcelos 2011:22VASCONCELOS, Cláudia. 2011. A Estrela Brasileira. Petrópolis: KindleBookBr.).
  • 11
    Entre aspas no original.
  • 12
    Seria interessante aproximar esse papel ao de outra companhia de origem nacional, que também floresceu no espaço da indústria aeronáutica: a Embraer. Surgida por iniciativa do governo brasileiro dentro de um projeto estratégico para implementar a indústria aeronáutica no país, em um contexto de políticas de substituição de importações, a Embraer foi fundada em 1969 como uma sociedade de economia mista vinculada ao então Ministério da Aeronáutica. Privatizada nos primeiros anos da década de 1990, a Embraer chegou à quarta posição mundial no setor em 2012, abaixo da principal concorrente, a canadense Bombardier, da Airbus e da Boeing.
  • 13
    Nessa seção, me referirei mais especificamente às mulheres comissárias, pois se trata de discursos extraídos em grande medida das entrevistas gravadas, realizadas em sua maioria com elas.
  • 14
    A relação entre a grande cidade e a divisão do trabalho foi objeto de importantes reflexões por parte dos autores clássicos das ciências sociais, magistralmente sintetizadas por Simmel, com atenção particular ao fundamento psicológico sobre o qual se elevam os tipos de individualidade da metrópole moderna (Simmel 2005:577SIMMEL, Georg. 2005. “As grandes cidades e a vida do espírito (1903)”. Mana, 11 (2):577-591.).
  • 15
    Somente em um caso essa ausência virou objeto de reflexão (e ironia), por parte de uma interlocutora que criou sua filha sozinha, repetindo em certa medida a história de sua mãe, abandonada por seu pai durante a gravidez. Ver: Castellitti (2018:134-136CASTELLITTI, Carolina. 2018. A carreira de comissária de bordo na Varig: processos de individualização feminina em contextos urbanos. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional/UFRJ.).
  • 16
    Em uma entrevista concedida ao Arquivo Jetsite, Alice Klausz, conhecida como “a primeira comissária do Brasil” e escolhida por Ruben Berta para dirigir a Escola de Comissários da Varig, refere-se ao chefe e então presidente como uma pessoa séria, focada e exigente, que inspirava respeito e até medo. Ao mesmo tempo, utiliza a expressão “estilo paternalista de administrar” para falar da “generosidade” de Berta, que “cuidava de todos como se fossem filhos. Era austero, sim, mas era de certa forma o pai de todos” (Jetsite 2020JETSITE, Arquivo. A 1º comissária do Brasil. Disponível em: Disponível em: https://www.aviacaocomercial.net/jetsite/reportagens_1comissaria.htm . Acesso em 16/09/2020.
    https://www.aviacaocomercial.net/jetsite...
    ). Na minha pesquisa não tive como explorar melhor esses discursos, já que a maioria dos aeronautas que conheci ingressou na companhia após o falecimento de Berta. No entanto, a imagem de Berta como um trabalhador incansável é perdurável e impregna grande parte das memórias da companhia.
  • 17
    Rua do Centro da cidade do Rio de Janeiro que, sendo fechada ao trânsito de carros, é ocupada pelas mesas dos bares e restaurantes ali localizados, e que conta com atrativos musicais, como a roda de samba dos sábados. A combinação de construções históricas, música e gastronomia a converte em um grande atrativo para turistas e locais.
  • 18
    “Praças” e “oficiais” remetem à ordenação hierárquica dos cargos na Marinha, em que “oficial” corresponde ao grupo hierarquicamente superior (subdividido em almirantes e tenentes), e “praças”, aos agrupamentos inferiores (subdivididos em marinheiro, soldado, cabo, sargento e suboficial).
  • 19
    Omito o nome da empresa para conservar o anonimato de minha interlocutora e sua família.
  • 20
    Na época da falência, o escritor Zuenir Ventura publicou um pequeno texto no jornal O Globo que sintetiza de forma magistral essa representação. Reconhecendo a inviabilidade da situação financeira da companhia, e inclusive eximindo dessa responsabilidade o governo, Ventura lamenta o desfecho da empresa expressando: “há marcas comerciais que se identificam de tal maneira com o país que chegam a fundir e confundir seus interesses. Pode ser exagerado dizer que a Varig é a nossa Coca-Cola - talvez a Petrobras seja mais - mas não há dúvida de que ela é o que o próprio Lula classificou em 2003 de ‘marca estratégica’” (Ventura 2006VENTURA, Zuenir. 2006. “A estrela solitária”. Arquivo de Artigos ETC. Disponível em: Disponível em: http://arquivoetc.blogspot.com/2006/04/zuenir-ventura-estrela-solitria.html . Acesso em 17/09/2020.
    http://arquivoetc.blogspot.com/2006/04/z...
    ).
  • 21
    De forma semelhante, Achille Mbembe e Janet Roitman falam do automóvel como atributo e metáfora do progresso em Camarões até meados dos anos 1980, considerada uma terra plena de recursos econômicos, como petróleo, madeira, cação, café e algodão (1995:329MBEMBE, Achile & ROITMAN, Janet. 1995. “Figures of the subject in time of crises”. Public Culture, v. 7 (2):323-352.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    04 Dez 2019
  • Aceito
    21 Set 2020
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