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SINGH, Bhrigupati. 2015. Poverty and the quest for life: spiritual and material striving in rural India. Chicago: The University of Chicago Press. 335 pp.

SINGH, Bhrigupati. . 2015. Poverty and the quest for life: spiritual and material striving in rural India . Chicago: The University of Chicago Press. 335 pp.

Nas últimas décadas, os estudos sobre pobreza e economia na Antropologia têm cada vez mais se vinculado aos debates etnográficos acerca da categoria vida, em sua acepção fenomenológica. Em contextos de precariedade e incerteza estruturais, como as pessoas se comportam economicamente para “fazer a vida”? Como se vive na extrema escassez? O que é qualidade de vida? A partir de um trabalho de campo realizado no subdistrito de Shahabad, sudeste do Rajastão, na Índia Central, o livro de Bhrigupati SinghSINGH, Bhrigupati. 2015. Poverty and the quest for life: spiritual and material striving in rural India. Chicago: The University of Chicago Press. 335 pp. se insere nessa discussão, mobilizando novas formas de pensar e descrever as experiências de precariedade, o secularismo e o poder.

Shahabad é uma área com cerca de 236 aldeias que foi duramente afetada por dois períodos de seca que atingiram a Índia rural entre os anos de 2001 e 2003. Em virtude disso, foi caracterizada, pela mídia e pelas instituições públicas indianas, como uma zona de pobreza e subdesenvolvimento cuja imagem foi amplamente associada aos Sahariyas - antigos trabalhadores compulsórios da localidade. No entanto, ao invés de reiterar o lugar da falta e da subalternidade, o autor preferiu partir de suas próprias percepções e afetos para construir um “conhecimento antropológico expressivo” sobre a região. A perspectiva adotada é de carácter vitalista, já que a obra apresenta uma ênfase holista na potência como energia de ação para a preservação da existência. Esta, por sua vez, caracteriza-se por uma impermanência, uma oscilação fundamental em termos de intensidade, decorrente de encontros que ora aumentam, ora diminuem de energia.

Mais especificamente, Singh defende que a vida em Shahabad seria como um compósito de energias em continuum, incluindo diferentes modalidades de existência além da humana, o que faz da economia, da religião, da ética e do poder temas interconectados no livro. Tomando a ideia de “limiares”, de Gilles Deleuze, em contraposição à noção de “vida nua” (e matável), de Giorgio Agamben, o autor sugere o termo “varying thresholds of life”, com duas intenções: a primeira denota os pontos de passagem entre estados e fases da vida; a segunda diz respeito às variações e aos graus de intensidade dessas passagens, considerando mortos, espíritos, ancestrais, divindades e não nascidos como participantes do mundo dos vivos.

Concomitantemente ao esforço narrativo para apresentar alternativas às dicotomias ainda vigentes em nossa disciplina - tais como religião/secularização; riqueza/pobreza; dominação/resistência; vida/morte -, Singh faz uso de uma espécie de monismo de duplo aspecto, característico de uma tradição filosófica que privilegia o conceito de potência, de modo a construir um efeito gradiente entre tendências opostas, porém relacionadas. Isto posto, a primeira metade de Poverty and the Quest for Life é dedicada ao tópico do poder, através das noções de soberania e agonismo. Já na segunda, o foco é uma antropologia da ética, desvelando como as expectativas e os relacionamentos potencialmente hostis entre os Sahariyas e seus vizinhos não se explicam apenas em termos de dominantes e dominados, mas sim por meio de uma intimidade conflitiva - o que poderíamos chamar, em uma perspectiva freudiana, de um tipo de “narcisismo das pequenas diferenças”.

Enquanto poder sobre a vida, a soberania é examinada através da figura do cavaleiro sem cabeça, a divindade Thakur Baba. O autor critica certo argumento sobre a deidade que a desvaloriza enquanto forma de poder “sobrenatural” e mero reflexo de uma autoridade feudal de um tempo passado. Sobre isso, a intenção de Singh é demonstrar como o cavaleiro sem cabeça expressa uma força transladável através de uma série de contextos, em que a soberania é um tipo de relação relevante entre muitas formas hierárquicas, humanas e divinas. Analisando o relacionamento generalizado com Thakur Baba e seus santuários em Shahabad, Singh chega às seguintes conclusões. Pensar a religião é também pensar o secularismo, já que não haveria como delimitar as fronteiras entre uma esfera e outra; desse modo, a ideia de “teologia política”, elaborada por Carl Schmitt (que defende o poder soberano como conceito teológico secularizado), foi a alternativa escolhida por ele para realizar essa junção. Em contraponto, a burocracia de Estado se faz presente na vida cotidiana, não apenas como fonte de violência e punição, mas também como esperança e promessa de bem-estar.

O poder, além de disperso e fragmentado (demonstrado exaustivamente por Michel Foucault) é falho, bipolar, contraditório e sobretudo incerto. Ao longo da exposição, o leitor perceberá a copresença de forças de violência e de bem-estar, traduzida pelo binômio “mitra-varuna”. Tratadas por George Dumézil em estudos comparativos de representações indo-europeias sobre a soberania, Mitra e Varuna seriam potências de ordem religiosa que significariam, respectivamente, o pacto e a força. No resgate feito por Singh, o complexo mitra-varuna se refere às contradições sistêmicas dentro da estrutura estatal. Não se trata de uma total arbitrariedade, mas de uma oscilação entre esses polos. E se, ao invés de uma imagem hobbesiana onipotente e absoluta, pensássemos uma soberania vulnerável? É justamente isto que evidencia sua etnografia. A incoerência com que setores governamentais lidam com a questão da terra, os reassentamentos dos Sahariyas e os rearranjos subjetivos das relações de trabalho compulsório no decorrer do tempo são exemplos de como o povo de Shahabad enxerga saídas em zonas de opacidade do poder. O que pode soar um tanto parecido com um funcionalismo processualista, em que os sujeitos buscariam brechas nas leis e estratégias nas estruturas. No entanto, o autor defende uma visão de soberania como uma configuração de forças intensas que convivem no cotidiano da população, para além da corrupção e do populismo.

No que concerne à segunda parte da obra, o tema da ética ganha força com o questionamento sobre como as pessoas vivem, imaginam e ambicionam uma “vida melhor”. Indagações sobre a forma como se dariam as aspirações dos Sahariyas, bem como o quê constituiria a “qualidade de vida” da população fazem repensar o caráter estritamente econômico do termo e sua pretensa estabilidade. Seu argumento é o de que, nos termos locais, por mais que existam problemas materiais e desigualdades de poder, ser pobre não significaria necessariamente ter menos vitalidade, no sentido de energia e potência. Sendo assim, para os Sahariyas, uma “vida boa” teria menos a ver com a recusa de condições desvantajosas e mais com suas modulações ordinárias.

Singh indica a noção de “intimidade agonística” nas relações de vizinhança. Como uma espécie de “teologia política da vizinhança”, o conceito diz respeito às formas como humanos, animais e deuses se relacionam na região. Sem se limitar apenas ao conflito ou à amabilidade, o termo agon como modo de contestação é utilizado por Singh como meio de pensar a copresença do conflito e da coabitação. Logo, o que está em foco, mais uma vez, é a coexistência entre esses níveis de intensidade, uma vez que a intimidade traz em si um potencial disruptivo. Nesse contexto, ele também destaca certas formas de mediação que avivariam essas forças. É o caso, por exemplo, do sacrifício como elemento regenerador das relações entre humanos, animais e deuses, operando uma transformação moral, performada ritualmente.

Nos capítulos finais, essa mediação e a relação com as fontes de potência humana se encontram no cerne das histórias de vida de dois Sahariyas: a ativista e médium Kalli e o sacerdote Bansi. Afora suas particularidades, ambas as biografias demonstram uma flutuação de força e vulnerabilidade em suas trajetórias. O que faz com que sejam pessoas reconhecidas como lideranças não seria, necessariamente, o “carisma” ou a “agência” de suas ações. Segundo o autor, esses termos denotariam uma forma algo estática da vitalidade. Kalli e Bansi encarnam um poder suscetível cuja potência advém, justamente, da habilidade de lidar com a errância e com a debilidade. Mais que mostrar empoderamento unidirecional e condutas extraordinárias, sua intenção é evidenciar como a vida cotidiana pode ser restituída para criar momentos de plenitude, mesmo diante da escassez.

Por fim, há que se reiterar que a obra não se trata de uma visão ingênua sobre a pobreza, mas uma ode à vida em compasso - como um ritmo de energias variáveis, pendulares e desiguais. Diversas percepções, sensações e emoções estão presentes enquanto método de análise, não como uma forma de se chegar a uma “realidade”, mas como uma disposição em assumir a natureza turva e heterogênea dos fenômenos sociais com os quais o próprio autor está implicado. Logo, a importância dada à linguagem e ao contexto social enquanto campos de disputa - em que até mesmo os deuses são afetados, de modo a ascender ou a declinar. Intensidade é a palavra-chave que integra vida e economia, religião e secularismo, a partir do movimento em que coisas pulsam, segundo critérios não inteiramente previsíveis.

Referência

  • SINGH, Bhrigupati. 2015. Poverty and the quest for life: spiritual and material striving in rural India Chicago: The University of Chicago Press. 335 pp.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Out 2020
  • Data do Fascículo
    2020
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