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RANGEL, Everton; FERNANDES, Camila & LIMA, Fátima (orgs.). 2018. (Des)prazer da norma. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. 412 pp.

RANGEL, Everton; FERNANDES, Camila; LIMA, Fátima. (orgs.). 2018. (Des)prazer da norma.Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. 412 pp.

Muita tinta correu sobre as dores que as normas de gênero e sexualidade causam para quem se encontra fora ou à margem delas. Menos atenção foi dada à questão de como aqueles sujeitos que as habitam, experienciam, às vezes cultivam o consentimento com planos de vida normativos. Quais os modos, em muitos casos conflituosos, pelos quais os sujeitos se relacionam com as normas que os habilitam? Quais as inconsistências e, ao mesmo tempo, as atrações por reconhecimento que decorrem das normas de gênero e sexualidade e que tensionam as experiências nos sujeitos?

São tais ambivalências entre os prazeres e os desprazeres, que as normas de gênero e sexualidade desdobram nos sujeitos, que preocupam os autores da presente coletânea. Sob um título bastante significativo, (Des)prazer da norma engloba 15 capítulos escritos por jovens e talentosos antropólogos, principalmente doutorandos e recém-doutores, integrantes do NuSEX: do Núcleo de Estudos em Corpos, Gênero e Sexualidades do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (PPGAS/MN), coordenado por María Elvira Díaz-Benítez, Luiz Fernando Diaz Duarte e Adriana Vianna. Como os organizadores deixam claro no prefácio, esta coletânea é fruto dos cinco anos de existência do grupo, dedicando-se, desde 2013, a uma reflexão coletiva no sentido literal da palavra. De fato, o leitor encontrará uma coletânea de densas pesquisas etnográficas que, apesar de diferentes objetos de investigação, retratam este espírito coletivo: seja por seus diálogos, que mantêm entre si e com certas pensadoras já canônicas da área (a obra de Judith Butler e os debates impulsionados por Saba Mahmood, por exemplo), seja por sua dedicação epistemológica, que vincula os trabalhos às lutas emancipatórias e à busca por justiça social baseada em uma perspectiva interseccional. Ressalta-se este ponto, pois tal empreendimento é cada vez mais central e urgente, visto o desmonte das faculdades públicas e as adversidades políticas da pesquisa que afetam a área dos estudos de gênero e sexualidade no país.

Mas a relevância deste livro não se reduz ao seu contexto. Sua importância precisa ser vista, antes de tudo, na cativante contribuição que faz, teórica e etnograficamente, em torno da questão de como os sujeitos se relacionam com as normas de gêneros e sexualidades, transcendendo a oposição entre, por um lado, a dissidência e, por outro lado, a adesão à norma. O diálogo que tece entre os estudos queer, a antropologia urbana brasileira e as propostas de Saba Mahmood em colocar a agência em termos ético-morais lhe permite apontar para os limites de certos enquadramentos políticos que atravessam a ideia, às vezes idealizada, dos sujeitos transgressores. Em contrapartida, os diferentes capítulos da coletânea abrem uma ampla reflexão sobre o prazer e a destreza que os sujeitos mobilizam para habitar as normas. Neste sentido, chamam a atenção para os esforços, às vezes ordinários e inexauríveis, de sujeitos que se encontram fora do sexo binário para se envolver em um amor romântico (capítulo de Oswaldo Zampirolli). Os obstáculos, as contradições e as falhas que, por exemplo, pessoas trans e travestis em busca de mudança de sexo enfrentam nas suas trajetórias (capítulo de Lucas Freire), complexificando e desafiando profundamente o quadro analítico sobre o significado da transgressão. Isto também fica claro nos exemplos que versam sobre as trajetórias de mulheres que recusam a atribuição extremamente normativa do trabalho de cuidado à maternidade (capítulo de Camila Fernandes). Destarte, (Des)prazer da norma enriquece a reflexão sobre o envolvimento dos sujeitos nas normatividades sexuais e de gênero, dando ênfase ao “pensar sobre as artes da vivência por entre normas” (:16RANGEL, Everton ; FERNANDES, Camila & LIMA, Fátima (orgs.). 2018. (Des)prazer da norma. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. 412 pp.).

Os tópicos explorados pelo livro fornecem também um corretivo muito bem-vindo para certas abordagens às norma(tividade)s de gênero que tendem a reduzir o debate às superfícies corporais, pois os temas abordados, como maternidade, expectativas conjugais, amor romântico, desejos coletivos, dores e afetos levam a sério que os sentimentos têm um papel primordial na (re)produção e na contestação de normas sociais. Apesar da impressionante qualidade da escrita e da reflexão etnográficas que refletem muito bem esse papel das emoções em praticamente todos os capítulos, vale uma pequena anotação crítica em relação ao espaço teórico que provém de autoras da virada afetiva (affective turn), que até podia ser explorada com mais profundidade. Fora o capítulo sobre construções afetivas nas escritas lésbicas (capítulo de Carolina Maia), que traz o pensamento de Ann Cvetkovich, o leitor pode, de repente, sentir uma certa falta das vertentes dos estudos queer e feministas que investiram em pensar as normas de gênero, sexualidade e interseccionais a partir das emoções (desde a obra de Eve Kosofsky Sedgwick até a de Sara Ahmed).

A coletânea está organizada em três seções que correspondem aos três modos de vivências de gênero e sexualidade examinados: governo, desejo e afeto. Inspirando-se na abordagem de poder e dispositivo de Michel Foucault, a primeira seção (:45-157RANGEL, Everton ; FERNANDES, Camila & LIMA, Fátima (orgs.). 2018. (Des)prazer da norma. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. 412 pp.) debruça-se sobre a regulação e a fixação dos corpos, gêneros e sexualidades, abrangendo não apenas regimes jurídicos, médicos, de direito, trabalho e vida/morte, mas também de cunho moral e emocional. O mérito dos dois primeiros capítulos é o de chamar a atenção para os disputados, dolorosos processos de subjetivação que o conjunto de verdades (médicos e jurídicos) sobre trans e intersexualidade e as expectativas sociais por parte de família e militância colocam nos sujeitos (os textos de Barbara Pires, sobre o atendimento de três pessoas intersexo, e de Lucas Freire, sobre o caso de “terapia de mudança de sexo” de Raissa, uma jovem mulher transexual). Em contraste, mas mantendo o fio condutor das normatividades corporais, Nathalia Ferreira Gonçales explora a dissidência sudaca de dois artistas brasileiros que teriam desenvolvido estratégias de “cura” das violências causadas não apenas pela heterossexualidade compulsória, mas também pelas normas impostas da branquitude, da colonialidade e da cultura cristã.

Colonialidade e interseccionalidade são também tratados nos dois últimos capítulos desta seção: por um lado, no texto de Samara Freire, sobre o trabalho de fazer doces por mulheres negras de uma comunidade do Caribe colombiano, por outro lado, e em forte diálogo com Achille Mbembe, Fátima Lima parte das vivências de mulheres negras no Brasil para tecer uma rica reflexão sobre resistências ao racismo e ao sexismo nos contextos atuais, que denomina de “bio-necropolíticos”.

Na segunda seção (:159-272RANGEL, Everton ; FERNANDES, Camila & LIMA, Fátima (orgs.). 2018. (Des)prazer da norma. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. 412 pp.), desloca-se o foco da seção anterior da regulação dos gêneros e corpos para os caminhos dos desejos. Estes, como aprendemos no texto de Michel Carvalho sobre a trajetória de uma atriz negra que atua na indústria pornográfica, também podem (re)produzir normas, como é o caso da objetificação racista do corpo negro. Ao mesmo tempo, os desejos e os erotismos são suspeitos de transgressão, um aspecto indagado nos capítulos de Victor Hugo e de Lorena Mochel. Segundo a abordagem deleuziana de Hugo, as festas de orgia entre homens por ele estudadas desdobram uma intensidade coletiva, a “putaria”, que corresponderia a uma resistência criativa às restrições morais. Já Mochel desvela o papel do consumo dos produtos eróticos para a construção das identidades cristãs no Complexo do Alemão (RJ), apontando para diferentes conflitos e limites morais envolvidos. Um outro tipo de fantasia é objeto do capítulo de Lucas Bilate, que se debruça sobre as materialidades de um barracão de escola de samba que “fazem” gênero e que incorporam uma naturalização ambivalente com a história e o presente das homossexualidades masculinas. Fecha a seção a contribuição de Nathanael Araujo que analisa tanto uma certa “limpeza moral“ das vivências homossexuais no romance Águas Turvas, de Helder Caldeira, quanto a agência do objeto livro pela circulação e a produção simbólica que efetua.

Afetos e a sua vivência em diferentes constelações e contextos (históricos e regionais) estão no foco dos capítulos da terceira seção (:273-385RANGEL, Everton ; FERNANDES, Camila & LIMA, Fátima (orgs.). 2018. (Des)prazer da norma. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. 412 pp.). Os textos de Carolina Castellitti e de Camila Fernandes trazem as trajetórias de mulheres que viveram uma quebra de arranjos conjugais. Castellitti, que examina as experiências de separação conjugal de onze mulheres da cidade de Santa Fe, Argentina, chama a atenção não só para os conflitos envolvidos, mas também para a armadilha da subjetivação feminina enquanto “lutadora” e autônoma. Por outro lado, Fernandes faz uma reflexão subsequente e bastante oportuna sobre o desprivilégio de não ter tempo, vivida por uma jovem mãe que se encontra entre o “ficar com” a criança e “correr atrás” de uma autonomia profissional e econômica. Conflitos em arranjos afetivos também são abordados no capítulo de Everton Rangel, que reflete sobre os dramas e as fissuras conjugais de duas bailarinas brasileiras com homens de outra nacionalidade (Rússia e EUA) no contexto de um circo americano.

Já os textos de Carolina Maia e Oswaldo Zampiroli chamam a atenção para a força dos afetos com sujeitos que enfrentam invisibilidade e opressão, porque não cumprem com a norma da heterossexualidade ou da cisgeneridade. Maia se concentra nas escritas lésbicas do boletim paulistano Um Outro Olhar (1987-1994), mostrando como os textos divulgados participaram, de forma coletiva, da construção de uma “pedagogia sentimental” para os afetos e as sexualidades vividas entre mulheres. Finalmente, Zampiroli traz os sonhos e as experiências amorosas de três mulheres trans/travestis, analisando como as narrativas sobre o “grande amor“ com homens cis remetem para o potencial do papel de esposa, “de torná-las mulheres” (:355RANGEL, Everton ; FERNANDES, Camila & LIMA, Fátima (orgs.). 2018. (Des)prazer da norma. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. 412 pp.).

Não é apenas a coerência de estruturação do livro, a profundeza analítica e a meticulosidade etnográfica que irradiam da presente coletânea. Para os interessados no papel poderoso que as normas têm na vida social, as admiráveis contribuições teóricas sobre os modos e as artes de lidar com as normas tornam (Des)prazer da norma uma leitura obrigatória.

Referência

  • RANGEL, Everton ; FERNANDES, Camila & LIMA, Fátima (orgs.). 2018. (Des)prazer da norma Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. 412 pp.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Out 2020
  • Data do Fascículo
    2020
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