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BALL, Christopher. 2018. Exchanging Words: Language, ritual, and relationality in Brazil’s Xingu Indigenous Park. Santa Fe, NM: School for Advanced Research Press. 288 pp.

A monografia de Christopher BallBALL, Christopher. 2018. Exchanging Words: Language, ritual, and relationality in Brazil’s Xingu Indigenous Park. Santa Fe, NM: School for Advanced Research Press. 288 pp., etnolinguista norte-americano que realizou sua etnografia com os índios wauja do Alto Xingu, versa sobra a ritualização de si e do outro em escalas espaciais distintas. O autor usa rituais e discursos para considerar a construção de uma diversidade de relações e aspectos da identidade wauja. Numerosas noções clássicas da etnologia amazônica são revisitadas através do discurso, da linguagem e de diversas formas de troca.

O jogo de escalas é muito interessante: partindo das relações instauradas dentro da aldeia - entre humanos ou entre humanos e não humanos -, Christopher Ball analisa as relações mantidas com outros povos indígenas do Parque Indígena do Xingu (PIX), e em seguida com não indígenas fora desse espaço. Seu propósito não é especializar a análise, nem sequer marcar uma dicotomia entre o aqui e fora, mas de mostrar a persistência ou a mudança, em relação ao quadro interacional, de algumas lógicas culturais. Segundo o autor, os Wauja não procuram definir sua identidade étnica ou política durante essas interações. Mais especificamente, eles experimentam profundamente essas identidades: a manutenção de uma lógica puramente indígena pode, em certos contextos, comprometer o sucesso da interação. Com o intuito de identificar essa relacionalidade social, o autor analisa a maneira wauja de falar, agir, pensar e adaptar-se às situações. Suas observações que se referem às relações sociais entre os Wauja e espíritos, ancestrais, entre índios do Alto Xingu, empregados de ONG ou do Estado brasileiro e não brasileiros servem de base para a análise de uma diversidade de orientações ao outro.

A abordagem ritual é pertinente para a compreensão relacional: as relações com os espíritos-monstros ou com os vizinhos xinguanos são conectadas com aquelas mantidas com membros do governo brasileiro ou empregados de um museu francês. O ritual liga, ao mesmo tempo a identidade coletiva e relacional dentro do PIX à cosmologia ou aos projetos de desenvolvimento. O ritual constitui a linguagem usada para numerosas relações, especialmente em um sistema multilíngue.

Acompanhamos desde o início da obra os mensageiros kuikuro, que chegaram na aldeia wauja para convidá-los para um ritual interétnico kwarup. A chegada dos mensageiros constitui o encontro ritual analisado por Christopher Ball: o cacique wauja os recebe com um discurso no qual enfatiza a perda cultural wauja. Esse discurso é, de fato, uma performance da arte e da etiqueta que definem as relações xinguanas. Numerosas identificações assimétricas sucedem-se nesse discurso: trata-se de um pai (o cacique) com seus filhos; dos ancestrais wauja e de seus descendentes; dos ancestrais wauja e dos ancestrais kuikuro; dos contemporâneos wauja e de suas contrapartidas etnolinguísticas. Essas identificações contribuem para a tradição e a autenticidade do discurso. A eficácia ritual se deve também à mobilização de entidades invisíveis, com as quais as relações são frequentes.

Quando um espírito se aproxima demais de um indivíduo, este adoece. O ritual “trazendo espíritos” é uma das possibilidades que se apresentam à família do doente que, durante o ritual, fala com os espíritos-monstros que o afligem. Falar com os espíritos não é apenas uma performance, mas também um ato performativo autorizado no contexto ritual, através do qual os sujeitos aparecem e são transformados. Vemos, neste exemplo, como a estrutura ritual emerge da interação. O ritual consiste em uma série de transformações: de vítima do espírito-monstro a dono; de espírito-monstro a espírito protetor; de humanos a espíritos. Esse ritual é em grande parte verbal e exotérico, compreensível para todos.

As relações com os espíritos, assim como com os não wauja ou os não xinguanos, podem ser perigosas, provocando a doença ou a morte. O ritual kuri é típico dos Wauja e trata das relações intergrupos. Homens enunciam cantos que são de fato denúncias de adultério de mulheres wauja com homens não wauja. Os cantos são atos de alteridade, signos da produção local de alteridade, que permitem o estabelecimento da diferença e a reinscrição das fronteiras coletivas.

As relações intergrupos também estão marcadas pela questão dos bens inalienáveis: termos de parentesco, almas, sonhos, corpos, rituais, o fumo dos xamãs, todos estes são elementos constitutivos da identidade de seu possuidor. Correm sempre mais riscos de alienação com a chegada das novas tecnologias e da facilidade de tirar uma fotografia ou de gravar um canto ritual. Então, a integridade pessoal e as fronteiras coletivas são aquelas que podem ser comprometidas. O autor mostra também como uma atenção gramatical permite renovar a questão da subjetificação dos objetos na Amazônia.

As relações mantidas com os não xinguanos se multiplicam para os Wauja, por exemplo, através de projetos de desenvolvimento. São descritas como assimétricas. Geralmente, as formas comunicativas e as lógicas culturais wauja produzem incompreensão e frustração mútuas. O primeiro caso analisado é o da barragem Paranatinga II, situada fora dos limites do PIX, mas em um território considerado sagrado para os Wauja. Reuniões foram organizadas e discursos enunciados: um primeiro discurso foi eco político e proléptico, enquanto um segundo foi místico. Uma terceira forma de discurso é analisada: o relatório oficial governamental. Os três enfatizam regimes de poder distintos e Christopher Ball chama a atenção para a sua articulação. O secundo caso foi uma viagem efetuada pelos Wauja para a França em 2005, com o objetivo de apresentar o ritual das máscaras em Montpellier e vender duas máscaras encomendadas pelo museu do quai Branly, em Paris. A produção ritual totalmente renovada causou uma grande ansiedade nos participantes e tensões entre eles e seus anfitriões.

A compreensão wauja das relações sociais é essencial para a teorização das trocas interétnicas. Christopher Ball considera os ciclos rituais, o patrocínio e as trocas, nos quais os discursos que tratam da falta de alimentos ou de bebidas são pensados como positivos e tradicionais para os Wauja, no contexto de relações assimétricas. O outro é percebido como um doador poderoso. Esses pedidos, formulados em português, são interpretados como uma falta de respeito e um duplo signo de perda ou de corrupção cultural: os índios foram tomados pela cobiça e pela perda do idioma. Nas relações com agentes do desenvolvimento, no Brasil ou na França, numerosos equívocos aparecem.

Um dos pontos fascinantes desse trabalho é o jogo de escalas proposto. Utilizam-se as fronteiras não para ficar dentro, mas, ao contrário, para serem descompartimentadas. Isto é realmente original, do ponto de vista etnográfico e analítico. Os estudos etnológicos se concentram geralmente em um grupo específico, deixando pouco espaço para as intervenções exógenas. Mais raramente, o foco é colocado nas relações interétnicas (Barth 1969BARTH, Frederik. 1969. Ethnic groups and boundaries: the social organization of cultural difference. Boston: Little Brown & Co.), entendidas como as relações entre índios e brancos. As relações afro-indígenas são igualmente estudadas há alguns anos (Goldman 2015GOLDMAN, Marcio, 2015. “A relação afro-indígena”. Cadernos de Campo, São Paulo, v. 23, n. 23.). Enfim, a análise das “redes ameríndias” (Gallois 2005GALLOIS, Dominique Tilkin (dir.). 2005. Redes de relações nas Guianas. São Paulo: Fapesp/Editora Humanitas.), de relações mantidas entre grupos indígenas, constitui outra possibilidade. O trabalho de Christopher Ball abraça essas três escalas, oferecendo assim uma visão clara da diversidade possível e imprevisível das relações. Passa alegremente de um espaço para o outro, abstraindo-se de qualquer delimitação geográfica e toponímica, mas que os próprios índios atravessam frequentemente.

As relações interindígenas, entre outras coisas, nos permitem perceber que algumas das categorias que utilizamos não dão conta da realidade. A diversidade indígena é subsumida na categoria genérica “índio”. Os Wauja, Kuikuro, Yawalapiti, Trumai, Kamayura etc. são todos grupos indígenas e assim considerados. Um olhar para as relações mantidas entre eles, sobre discursos ou atos, não permite negar essa indigeneidade, mas traz importantes nuances. Essas relações evidenciam as representações locais, a partir das quais podemos pensar modos de classificação mais pertinentes (Ariel de Vidas & Hoffman 2012ARIEL DE VIDAS, Anath & HOFFMAN, Odile. 2012. “Beyond reified categories: multidimensional identification among ‘black’ and ‘Indian’ groups in Columbia and Mexico”. Ethnic and Racial Studies, v. 35, n. 9:1596-1614.). Christopher Ball, longe deste tipo de debate, dá conta da realidade cotidiana de relações, acusações que fazem aflorar da prática outras categorizações. A alteridade é assim percebida do ponto de vista ameríndio e diz respeito a uma definição do outro. Durante um episódio de trocas com os Yawalapiti, os Wauja notam que eles só oferecem produtos manufaturados. Segundo os Wauja, eles adotaram as atitudes dos brancos, perdendo algo constitutivo da sua identidade. Os Kamayura, ao contrário, são percebidos como poderosos feiticeiros, particularmente habilidosos na manipulação, positiva ou negativa, cosmológica. Assim, do ponto de vista wauja, importantes nuances aparecem na apreciação de seus vizinhos, que temos que notar para propor uma categorização mais próxima da realidade cotidiana.

O livro também é abundante em estimulantes incursões no âmbito político. A introdução do bilinguismo na região teve importantes consequências. Com a intervenção dos irmãos Villas Boas, emergiu uma série de duplas lideranças, com a aquisição de prestígio por lusófonos e formas de intervenção política distinta. A chefia tradicional é ameaçada pela nova necessidade de interagir com não índios: muitos chefes - entre outros - ainda são monolíngues. Durante as reuniões sobre a barragem Paranatinga II, o discurso considerado como exclusivamente político foi enunciado em português. Durante a viagem para a França, uma entrevista radiofônica foi dada: as perguntas foram feitas em francês, traduzidas para o português e do português para o wauja. O chefe dava sua resposta a uma pergunta que podia estar longe daquela emitida pelo jornalista. O tradutor, ao escutar a pergunta, podia mudar seu sentido; depois, ao traduzir a resposta do chefe, podia livrar uma versão pessoal e diferente.

Aquilo que nos oferece, em definitivo, a obra de Christopher Ball é uma análise fina e admiravelmente detalhada que consegue renovar numerosos questionamentos, lançando simultaneamente as bases para novos debates que, esperamos, continuem.

Referências bibliográficas

  • ARIEL DE VIDAS, Anath & HOFFMAN, Odile. 2012. “Beyond reified categories: multidimensional identification among ‘black’ and ‘Indian’ groups in Columbia and Mexico”. Ethnic and Racial Studies, v. 35, n. 9:1596-1614.
  • BALL, Christopher. 2018. Exchanging Words: Language, ritual, and relationality in Brazil’s Xingu Indigenous Park Santa Fe, NM: School for Advanced Research Press. 288 pp.
  • BARTH, Frederik. 1969. Ethnic groups and boundaries: the social organization of cultural difference Boston: Little Brown & Co.
  • GALLOIS, Dominique Tilkin (dir.). 2005. Redes de relações nas Guianas São Paulo: Fapesp/Editora Humanitas.
  • GOLDMAN, Marcio, 2015. “A relação afro-indígena”. Cadernos de Campo, São Paulo, v. 23, n. 23.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    2021
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