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von THÜNGEN, Maximiliano. 2021. Ruinas Jesuíticas, paisajes de la memoria: el patrimônio cultural de los antigos pueblos de guaraníes. Ciudad Autonoma de Buenos Aires: Paradigma Indicial. 148 pp.

von THÜNGEN, Maximiliano. . 2021. Ruinas Jesuíticas, paisajes de la memoria: el patrimônio cultural de los antigos pueblos de guaraníes . Ciudad Autonoma de Buenos Aires: Paradigma Indicial. 148 pp.

Passados pouco mais de 250 anos da expulsão dos jesuítas, seus feitos e consequências ainda inquietam pesquisadores que, favoráveis ou contrários, empenham-se em compreender a experiência jesuítica, na América. O seu lugar na história é inegável. Contudo, esta afirmação pode ressoar estranha aos coletivos que nos séculos XIX e XX cresceram nos arredores de suas ruínas. O conhecimento sobre o seu passado estaria universalizado em níveis local e global? O que foram as reduções no apogeu missioneiro e, sobretudo, como foram ressignificadas ao longo das últimas cinco décadas?

Ruinas jesuíticas, paisajes de la memoria: el patrimônio cultural de los pueblos de guaraníes, do antropólogo e historiador argentino Maximiliano von Thüngen1 1 O autor é mestre em antropologia social pela Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (FLACSO). - resultado de sua tese de doutorado, defendida na universidade de Colonia, na Alemanha - enfrenta com argúcia estas questões. O livro é dividido em duas partes. Na primeira, capítulos 1von THÜNGEN, Maximiliano . 2021. Ruinas Jesuíticas, paisajes de la memoria: el patrimônio cultural de los antigos pueblos de guaraníes. Ciudad Autonoma de Buenos Aires: Paradigma Indicial. 148 pp. ao 3, empreende uma análise histórica e problematiza o processo de valorização patrimonial, pela Unesco, de três reduções localizadas no Paraguai - Trinidad, Jesus e San Cosme. Na segunda parte, capítulos 4 ao 6, mais etnográfica, discute as representações sociais dos moradores em torno do processo de patrimonialização. Confronta essas representações e as de outros atores sociais - turistas, funcionários estatais, outras instituições - em torno dos significados das ruínas, das transformações experimentadas nos usos desses espaços e mostra como a ideia de ruína é problematizada pelos habitantes locais de San Cosme em face dos outros processos citados. Sua análise permite ainda refletir sobre noções de memória e história no desenrolar de tais transformações.

No capítulo 1, o autor recupera o processo de instalação das reduções jesuíticas (1609), da criação da Província Jesuítica do Paraguai (1607) e chama a atenção para a novidade deste modelo missioneiro que consistia em “eliminar a obrigação dos indígenas de trabalharem nas encomiendas, convertendo-os em tributários diretos da Coroa espanhola” (:34). Essa desobrigação, ainda que temporária, produziu conflitos entre jesuítas, colonizadores e demais ordens religiosas. Contribuiu também para uma imagem negativa da ordem, cujo desgaste se acentuou após o Tratado de Madri (1750), da Guerra Guaranítica (1754-1756) e da ascensão do iluminismo na Europa.

O autor recupera informações sobre a utilização e a ocupação desses espaços e suas interferências na estrutura social guarani. Mostra como, no plano das artes, a escultura, a pintura e a música produzidas tornaram-se instrumentos evangelizadores e, posteriormente, objetos de interesse patrimonial. O papel da administração colonial, principalmente após a expulsão dos jesuítas, também é recuperado pelo autor, que aborda a emergência de dois níveis administrativos: um religioso, transferido às outras ordens religiosas, e outro político-econômico, a cargo das autoridades seculares. Transformações que provocaram migrações e fugas ao longo da segunda metade do século XVIII e início do XIX, principalmente após a supressão das ordens religiosas no Paraguai em 1824. A apropriação desses espaços, em face do seu abandono ou da sua miscigenação indígena com a população do entorno, fez com que as antigas reduções abrigassem um novo perfil sociocultural dedicado a uma agricultura de subsistência.

No segundo capítulo, o autor discute o contexto sociopolítico do Paraguai no âmbito global. O início do processo de patrimonialização contou com a participação de duas instituições: a Unesco e a Missionprokur, dirigida por jesuítas e sediada em Nuremberg. Em 1977, representantes de ambas criaram a fundação Paracuaria, cujo objetivo era contribuir para a preservação do patrimônio jesuítico-guarani no Paraguai. Caberia ainda à Paracuaria “apoiar a evangelização atual através da instalação de museus com orientação religiosa, centros catequéticos e novos templos” e “criar novas formas de emprego para a população” (:56). Importava que esse patrimônio compusesse um projeto de desenvolvimento econômico, cultural e pastoral que beneficiasse as populações locais.

A conjunção entre salvaguarda patrimonial e desenvolvimento econômico deitara suas raízes na década anterior. Primeiro, o Concílio Vaticano II havia proposto uma redefinição do papel da igreja em face das desigualdades e das contradições sociais em escala planetária; segundo, os acontecimentos e os protestos que marcaram o ano de 1968; na América Latina, o nascimento da Teologia da Libertação e, no Paraguai, ampliava-se a modernização agrícola iniciada na década de 1930. Em contraposição a este movimento surgiram, na década de 1960, as Ligas Agrárias Cristãs, integradas por jesuítas e com o objetivo de defesa da agricultura familiar. Estas, entretanto, foram violentamente reprimidas pelo governo de Alfredo Stroessner na década seguinte.

A partir do final da década de 1970, um acordo de cooperação internacional entre a Alemanha Federal e o Paraguai deu início às obras de recuperação do conjunto arquitetônico de Trinidad. Entretanto, entraves entre assessores técnicos da Unesco e representantes da fundação Paracuaria dividiram opiniões sobre duas concepções de patrimônio: uma que “acreditava que o conjunto arquitetônico deveria ser preservado intacto” e outra que “preconizava recuperá-lo para o desenvolvimento social e cultural da população” (:64). Apesar desses entraves, a inauguração de Trinidad em 1984 marcou uma fase de grandes acontecimentos no campo dos bens culturais do país e, em 1993, as reduções de Trinidade e Jesus, bem como outras no Brasil e na Argentina foram incluídas na lista de patrimônios mundiais pela Unesco. Junto com a patrimonialização houve incentivos no setor de turismo que coincidiram com a ratificação da convenção da Unesco sobre patrimônio imaterial pelo país. No século XXI ganharam impulso ações com vistas a promover o turismo cultural, paralelamente à sanção de uma lei de proteção aos bens culturais no Paraguai.

O capítulo 3 aborda a redução de San Cosme, onde o autor desenvolveu trabalho de campo, cujos processos de recuperação tiveram início em 1989. A questão que orienta o capítulo é o status atribuído a este conjunto arquitetônico e as consequências no processo de patrimonialização. Tratava-se de um conjunto insólito, cuja igreja e demais instalações funcionaram até a década de 1960. Tentativas de recuperação do templo, dirigidas por órgãos estatais, foram empreendidas a partir da década de 1970, por meio de um acordo entre o bispado de Encarnación, a fundação Paracuaria e a arquidiocese de Colonia. Na década seguinte, ganhou ênfase a ideia de se restaurarem os edifícios para uso da comunidade local (:73), apoiada no fato de que San Cosme não era percebida como ruína, mas sim como um edifício cuja manutenção fora negligenciada. Nesse mesmo período, teve início outra mudança de consequências estruturais e sociais na região: a construção de uma barragem com impactos sobre a pesca e o comércio local. Restaurar os edifícios jesuíticos significava, para o bispado, “recuperar um passado concebido pela Igreja como virtuoso e exemplar, capaz de forjar uma identidade católica e reverter as ameaças do mundo moderno” (:75).

A proposta de reconstrução opunha os moradores de San Cosme e algumas instituições culturais quanto à possível descaracterização dos traços originais deste conjunto. Afinal, para que e a quem serviria restaurar? As perspectivas dos atores, bem resgatada pelo autor, permite compreender que San Cosme se distinguia de Jesus e Trinidad justamente pelo fato de que a primeira, em nenhum momento, fora abandonada. No imaginário local não se tratava de monumentos históricos, mas de edifícios jesuíticos que deveriam ser restaurados para uso contínuo. Esta perspectiva excluiu San Cosme da lista de patrimônio mundial pela Unesco.

No capítulo 4 o autor privilegia o contexto e o imaginário locais, buscando compreender as suas transformações. O primeiro passo é mostrar os modos de usos desses espaços antes e depois do processo de valorização patrimonial. O período anterior retrata as reduções como reservas, de onde se extraíam pedras, ferro e madeira. A valorização ensejava a ressignificação e a recategorização das atitudes da população mediante três ações: a incorporação da ideia de patrimônio; as ruínas como algo que deveria ser preservado; o início de uma política de reeducação patrimonial, cujo discurso ancorado na história oblitera a memória e a experiência pessoais. Emergem, então, vozes que revelam o desconhecimento do valor mundial atribuído às reduções e ao papel dos jesuítas durante a colonização.

O capítulo 5 privilegia o contexto socioeconômico do Paraguai no final do século XX marcado por uma crise na produção algodoeira, principal produto agrícola na década de 1990, e um golpe de misericórdia na agricultura familiar; pela precarização das relações de trabalho; pelo crescimento da produção de soja como principal produto de exportação e da concentração fundiária. Nasce então a expectativa de se encontrar na política patrimonial promessa de recuperação. Os discursos locais são marcados por representações sociais que opõem a população campesina aos imigrantes europeus e seus descendentes. Esses discursos pontuam uma oposição entre a prosperidade destes, associada ao seu empenho laboral e capital cultural, versus o colono paraguaio, preguiçoso e conformista. As histórias de vida têm como enredo a transformação do agricultor em proletário e a destruição de seu ethos centrado em valores como generosidade e reciprocidade.

Se a patrimonialização e o turismo dão início a incentivos governamentais em programas com vistas a melhorar a infraestrutura hoteleira local, o fato de não constar na lista de patrimônio da Unesco coloca San Cosme em desvantagem em relação a Jesus e Trinidad e divide também o perfil dos seus visitantes. Estrangeiros tendem a privilegiar as duas últimas, enquanto os nacionais buscam San Cosme. A consequência é a escassez no aporte de recursos advindos do turismo que reproduz a precariedade da sua infraestrutura. Outra questão intrínseca à patrimonialização é a construção de um discurso sobre um passado estranho aos moradores. Para estes, a história das missões remonta às suas experiências. Ao visitante interessa o passado colonial e de suas metrópoles. Apreender e incorporar esse discurso é um desafio. Homogeneizar o passado e obliterar as memórias locais são exercícios estranhos assimilados de maneira peculiar pelos diversos atores sociais.

Finalizando este capítulo, o autor traz à tona a participação das comunidades guarani neste âmbito. A região compreende 32 comunidades e a relação entre o Estado e estas sugere um englobamento hierárquico. Do ponto de vista do primeiro, os Guarani são pensados como produtos turísticos (:118). Da perspectiva indígena, é a “cultura” que se torna produto, pois o turismo “desafia os indígenas a selecionar, organizar e hierarquizar quais elementos de sua cultura mostrarão aos visitantes” (:119).

No capítulo 6, o autor problematiza duas formas de registros históricos: a história das reduções e as memórias dos povos que a conservaram. Ambas dissonantes. O discurso contemporâneo das pessoas envolvidas na atividade turística sobre o passado das reduções produz inflexões que terminam por dar novo significado ao seu próprio passado. Tal discurso reflete uma visão romantizada de um processo civilizatório ou da passagem do estado de natureza à sociedade - numa alegoria hobbesiana. Esta visão, no entanto, é matizada quando passa a outros grupos à margem do turismo. Para eles, o caráter civilizatório da ação jesuítica justifica a ação violenta destes como necessária, embora indesejável.

Finalmente, na conclusão o autor retorna a pontos-chave do livro. Dentre eles merecem destaque aqueles que tratam de uma visão tecnocrática do patrimônio, fazendo uma cesura entre discursos locais e o discurso oficial. Essa cesura coloca em contraposição uma concepção sobre história, escrita, e outra sobre memória, oral, sendo a primeira e não a segunda que deve ser assimilada. Entretanto, como a antropologia há muito tem ensinado, toda experiência social é rebelde à uniformização e um espaço criativo sempre resta entre história e memória.

Referência

  • von THÜNGEN, Maximiliano . 2021. Ruinas Jesuíticas, paisajes de la memoria: el patrimônio cultural de los antigos pueblos de guaraníes Ciudad Autonoma de Buenos Aires: Paradigma Indicial. 148 pp.
  • 1
    O autor é mestre em antropologia social pela Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (FLACSO).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021
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