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Artes marciais no Alto Xingu: mito, história e transformações entre guerra e ritual

Martial arts in the Upper Xingu: myth, history and transformations between war and ritual

Artes marciales en el Alto Xingu: mito, historia y transformaciones entre guerra y ritual

Resumo

Este texto pretende debater as artes marciais no Alto Xingu. A luta corporal (kindene) e os dardos (jawari) são competições esportivas realizadas durante os rituais interétnicos. O egitsü, ritual pós-funerário aruak-karib, é celebrado em homenagem aos chefes falecidos. É o momento de maior visibilidade e a luta que o encerra, o evento principal, um ensinamento mitológico. O jawari, ritual de origem tupi e também relacionado à chefia, faz a incorporação desses grupos ao universo xinguano no plano histórico. Tais artes marciais serão pensadas como mecanismos voltados à pacificação das relações entre os povos que passam a compor esse sistema regional, a especificidade da pax xinguana. Para tanto, utilizaremos a ferramenta do “enfraquecimento das oposições”, desenvolvida por Lévi-Strauss, na demonstração das transformações entre guerra e ritual.

Palavras-chave:
Alto Xingu; Rituais interétnicos; Artes marciais; Pax xinguana

Abstract

This article debates martial arts in the Upper Xingu. Wrestling (kindene) and darts (jawari) are sporting competitions held during interethnic rituals. Egitsü, the aruak-karib post-funerary ritual, is celebrated in honour of deceased chiefs. It is the moment of greatest visibility and the match that ends it, the main event, is a mythological lesson. Jawari, a ritual of Tupi origin and also related to chieftaincy, historically incorporated these groups into the Xinguan universe. These martial arts are to be understood as mechanisms aimed at pacifying the relations between the peoples who come to compose this regional system, the specificity of the pax xinguana. I therefore plan to use the idea of the ‘weakening of oppositions’, developed by Lévi-Strauss, to demonstrate the transformations between war and ritual.

Keywords:
Upper Xingu; interethnic rituals; martial arts; pax xinguana

Resumen

Este texto tiene como objetivo discutir las artes marciales en el Alto Xingu. Las peleas corporales (kindene) y los dardos (jawari) son competencias deportivas que se llevan a cabo durante los rituales interétnicos. Egitsü, un ritual aruak-karib post funerario, se celebra en honor a los jefes fallecidos. Es el momento de mayor visibilidad y la lucha que lo termina, el evento principal, una enseñanza mitológica. El jawari, un ritual de origen tupí y también relacionado con el liderazgo, incorpora estos grupos al universo xinguano en el plan histórico. Tales artes marciales serán consideradas como mecanismos destinados a pacificar las relaciones entre los grupos que forman parte de este sistema regional, la especificidad de la pax xinguana. Con este fin, utilizaremos la herramienta de “debilitamiento de las oposiciones”, desarrollada por Lévi-Strauss, para demostrar las transformaciones entre la guerra y el ritual.

Palabras clave:
Alto Xingu; rituales interétnicos; artes marciales; pax xinguana

We always have to watch out our nephew isn’t murdered by fierce people. We have to be careful.Ellen BassoBASSO, Ellen. 1995. The Last Cannibals: A South American Oral History. Austin: University of Texas Press., The Last Cannibals

We don’t make war; we have festivals for the chiefs to which all of the villages come. We sing, dance, trade, and wrestle.Tomas GregorGREGOR, Thomas.1990. “Uneasy Peace: Intertribal Relations in Brazil's Upper Xingu”. In: J. Haas (org.), The Anthropology of War. Cambridge: Cambridge University Press. pp. 105-124., Uneasy Peace

Apresentação do problema

Este texto pretende debater o que será definido por artes marciais alto-xinguanas. A proposta é tomar o desenvolvimento dessas práticas destacando as contendas realizadas ritualmente como forma, e conteúdo, de relacionamentos com a alteridade. Aquilo que muitos autores e os próprios povos enfatizam: a ausência de conflitos bélicos em nome de um conjunto de trocas, manifestações artísticas, disputas esportivas e de uma etiqueta que abomina qualquer tipo de demonstração pública de violência: a pax xinguana.

Por “artes marciais” compreendemos uma multiplicidade de fenômenos encontrados em diferentes regiões. Para dar conta de tal variedade, pesquisadores do tema promoveram um debate categorial em torno do que ficou sintetizado como L/AM/MEC: lutas, artes marciais e modalidades esportivas de combate. Para Correia e Franchini (2010CORREIA, Walter & FRANCHINI, Emerson. 2010. “Produção acadêmica em lutas, artes marciais e esportes de combate”. Motriz, v. 16 n. 1:01-09.), a definição de artes marciais é tomada relacionalmente a outras formas de lutas e esportes de combate, com utilização ou não de armas, que passam por processos de transformações de seus usos, agora desportivos.

Tais artes marciais implicariam um amplo universo de manifestações multidimensionais. Há um conjunto de práticas provenientes de diversificadas demandas históricas específicas e plurais, patentes de identificação através das distintas configurações sociais, repertórios técnicos, linguagens e organização: “Nesta perspectiva, as lutas e as artes marciais podem ser vistas como construções identificadas e inerentes ao patrimônio cultural de diversos povos” (Correia & Franchini 2010:2CORREIA, Walter & FRANCHINI, Emerson. 2010. “Produção acadêmica em lutas, artes marciais e esportes de combate”. Motriz, v. 16 n. 1:01-09.. Ver também Dziubiński 2020DZIUBIŃSKI, Zbigniew. 2020. “Martial arts ethos from an axio-normative perspective”. IDO Movement for Culture. Journal of Martial Arts Anthropology, v. 20, n. 4:47-54.).

Para Gaudin (2009GAUDIN, Benoît. 2009. “La codification des pratiques martiales. Une approche socio-historique”. Actes de la recherche en sciences sociales, v. 4, n. 179:431.), o interesse analítico em tomar tais manifestações conjuntamente reside na “eufemização da violência” comum a todas elas: “os gestos não são mais usados para matar. A novidade é tão simples quanto radical” (:7GAUDIN, Benoît. 2009. “La codification des pratiques martiales. Une approche socio-historique”. Actes de la recherche en sciences sociales, v. 4, n. 179:431., trad. minha). Com a proposta de traçar um panorama geral sobre o campo, elenca as principais características das L/AM/MEC - presentes também nas disputas alto-xinguanas:

Eufemização da violência, restrição e especialização de gestos, quadro temporal e espacial específico, função auxiliar atribuída à atividade, controle por terceiros, treinamento específico: o compartilhamento dessas características comuns por todas as artes marciais, modalidades esportivas de combate, lutas e outros permite que se unam no mesmo todo, para constituí-los como membros de um único grupo, de uma única família de atividades (Gaudin 2009:10GAUDIN, Benoît. 2009. “La codification des pratiques martiales. Une approche socio-historique”. Actes de la recherche en sciences sociales, v. 4, n. 179:431., trad. minha).

Ainda segundo Gaudin, o termo “arte” responderia ao seu sentido polissêmico original referente a “artesão” e “técnica” como no artigo “artes” da enciclopédia de Diderot e d’Alembert (:14). Já o qualificativo “marcial” seria usado, paradoxalmente, devido às formas de combate que deixaram de ser realizadas nos campos de batalha, isto é, novos usos para as técnicas corporais e para as armas que passam a ser de disputa, de competição performática e estética assumindo novos significados. Como exemplos, a esgrima italiana no período renascentista; a espada kendô e o judô japoneses à época do desarmamento dos samurais na Era Meiji; os bastões do maculelê usados pelos escravos capoeiristas contra seus perseguidores, ao passo que hoje é uma dança: “maculelê não me mate o homem, ele é cristão, não me mate o homem”, diz o refrão de uma das músicas do repertório que dança com bastões - ou mesmo facões.

É com esse entendimento dos processos de armistícios, de ressignificações nos usos de técnicas e armas voltados para competições esportivas que tomaremos as disputas alto-xinguanas como “artes marciais”.1 1 Embora a etnologia ainda não tenha se debruçado em pormenores sobre combates indígenas, podemos estender esse entendimento a certos contextos de armistício e “eufemização da violência” já etnografados: as lutas rituais karajá/javaé (Rodrigues 2006); as corridas de toras e bordunas xavante (Vianna 2008; ver também https://www.youtube.com/watch?v=w-jUvCHLXh0); o Kanjire e o Pinjire kaingang (Fassheber 2006); zarabatanas, arcos e flechas e a luta ritual yanomâmi (Delgado 2010). Essas disputas dão novos dimensionamentos e limites para as comparações, seja entre áreas regionais, seja através das práticas.

E tais disputas ocorrem durante os dois principais rituais pós-funerários. De um lado, a narrativa aruak-karib (proto-xinguana) que tem o egitsü como eixo primordial, encerrado com a kindene, modalidade de luta agarrada ensinada mitologicamente.2 2 As palavras e termos nativos serão grafados em itálico. Egitsü, mais conhecido como Quarup, faz referência ao tronco de árvore homônima da qual se faz a efígie que homenageia os chefes falecidos. Na mitologia de origem, após uma longa epopeia narrada em três partes, as lutas finais acontecem entre peixes versus animais terrestres. Ver Villas Boas (1970) e Agostinho (1974a, 1974b). De outro, o jawari, uma disputa de arremesso de dardos e sua narrativa histórica em que os subgrupos tupi ensinam a prática para os seus novos vizinhos. Um eixo mitológico, outro, histórico, vividos através de duas práticas rituais distintas e complementares que consolidam atualmente as relações entre esses povos, inimigos de outrora. Claro que relações históricas fortaleceram a kindene como modo relacional, assim como os dardos também têm suas concepções mitológicas. Tal separação visa apenas indicar as relações entre os grupos aruak-karib e tupi a partir de suas disputas corporais na consolidação da pax xinguana.

Por isso mesmo, voltaremos nossa atenção ao universo ritual e ao sistema regional a partir dessas artes marciais e desenvolvimentos de performances. Todavia, é sabido que o contexto da pacificação regional no Alto Xingu é delimitado historicamente e que relações guerreiras entre os povos costumavam ser bastante comuns - até mesmo mais do que gostam de afirmar os alto-xinguanos e seus pesquisadores.

Mais de uma vez, durante o trabalho de campo, ouvi dizer que, enquanto outros índios têm clavas e guerras, os Kalapalo usam colares de conchas e participam de rituais de combates esportivos. Do ponto de vista indígena, o ritual, junto com seus chefes patrocinadores, eventos esportivos e troca de especialidades, “toma o lugar da guerra”. É importante ressaltar, entretanto, que o mundo xinguano nem sempre foi tão pacífico quanto gostariam os povos da região (e muitos de seus antropólogos). (Menget 1978:711MENGET, Patrick. 1978. “Alliance and Violence in the Upper Xingu”. Apresentado em 77 th Annual Meeting of the American Anthropological Association, Los Angeles., trad. minha).

Esse cenário sobre como o abandono ou a ressignificação das armas e das práticas é transformado esportivamente será trabalhado a partir do material etnográfico junto aos Kalapalo, povo com o qual realizei pesquisa de doutorado.3 3 Durante aproximadamente 15 meses, divididos em sete estadias e participação em nove egitsü de diferentes povos, fiz trabalho de campo em Tanguro, segunda maior aldeia kalapalo para confecção de tese de doutorado (Costa 2013). A pesquisa teve por objetivo pensar a luta e a formação dos lutadores, os processos de fabricação dos corpos e os desencadeamentos políticos, intra e interétnicos, relacionados aos combates rituais. Ainda, tomar a luta junto a outros modelos relacionais, como os dardos jawari, as relações matrimoniais, a chefia e a feitiçaria, temas que aqui passaremos em revista. E de como as artes marciais, a luta kindene e os dardos jawari são inseridos no universo ritual e atualizam a pacificação das relações no plano regional.

As disputas do jawari e todo o complexo músico-ritual que engloba essa festa4 4 Para uma análise sobre a relação entre festa e guerra, ver Perrone-Moisés (2016). foram investigados nos trabalhos de Menezes Bastos (1993MENEZES BASTOS, Rafael. 1993. “A Saga do Yawari: Mito, Música e História no Alto Xingu”. In: M. Carneiro da Cunha & E. Viveiros de Castro (orgs.), Amazônia: Etnologia e História Indígena. São Paulo: Universidade de São Paulo. pp. 117-146., 2001MENEZES BASTOS, Rafael. 2001. “Ritual, História e Política no Alto Xingu: Observações a partir dos Kamayurá e do Estudo da Festa da Jaguatirica (Jawari)”. In: B. Franchetto & M. Heckenberger (orgs.), Os Povos do Alto Xingu: História e Cultura. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ . pp. 335-357.). Antes ainda, Galvão (1979GALVÃO, Eduardo. 1979 [1950]. “O Uso do Propulsor entre as Tribos do Alto Xingu”. In: Encontros de Sociedades: Índios e Brancos no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra. pp. 39-56.) descreveu o uso do propulsor e os preparativos para a disputa que, resumidamente, consiste no arremesso de dardos em seu oponente que deve desviá-los ou bloqueá-los, ora com escudos, ora com os seus próprios dardos. Estes são feitos de um tipo de bambu e recebem um coco na ponta que depois é revestido com resina. Ainda segundo Galvão: “O propulsor, como os dardos que lhe servem, tem, pelo menos atualmente, uso exclusivamente cerimonial-desportivo” (1979:41, itálicos nossos).

Essa esportificação5 5 Para além da utilização frequente nas etnografias, que descrevem as disputas corporais alto-xinguanas como esportes ou práticas esportivas, pretendemos compreender os processos de esportificação (Elias 1992) e o desenvolvimento histórico desses fenômenos e suas relações com processos mais amplos sobre a pacificação das relações. No modelo elisiano, esportificação remete sempre a transformação e mudança, não é algo, mas processa a mudança de algo. São processos históricos análogos ao que trabalharemos com as transformações entre guerra e ritual a partir da esportificação das modalidades descritas como artes marciais. de um objeto usado como arma de guerra ou de caça (Steinen 1940:285STEINEN, Karl. 1940. “Entre os Aborígines do Brasil Central”. Revista do Arquivo Municipal, separata: XXXIV e LVIII.) é ressonante com o que diz o mito. Conta-se que Sol, um dos gêmeos demiurgos, embora não conhecesse a disputa, foi competir com o “dono do jawari6 6 O debate sobre a categoria “dono” é recorrente na região. Como sugere Fausto: “designa uma posição que envolve controle e/ou proteção, engendramento e/ou posse, e que se aplica a relações entre pessoas (humanas e não humanas) e entre pessoas e coisas (tangíveis ou intangíveis)” (2008:330). Ver Viveiros de Castro (1977), Basso (1973), Guerreiro (2016). e acertou-lhe um dardo na cabeça que o matou. Quando ele foi ensinar a disputa para seus companheiros, estabeleceu, porém, que os dardos só poderiam ser atirados à altura da coxa, para evitar golpes mortais (Galvão 1979:41GALVÃO, Eduardo. 1979 [1950]. “O Uso do Propulsor entre as Tribos do Alto Xingu”. In: Encontros de Sociedades: Índios e Brancos no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra. pp. 39-56.).

Já no plano das relações históricas, Agostinho diz:

Os impulsos agressivos e hostis, que se resolviam pela guerra com as tribos “bravas”, foram ritualmente canalizados entre as “mansas” (quando e como, não se sabe) para competições esportivas: o yawari, a “huka-huka” [kindene], e o “jogo de bola”, em um nível em que as tribos se tomam como unidade (1974a:15AGOSTINHO, Pedro. 1974a. Kwarìp: Mito e Ritual no Alto Xingu. São Paulo: EPU/Edusp., itálicos nossos).

No Alto Xingu, ao tratar do tema das competições esportivas, esses autores afirmam como a guerra está numa relação de transformação com essas práticas que não mais são incursões para matar inimigos, capturar mulheres ou incendiar aldeias. O que ocorre é a reorganização dessa inimizade através de uma nova forma: o ritual.

Entretanto, não nos olvidaremos de que, apesar dessas transformações estilizadas através de embates corporais e desempenhos de performances, as relações conflituosas entre os diferentes povos continuam a marcar presença e a ser tema para gerar rivalidades e contradições. Se o contexto histórico não é mais o da guerra, como redefinir as relações entre eles a partir dessas práticas? Observações demonstram que não se trata de um único caminho e que variáveis sempre importantes para a região, como a relativização da oposição entre “paz interna x guerra externa” é recorrente - tal como fica evidente no complexo xamanismo-feitiçaria (Menezes Bastos 1989MENEZES BASTOS, Rafael. 1989. “Exegeses Yawalapití e Kamayurá da Criação do Parque Indígena do Xingu e a Invenção da Saga dos Irmãos Villas Boas”. Revista de Antropologia , v. 30/31/32:391-426.; Vanzolini 2010VANZOLINI, Marina. 2010. A Flecha do Ciúme: O Parentesco e seu Avesso Segundo os Aweti do Alto Xingu. Tese de Doutorado, Museu Nacional.).

Por fim, seguiremos Lévi-Strauss (2006LÉVI-STRAUSS, Claude. 2006 [1968]. A Origem dos Modos à Mesa. São Paulo: Cosac Naify .) refletindo sobre o “enfraquecimento das oposições” ao propor uma visada etnográfica sobre as transformações debatidas a partir das disputas através das artes marciais. Ferramenta analítica desenvolvida pelo método estrutural no exame dos sistemas mitológicos, aqui será repensada para tomar as relações entre guerra e ritual.7 7 Como se sabe, Lévi-Strauss analisa em O Pensamento Selvagem (2004) a relação entre jogo e rito. Resumidamente, trata-se de um conjunto de oposições simétricas e inversas, a partir dos ritos funerários. Podemos dizer que no rito a assimetria é estrutural, opõe vivos e mortos, iniciantes e iniciados, enquanto no jogo a simetria é estrutural, estabelecendo uma igualdade prévia entre os participantes. Em contrapartida, o jogo tem um caráter disjuntivo, estabelecerá uma diferença ao final que é da ordem diacrônica, ao passo que o rito é conjuntivo. Todavia, aqui nos deteremos nos “enfraquecimentos das oposições” entre guerra e ritual, as artes marciais aí inseridas. Ver também o Finale de O Homem Nu (2011:603).

Tais enfraquecimentos alocam a relação fundamental entre morte e vida do plano do real para o do simbólico, da metonímia para a metáfora, do sentido próprio para o sentido figurado, ou, dito desportivamente, a transformação da relação entre vida e morte em vitória e derrota. E de como tais transformações, de seguidos enfraquecimentos das oposições, apontam para a repetição como forma de continuidade, sugerindo assim o aumento significativo na quantidade de rituais realizados em homenagem aos grandes chefes, mortos, como se sabe, pela feitiçaria.

Luta/Chefia/Feitiçaria: mito, ritual e política no Alto Xingu

O Território Indígena do Xingu está localizado em Mato Grosso e segue até a divisa com o Pará. Ao longo do percurso encontram-se inúmeros agrupamentos indígenas no entorno dos três principais formadores do rio Xingu: os rios Culuene, Curisevo e Ronuro. A vegetação é de transição entre o cerrado e a floresta amazônica, com duas estações distintas de chuva e seca. O território8 8 Para detalhes do Decreto Lei nº 50.455 de 14 de abril de 1961, assinado pelo presidente Jânio Quadros: Menezes Bastos (1989:392), Lea (1997:73) e Menezes (2000:299). é subdividido em três regiões que abrigam diferentes conjuntos populacionais: Baixo Xingu, região mais ao norte; Médio Xingu e Alto Xingu, na porção sul. A região conhecida como Alto Xingu apresenta um conjunto de povos que vivem num contexto de interdependência ritual, tensões e alianças políticas, enlaces matrimoniais e intercâmbios econômicos.

A região do Alto Xingu é uma unidade do ponto de vista ecológico, político e cultural, onde diferentes etnias formam uma sociedade intertribal e plurilíngue, que foi se constituindo historicamente ao longo dos últimos três séculos, conservando, contudo, os traços de uma matriz original aruák. Esta se manifesta nos léxicos das línguas, nos rituais e seus cantos, em vários elementos da organização política intra e intertribal (Franchetto & Santos 2002:15FRANCHETTO, Bruna & SANTOS, Mara. 2002. “Kuikuro: Uma Língua Ergativa no Ramo Meridional da Família Karib (Alto Xingu)”. In: F. Queixalós (org.), Ergatividade na Amazônia I. Brasília: Universidade de Brasília. pp. 15-44.).

Os povos tradicionalmente descritos como formadores da região são Kalapalo, Kuikuro, Matipu e Nahukua (karib); Yawalapiti, Wauja, Mehinaku (arawak); e Aweti e Kamayurá (tupi) - por mais diversa que possa ser a menção a “Kamayurá”, como propõe Menezes Bastos, sobre o faccionalismo e a incorporação de vários subgrupos sob essa mesma designação que significaria algo como: “káma, “morto”, “yúla”, “jirau”, apontando para o terrífico costume - segundo a etiqueta xinguana - do canibalismo” (Menezes Bastos 1989:399, nota 14).9 9 A proposta de Menezes Bastos é mostrar que o “amansamento” ou “xinguanização” dos Kamayurá, que trabalharemos através das disputas rituais, se deu em duas “profundidades”. Uma longínqua, que remete a esse passado canibal, e outra recente, trazida com o casamento entre o chefe yawalapiti e duas irmãs kamayurá que selaram as relações entre esses povos na época de consolidação dos limites do território sob a atuação dos irmãos Villas-Boas. Já de partida passamos por essa associação entre disputas rituais e trocas matrimoniais que fundamentam esse sistema regional ao longo da história.

Os Trumai são falantes de uma língua isolada, que apenas tangencialmente participam desse complexo regional, como afirmado por autores como Monod-Bequelin (2001MONOD-BECQUELIN, Aurore. 2001. “Histórias Trumais”. In: B. Franchetto & M. Heckenberger (orgs.), Os Povos do Alto Xingu: História e Cultura. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ . pp. 401-443.) - e mesmo do ponto de vista kalapalo ao dizer que os Trumai “não têm campeão”, sobre a ausência de convites a esse povo para os rituais egitsü que realizam. Outros povos se avizinham com relativo contato com os alto-xinguanos, tal como os Ikpeng, falantes de uma variante karib mais próxima do karib das Guianas (Menget 2001MENGET, Patrick. 2001. Em Nome dos Outros: Classificação das Relações Sociais entre os Txicão do Alto Xingu. Lisboa: Assírio & Alvin.); os Suya, de família linguística (Seeger 1980SEEGER, Anthony. 1980. Os Índios e Nós: Estudos Sobre Sociedades Tribais Brasileiras. Rio de Janeiro: Campus.) e ainda os Yudjá tupi (Lima 2005LIMA, Tânia. 2005. Um Peixe Olhou Para Mim: Os Yudjá e a Perspectiva. São Paulo: Ed. Unesp/ISA/NuTI.).

Contudo, o entendimento sobre a região a partir desses nove povos, quando tomada a formalidade do sistema de convites para os rituais interétnicos, está ancorado em bibliografia que trata do tema (Guerreiro 2012:184GUERREIRO, Antonio. 2012. Ancestrais e suas sombras: Uma Etnografia da Chefia Kalapalo e seu Ritual Mortuário. Tese de Doutorado, Universidade de Brasília.). Além disso, esta é a configuração encontrada na pesquisa de campo, sendo enfatizada a ausência de outros povos exatamente pela falta de “campeões de luta”.

Algumas das principais características dos povos reconhecidamente alto-xinguanos foram apresentadas sob a designação “área do uluri”. O uluri é um cinto feminino que não deve ser tocado pelos homens sob pena de perder suas habilidades na pesca e na luta.

Como traços característicos da “área do uluri” citaríamos: Habitação de forma oval, cobertura arredondada, sem distinção entre teto e paredes. Disposição circular das casas na aldeia; Uso de um tipo de cerâmica fabricado pelos índios Waura - vasos redondos, fundo chato, bordas salientes, e pequenas panelas zoomorfas; Colares de peças retangulares ou circulares de concha; Bancos esculpidos em uma só peça de madeira; Uso desportivo da palheta ou propulsor de flechas “iawari”; Luta corporal desportiva “huka-huka” [kindene] (Galvão 1979:37GALVÃO, Eduardo. 1979 [1950]. “O Uso do Propulsor entre as Tribos do Alto Xingu”. In: Encontros de Sociedades: Índios e Brancos no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra. pp. 39-56., itálicos nossos).

Esta descrição, ainda que de meados do século XX, retrata de maneira sintética uma primeira observação sobre a paisagem etnográfica no Alto Xingu atualmente - apesar das mudanças trazidas com a intensificação do contato com as cidades que avançam na direção do território (Horta 2017HORTA, Amanda. 2017. “Indígenas em Canarana: Notas Citadinas sobre a Criatividade Parque-xinguana”. Revista de Antropologia (on-line), v. 60, n. 1:216-241.) e a financeirização da economia (Novo 2018NOVO, Marina. 2018. “Esse é o Meu Patikula": Uma Etnografia do Dinheiro e Outras Coisas entre os Kalapalo de Aiha. Tese de Doutorado, Universidade Federal de São Carlos.). A manutenção de seu modo de vida parece ser ponto distintivo dos povos da região, do que a efusiva produção ritual é traço determinante e que, a partir de agora, trataremos através da luta que encerra o principal deles, o egitsü.

***

A luta é o auge de todo um ciclo ritual que se inicia após o sepultamento de alguém com status de chefe (anetü). Apesar de realizada em outros momentos, como no ritual de furação de orelhas tiponhü,10 10 O ritual de furação de orelhas marca a entrada dos meninos na “reclusão pubertária” (Verani 1990). É dito que todos devem passar pelo período de isolamento, mas para os filhos de chefes o fato deve ser público quando da realização do tiponhü. Nesse momento, os povos são convidados para conhecer os futuros chefes, os “substitutos” dos chefes atuais. Os meninos de linhagem de chefes passarão por uma reclusão diferenciada, no tempo e nos quesitos executados, para se tornarem grandes lutadores, pois um campeão de luta é, potencialmente, um chefe: Viveiros de Castro (1977); Barcelos Neto (2005). ou mesmo na chegada de um estrangeiro a uma aldeia, ocasião em que deve enfrentar todos os lutadores locais, é no egitsü que os combates atingem seu ponto máximo. É o enfrentamento esportificado da alteridade.

O egitsü começa a partir do enterro, que é feito com as honrarias características em frente à casa das flautas, no centro da aldeia circular - local onde também ocorrem os combates. A partir de então, a família entrará em luto e deverá respeitar uma série de predicados ao aceitar patrocinar o ritual. Nesse período, alguém próximo ao falecido, algum parente consanguíneo, assumirá as prerrogativas e passará a ser o “dono do morto”, um intermediário entre a família que homenageará seu falecido, seus consanguíneos e aliados nas diversas atividades que compõem este ciclo e os convidados que serão adversários nas lutas.11 11 Os povos que se reconhecem parentes dos homenageados, na figura de seus chefes, serão aliados aos anfitriões, enquanto os outros serão adversários - levando-se em conta o faccionalismo e as disputas internas. Vanzolini destaca a relação de cognação ao estabelecer a proximidade e o aparentamento entre aqueles que “choram o morto”, mas este é um carpido construtivo, diferente daquele resultante da feitiçaria (2010:52). Para Guerreiro (2012:154), os processos de fabricação da pessoa por meio de seu corpo são o vetor do aparentamento e da humanização, inclusive nessa relação estabelecida entre chefes e efígies. Mehinaku (2010) descreve, através da ideia de tetsualü, a “mistura” entre os povos da região, que faz com que as pessoas se identifiquem com dois ou mais povos, aumentando o contingente das relações de parentesco entre os chefes e os homenageados. Essa dinâmica situacional é consolidada previamente através de um sistema de convites, em que convidadores são enviados às aldeias e devem cumprir etiquetas formais para serem recebidos e os convites aceitos.12 12 Para melhor apreciação sobre as posições organizacionais (donos do morto, donos dos convidados, coordenadores, convidadores, aliados, convidados) e a relação entre parentesco e o sistema de convites, ver Guerreiro (2012:49, 419).

As principais atividades preparatórias são as festas para armazenar pequi (indze tundomi), polvilho (kuiginhu tundomi) e as pescarias (kaki). Essas etapas servem para acumular alimento que será distribuído no final aos convidados. Para ajudar nessa acumulação, os aliados chegam dias antes trazendo sua contribuição e participam da kaki. Nesta chegada, a recepção é feita através da luta, que é a maneira de se receber o outro, mesmo que aliado, e é procedida pela afirmação dessa aliança via as flautas atanga - instrumento dos lutadores campeões. As flautas selam a aliança ritual: com quem se toca flauta junto (aos pares) não se luta contra. Ao menos não naquele ritual em homenagem àqueles chefes, indicando a complexidade organizacional de cada evento.13 13 Algo que remeteria a Clastres sobre como a guerra indígena pressupõe uma aliança em outro plano e a instabilidade e a desconfiança recíprocas dessas relações: “aliança, que não é desejada como um fim, mas apenas como um meio: o meio de atingir a empresa guerreira com os menores riscos e os menores custos... Em resumo, a realidade da aliança possibilita uma troca completa que respeita não somente os bens e os serviços mas as relações matrimoniais” (1980:36-37). Como veremos, a aliança para a montagem dos times de luta é fundamental para a boa empreitada dos anfitriões, além de estar ancorada nas relações de parentesco com o homenageado falecido.

O final do ritual se dá quando os convidados, adversários nos combates, chegam para o “roubo do fogo” e para a apresentação de seus cantores com chocalhos (auguhi). Enquanto os cantores, em duplas, cantam e tocam seus chocalhos defronte à sepultura, os povos convidados adentram para “roubar” o fogo de maneira extremamente barulhenta, com gritos, batidas de pés e gesticulações. Os povos convidados se revezam tanto para realizar a apresentação dos auguhi, como para pegar o fogo central e partir para a mata, local em que passam a noite em vigília.

Geralmente num domingo, cedo, uma dança típica, em que os convidados cercam os anfitriões, termina com os donos ao centro, defronte à casa das flautas, e os convidados separados formando um semicírculo em frente às casas. Então, é feita a convocação dos campeões para o primeiro confronto do dia. Os campeões anfitriões são convocados pelos donos do ritual na ordem em que se realizarão os combates, sendo os melhores os primeiros. Aguardam em posição de quatro apoios no pátio central até o final dessa convocação, permanecendo apenas o primeiro, que fica à espera de seu adversário para iniciar o combate.14 14 Fausto (2017:669) diz que a convocação é mais uma maneira de se atestar continuidade entre a chefia, ao se chamar o lutador campeão como “neto de temido-respeitado” (itsanginhü higü). Em Costa (2013:210) demonstrei que a convocação pode ser entendida por seu aspecto tático, negociada entre os chefes donos do ritual e seus aliados, sendo decidida em conversas prévias no pátio central, levando em consideração questões técnicas dos melhores lutadores e suas condições a cada evento.

As primeiras 10-15 lutas ocorrem uma de cada vez entre os campeões, futuros chefes, momentos de maior expectativa do ritual. Essas lutas, realizadas separadamente, são seguidas por outras disputadas ao mesmo tempo entre lutadores do segundo escalão - chegam a ocorrer até 20 lutas simultâneas, num cenário em que a poeira predomina. A diferença entre os primeiros (hotuko), aqueles que foram convocados, e os demais está em conformidade com todo o investimento do ritual em dar visibilidade aos futuros chefes (Guerreiro 2012:160GUERREIRO, Antonio. 2012. Ancestrais e suas sombras: Uma Etnografia da Chefia Kalapalo e seu Ritual Mortuário. Tese de Doutorado, Universidade de Brasília.). Essa separação é ainda reflexo do tempo e da intensidade com que cada lutador cumpriu sua reclusão pubertária, indicando as capacidades individuais e familiares em manter os campeões (kindotoko) o maior tempo presos em casa - entre cinco e seis anos, exigidos os procedimentos, as prescrições e as proibições para a fabricação corporal, especialmente a abstinência sexual (Avelar 2010:51AVELAR, Gustavo. 2010. Valores Brutos: Lutadores do Alto Xingu. Dissertação de Mestrado, Museu Nacional.; Costa 2020:157COSTA, Carlos. 2020. “Política da reclusão: chefia e fabricação de corpos no Alto Xingu”. Revista R@U, v. 12, n. 1:145-172.).

Ao término de cada confronto segue-se para o próximo povo convidado, repetindo a dinâmica: convocação dos campeões, lutas entre os primeiros e lutas conjuntas, sendo que as relações de parentesco dos homenageados definem esse regime de aliança e oposição - em média, o time anfitrião enfrenta quatro ou cinco povos convidados. Desse modo, o time anfitrião faz mais lutas que seus adversários, sendo a capacidade de aguentar mais combates uma das maiores qualidades de um campeão. Enquanto os campeões do time anfitrião podem fazer mais de dez lutas num único dia, os campeões adversários lutam duas ou três vezes, no máximo.

Após os enfrentamentos dos lutadores do time anfitrião contra todos os povos adversários, as neófitas, que estão deixando a reclusão para também serem apresentadas no plano regional, são levadas pelos ombros dos chefes anfitriões até os chefes rivais. Com a franja característica tapando a visão, entregam as comidas (peixe e beiju), a bebida (polpa do pequi) e a castanha do pequi nesse que é o momento mais formal da troca matrimonial interétnica, com a reclusa que sai nessas condições tendo elevado valor simbólico. Enquanto os lutadores são apresentados através dos combates, as jovens ganham visibilidade ao saírem da reclusão para oferecer o alimento aos chefes rivais, destacando a exibição performática dos/as futuros/as chefes/as. Sem demora, logo depois da entrega dos alimentos aos convidados, a busca é por combustível para irem embora o mais rápido possível, por medo da feitiçaria.15 15 O que poderia ser entendido em relação à “máquina de dispersão” (Clastres 1980:44-45) causada pela guerra, ou seja, após a efetivação da aliança para a disputa, rompe-se de imediato o laço criado momentaneamente, inclusive, findadas as possibilidades matrimoniais.

O egitsü é tema de dedicado interesse na literatura da região (Carneiro 1993CARNEIRO, Robert. 1993. “Quarup: A Festa dos Mortos no Alto Xingu”. In: V. Coelho (org.), Karl von den Steinen: Um Século de Antropologia no Xingu. São Paulo: Edusp. pp. 405-429.; Junqueira & Vitti 2009JUNQUEIRA, Carmen & VITTI, Taciana. 2009. “O Kwaryp Kamaiurá na Aldeia de Ipavu”. Estudos Avançados, v. 23, n. 65:133-148.; Guerreiro 2012GUERREIRO, Antonio. 2012. Ancestrais e suas sombras: Uma Etnografia da Chefia Kalapalo e seu Ritual Mortuário. Tese de Doutorado, Universidade de Brasília., 2015aGUERREIRO, Antonio. 2015a. “Quarup: Transformações do Ritual e da Política no Alto Xingu”. Mana - Estudos de Antropologia Social , v. 21, n. 2:377-406.; Fausto 2017FAUSTO, Carlos. 2017. “Chefe Jaguar, Chefe Árvore: Afinidade, Ancestralidade e Memória no Alto Xingu”. Mana - Estudos de Antropologia Social , v. 23, n. 3:653-676.). Esse resumo parcial das atividades, todavia, será para focar na luta visando à demonstração da esportificação dessa prática, para enfatizar a competitividade e a força desempenhada pelos lutadores e os significados dos resultados para além de interpretações de que seriam instituições de manutenção da ordem, como alguma literatura apresentava, a “válvula de escape” das tensões preexistentes (Agostinho 1974a:132AGOSTINHO, Pedro. 1974a. Kwarìp: Mito e Ritual no Alto Xingu. São Paulo: EPU/Edusp.).

A kindene tem uma dinâmica intensa, um tipo de luta agarrada, com combates de curta duração em que ocorrem vitórias de duas maneiras: agarrar a parte de trás da perna ou derrubar o oponente, tipo de vitória mais efusivamente celebrada. Apesar dessas duas diferentes formas de vitória, o empate é o resultado mais recorrente (por volta de 70% dos combates registrados em campo).16 16 Vale notar que, mesmo na mitologia que envolve o tema da luta no primeiro egitsü, os empates são predominantes entre os campeões. Até que se narrem duas lutas em que se ensinem as maneiras de se obter a vitória. Na primeira, Anta é arremessada contra o chão por Gafanhoto, por isso tem sua bunda achatada. Na segunda, Kangasingi, um dos heróis da narrativa que luta como aliado do povo do peixe, vence Sapo, um forte lutador, ao tocar sua perna na parte de trás da coxa (Costa 2013:297). Não há contagens de placares ou arbitragem, ficando a cargo da torcida e de seus “olhadores” (nginiko) cantar os resultados, o que, por vezes, gera contradições entre os presentes, com cada torcida vibrando pela vitória de seu competidor (Costa 2021:263COSTA, Carlos. 2021. “Practices of looking, transformations in cheering: alliances and rivalries in Upper Xinguan wrestling”. Anuário Antropológico, v. 46, n. 2:254-270.).

Em relação aos resultados, a alta incidência dos empates merece algumas observações. Do ponto de vista técnico, pela quantidade desigual de combates entre anfitriões e convidados, empatar ajudaria a equilibrar essa diferença. Enquanto um campeão anfitrião pode estar fazendo sua décima luta, seu adversário pode estar em sua primeira, o que coloca o empate como um bom resultado dadas as diferentes condições físicas entre os oponentes. Mas não é só isso. Não perder também deve ser lido juntamente com a noção de “homenagem” (Guerreiro 2012:416GUERREIRO, Antonio. 2012. Ancestrais e suas sombras: Uma Etnografia da Chefia Kalapalo e seu Ritual Mortuário. Tese de Doutorado, Universidade de Brasília.) que se presta aos falecidos chefes, principalmente por parte do time anfitrião - o que foi confirmado em conversas com os atuais campeões kalapalo. Tal noção faz referência ao egitsü e à perpetuação da chefia entre gerações, ou seja, os próximos chefes, na figura dos lutadores campeões, homenageiam os chefes falecidos e, por isso, não devem perder. Ainda, a ideia de “prestígio” dos chefes que não devem perder, cujo ápice na luta seria a invencibilidade total em relação à temporalidade ritual ao longo de suas vidas e a construção de suas biografias: grandes lutadores, chefes patrocinadores e homenageados no egitsü (Barcelos Neto 2012BARCELOS NETO, Aristóteles. 2012. “Objetos de poder, pessoas de prestígio: a temporalidade biográfica dos rituais xinguanos e a cosmopolítica wauja”. Mundo amazónico, v. 3:71-94.).17 17 Entre agosto e setembro de 2021, dois dos lutadores mais reconhecidos no âmbito regional, invictos em suas carreiras, completaram esse ciclo. Hekine Kalapalo e Aritana Yawalapiti faleceram e receberam o egitsü em homenagem para completar suas biografias de maiores campeões e chefes patrocinadores.

Entretanto, é importante dizer que, apesar desse elevado número de empates, as vitórias por arremesso, tipo ideal de resultado, causam os momentos mais intensamente celebrados pelos participantes. A gritaria e a comemoração motivadas por uma vitória por arremesso numa luta entre campeões é o auge do egitsü. Essas vitórias ideais, mesmo sendo numericamente minoritárias, são socialmente mais valorizadas, o que seria uma analogia18 18 Usamos analogia apoiados no entendimento de Goldman sobre Wagner: “O procedimento analógico deve obedecer a três princípios fundamentais. Primeiro, só pode operar num campo de diferenças, o que significa que, evidentemente, só precisamos de analogias quando nos defrontamos com situações à primeira vista irredutíveis às que nos são habituais - ou seja, analogia não é sinônimo de semelhança. Em segundo lugar, nenhum dos dois termos colocados em relação pela analogia deve estar situado em um plano superior ao outro, como se o primeiro fosse capaz de revelar a verdade oculta do segundo - analogia não significa explicação. Por fim, os dois termos devem ser afetados pelo processo, de tal modo que o conceito ocidental de cultura, por exemplo, tem que ser ao menos ligeiramente subvertido quando serve de analogia para a vida nativa - o que significa que a analogia é da ordem da relação: a ideia de 'relação' é importante aqui pois é mais apropriada à conciliação de duas entidades ou pontos de vista equivalentes do que noções como 'análise' ou 'exame', com suas pretensões de objetividade absoluta" (Goldman 2011:29). com o casamento das reclusas que entregam as castanhas aos chefes convidados após as lutas. Tais casamentos também são celebrados com intensa gritaria, apesar de pouco recorrentes. Deste modo, a vitória por arremesso contra o outro e o casamento interétnico ao final do egitsü têm seus significados associados à comemoração por cada um deles, neste que é, sem dúvida, o momento de maior expectativa e visibilidade regional.19 19 Ao analisar a relação entre o charivari e o eclipse, a partir da gritaria ocorrida nesses momentos, Lévi-Strauss (2004b:329) estabelece que o ruído sanciona ou uma conjunção repreensível ou uma disjunção cheia de riscos. Isto, para destacar que tais situações representam perigo, trata de mostrar que existe uma ruptura na cadeia sintagmática que é seguida de uma intrusão de um elemento estranho. As gritarias ocorridas durante o roubo do fogo central, nas vitórias por arremesso e nos casamentos interétnicos ficariam, assim, analogicamente interligadas em seus significados.

O que pretendemos é dar fôlego a essa associação estabelecida nos ritos fúnebres entre disputas esportivas, através de combates nas artes marciais, e regimes matrimoniais - dupla maneira de se relacionar com o outro no pensamento ameríndio trabalhada a partir dessa relação transformacional entre guerra e ritual. No atual contexto histórico, não são inimigos, mas adversários; não se raptam esposas, é feita uma troca. Certo é que poucos homens e mulheres estão aptos a participar como protagonistas desses acontecimentos, ponto que nos coloca em face deste importante tema da sociologia da região: a chefia. Algo que já foi identificado em trabalhos recentes (Guerreiro 2012GUERREIRO, Antonio. 2012. Ancestrais e suas sombras: Uma Etnografia da Chefia Kalapalo e seu Ritual Mortuário. Tese de Doutorado, Universidade de Brasília., 2015bGUERREIRO, Antonio. 2015b. “Political Chimeras: The Uncertainty of the Chief's Speech in the Upper Xingu”. HAU: Journal of Ethnographic Theory, v. 5, n. 2:59-85.) é o aumento significativo na realização dos rituais, aumento que deve ser entendido em relação às mortes dos chefes que são causadas via sua faceta complementar, a feitiçaria (Vanzolini 2010VANZOLINI, Marina. 2010. A Flecha do Ciúme: O Parentesco e seu Avesso Segundo os Aweti do Alto Xingu. Tese de Doutorado, Museu Nacional., 2013VANZOLINI, Marina. 2013. “Ser e não ser gente: dinâmicas da feitiçaria no alto Xingu”. Mana - Estudos de Antropologia Social , v. 19, n. 2:341-370.).

Todos esses temas pelos quais passamos - chefia, feitiçaria, organização ritual - recebem novo enfoque quando tomados a partir da relação entre a luta e as alianças matrimoniais. A articulação das relações entre os povos aruak, karib e tupi converge para a reconhecida pax xinguana. Comparando sistemas regionais, Hugh-Jones et al. traçaram um conjunto de características que marcam o Alto Xingu e o Alto Rio Negro: complexos multiétnicos e plurilinguísticos, ênfase em intercâmbios rituais, regimes matrimoniais, de chefia, aliança e descendência.

Considere, por exemplo, suas ideias (não triviais) sobre descendência, a centralidade da hierarquia na organização social e atividades rituais, ou a distribuição desigual de especialidades produtivas, rituais e conhecimentos esotéricos. Mais importante: (a) suas propensões comuns para formar sistemas sociais relativamente pacíficos e abertos, baseados na combinação de um tipo peculiar de liderança política com ênfase no ritual e nas trocas materiais; (b) suas ênfases comuns em códigos convencionais de fala, comunicação, usos do espaço ritual e relações interpessoais (2015:699HUGH-JONES, Stephen; GUERREIRO, Antonio & ANDRELLO, Geraldo. 2015. “Space-time Transformations in the Upper Xingu and Upper Rio Negro”. Sociologia & Antropologia. v. 5, n. 3:699-723., itálicos e tradução meus).

Apesar de os autores relatarem a pouca existência de práticas esportivas no Alto Rio Negro, em contrapartida ao elevado espaço que tais disputas ocupam na economia simbólica dos rituais alto-xinguanos, destacam a especificidade desses sistemas: “Qual seria, se houver, a especificidade dessas redes multiétnicas?” (:700HUGH-JONES, Stephen; GUERREIRO, Antonio & ANDRELLO, Geraldo. 2015. “Space-time Transformations in the Upper Xingu and Upper Rio Negro”. Sociologia & Antropologia. v. 5, n. 3:699-723., trad. minha).

Propomos que tal especificidade passe a ser considerada a partir de um aprofundamento no entendimento das artes marciais e trocas matrimoniais entre os povos que irão consolidar o sistema regional. Não como algo estático e definitivo, mas com base em uma variante arawak e karib que mais ou menos incorpora outras através desses sistemas de relações desenroladas ritualmente. Com quem se luta, ou se jogam os dardos jawari e a incorporação tupi ao sistema marcam novos modos relacionais. Sinteticamente, é como se a pax xinguana fosse resultado da esportificação das práticas rituais e das relações matrimoniais tomadas de um fundo mítico, em razão de relações históricas entre distintos coletivos estabelecidos nas figuras de seus chefes. Lutar contra um adversário e não matar seu inimigo seriam assertivas desportivas em que a troca, e não o rapto de mulheres - um indicativo matrimonial - evidencia a relação transformacional entre guerra e ritual neste contexto histórico.

Artes marciais no programa da etnologia alto-xinguana: luta e dardos

Passamos pela demonstração das relações entre os povos no sistema regional destacando a centralidade da luta na organização do ritual pós-funerário egitsü, de origem aruak-karib, assim como as possibilidades das trocas matrimoniais interétnicas. Chamamos a atenção, ainda, para a visibilidade conferida aos/às jovens chefes/as formados pela reclusão pubertária que ocorre no interior da casa, para serem apresentados no plano interétnico. Processo dialético entre o local e o regional, a sincronia e a diacronia, entre a produção doméstica dos corpos e a exibição dos futuros chefes, lutadores e esposas, o que remete diretamente aos processos de fabricação corporal e ao “idioma simbólico sul-americano” (Viveiros de Castro 1979VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1979. “A Fabricação do Corpo na Sociedade Xinguana”. Boletim do Museu Nacional , n. 32:40-49.; Seeger et al. 1979SEEGER, Anthony; DAMATTA, Roberto & VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1979. “A Construção da Pessoa nas Sociedades Indígenas Brasileiras”. Boletim do Museu Nacional, n. 32:2-19.; Lima 2000LIMA, Tânia. 2000. “Que é um Corpo?”. Religião e Sociedade, v. 22, n. 1:9-20.).

Agora, seguiremos Menezes Bastos e a proposta de demonstrar historicamente a chegada dos subgrupos tupi, sob a designação Kamayurá, e de como o jawari foi incorporado no mesmo sentido de implementação da pax xinguana (aqui tratada por pax xinguensis):

A generalização do ritual intertribal - bem como da etiqueta da xinguanidade - é um elemento de decisivo interesse na imposição da pax xinguensis. Note-se que tanto o Kwaryp quanto o Yawari - mas especialmente este - têm nos episódios em torno da “luta livre” xinguana (“uca-uca”) um de seus pontos culminantes, esta luta sendo feita, basicamente, entre primos-cruzados entre si (“outros”). Quanto ao primeiro ritual, provavelmente ele é de formação Aruak, a se julgar pelas letras das canções respectivas. O mesmo pode ser dito a respeito do Yawari, seguramente de origem Trumai-Kamayurá. De um lado, um rito proto-xinguano; de outro, xinguano recente. Ambos em torno da instituição da chefia, no primeiro caso, a efígie respectiva sendo remetida para a fertilização das águas, no segundo, para a transformação do fogo. Explanações nativas apontam para o Kwaryp como um ritual de temporalidade mito-cosmológica, original, e para o Yawari, de cronologia histórica. Enfim, dois rituais em tudo e por tudo complementares, cuja generalização representa o congelamento mesmo das contradições existentes entre grupos locais e facções intertribais, canalizadas agora, somente através do complexo feitiçaria-xamanismo (1989:397MENEZES BASTOS, Rafael. 1989. “Exegeses Yawalapití e Kamayurá da Criação do Parque Indígena do Xingu e a Invenção da Saga dos Irmãos Villas Boas”. Revista de Antropologia , v. 30/31/32:391-426., itálicos nossos).

Menezes Bastos foi pioneiro ao trabalhar a relação que os Kamayurá estabelecem entre os rituais do yawari (jawari) e do kwaryp (egitsü). Uma primeira ideia é que em ambos música e dança existem concomitantemente com a guerra, embora a prática seja dos dardos e da luta - a referida transformação da guerra em disputas esportivas, estabelecendo o lugar central da guerra no sistema regional. Para consolidar a argumentação, o autor retoma o debate entre culturalismo e monografia,20 20 Para debates sobre “Visões Regionais e Visões Locais”, ver Franchetto e Heckenberger (2001). correntes teóricas presentes nas pesquisas sobre a região e como passam pelos “clichês” ao debater a “etiqueta da xinguanização” (Menezes Bastos 1989MENEZES BASTOS, Rafael. 1989. “Exegeses Yawalapití e Kamayurá da Criação do Parque Indígena do Xingu e a Invenção da Saga dos Irmãos Villas Boas”. Revista de Antropologia , v. 30/31/32:391-426., 1995MENEZES BASTOS, Rafael. 1995. “Indagação sobre os Kamayurá, o Alto-Xingu e Outros Nomes e Coisas: Uma Etnologia da Sociedade Xinguara”. Anuário Antropológico , v. 94:227-269.). Essa proposta metodológica reside em definir o sistema alto-xinguano, em relação ao domínio do político, pela justaposição das perspectivas histórica e mitológica.

Comparando o Kwarup com o Jawari, os kamayurá fazem uma distinção que evidencia a pertinência central da questão da consciência histórica e mítica entre eles... Dizem os kamayurá que o Kwarup está no “princípio” (ypy) e o Jawari apenas no meio (myjtet), este “apenas” sugerindo a inferioridade do último em relação ao primeiro. “Princípio” aqui se refere à temporalidade original - de passagem para a hominalidade -, arquetípica, mítica enfim, indicada pelo advérbio mawe nas narrativas (mais ou menos traduzível pela expressão “era uma vez”). “Meio”, por outro lado, retira o objeto assim caracterizado (no caso, o Jawari) dessa temporalidade singular. Nas narrativas, usa-se agora o advérbio ang. Afirmam eles, para consolidar a aguda comparação, que quem começou o Kwarup foi Mawutsini - o demiurgo por excelência -, o Jawari tendo sido iniciado pelos pajetã, grupo indígena, segundo eles, extinto, com língua e costumes muito próximos dos trumai e ancestrais destes. Os pajetã - segundo os informantes, os ho’i das letras do Jawari -, ensinaram o Jawari aos trumai, os kamayurá (e aweti) tendo com eles aprendido o rito (Menezes Bastos 2001:343MENEZES BASTOS, Rafael. 2001. “Ritual, História e Política no Alto Xingu: Observações a partir dos Kamayurá e do Estudo da Festa da Jaguatirica (Jawari)”. In: B. Franchetto & M. Heckenberger (orgs.), Os Povos do Alto Xingu: História e Cultura. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ . pp. 335-357.).

Os Pajetã seriam um povo antigo que realizava guerras contra os demais proto-tupi e é dessa relação belicosa que têm origem os cantos do jawari Kamayurá. O autor afirma que, do ponto de vista kamayurá, o kwarup é lido pela chave da mitologia, ao passo que o jawari, da história política. Retoma ainda a mitologia para falar sobre a separação entre pássaros e peixes e como ela está ligada ao ritual: jawari/pássaros (que narra a separação entre céu e terra pelos urubus que vão comer as almas dos mortos) e kwarup/peixes (e as lutas míticas envolvendo os peixes contra os animais terrestres). A proposta do autor é tratar a relação entre os rituais interétnicos e suas exegeses nativas como “cadeias semióticas” (:345). E também pensar as práticas artísticas neles envolvidas, o que faremos ao buscar compreender o espaço das artes marciais e suas conexões mitológicas e históricas.

A relação entre o domínio técnico dos movimentos corporais elaborados em cada golpe é indissociável do conhecimento teórico sobre ele, muitas vezes filosófico. Inúmeros assuntos debatidos por Menezes Bastos na formulação dessa proposta são reconhecidos também numa tomada sobre os temas etnográficos que envolvem a luta. Mesmo o tema fundamental para este autor, a disputa dos dardos jawari, pode ser considerada uma arte marcial no sentido que aqui pretendemos, uma disputa entre grupos rivais que cantam pilhérias contra seus adversários e arremessam dardos em seus oponentes, dardos estes que não mais visam à morte do inimigo, mas à vitória sobre o adversário - a referida “eufemização da violência” e transformações dos usos e dos significados das armas para um contexto de disputa.

No Alto Xingu a ressignificação dos dardos para confrontos desportivos, ao invés de sua utilização para guerra ou caça, é subsidiária da pacificação. Essa esportificação é acompanhada de uma nova configuração para sua prática, ou seja, o uso dos propulsores e dardos não se dá em outro momento que não o ritual. Tal como na luta, os combates corporais devem ser ritualizados para que possam ocorrer não mais entre inimigos, mas sim entre adversários, regidos por uma temporalidade, ter começo, meio e fim. É claro que o contexto de pacificação deve ser relativizado, pois as inimizades se mantêm, como na pertinência do complexo xamanismo-feitiçaria. O que pretendemos é que a luta e as disputas nos dardos sejam consideradas na ampliação desse programa que antevê nos estudos das artes um caminho para a intertradutibilidade de mito e rito. E, neste caso, artes marciais, artes do/no corpo, idioma simbólico referencial.

Não se trata de que dança, música e artes marciais “digam” a mesma coisa por vias diferentes. A questão da tradução reside, pois, no fato de que cada uma dessas expressões artísticas tem suas próprias maneiras de dizer coisas diferentes, porém, integradas que são, numa mesma cadeia intersemiótica. Aumentar os conhecimentos sobre os significados inerentes às artes marciais, disputadas ritualmente, contribui não só para o estudo das práticas esportivas, mas também para a música, a dança, a pintura, isto é, para este programa de estudos sobre as artes sul-americanas (Gell 1998GELL, Alfred. 1998. Art and Agency: An Anthropological Theory. Oxford: Claredon Press.; Lagrou 2007LAGROU, Els. 2007. A Fluidez da Forma: Arte, Alteridade e Agência em uma Sociedade Amazônica. Rio de Janeiro: Toobooks Editora.).

Por hora, fechamos com Menezes Bastos mostrando como o estudo da arte pode dar conta da tradução, nos termos do autor, entre mito e rito. Uma antropologia das artes marciais ajudaria a desenvolver não somente o “idioma da corporalidade”, como também trazer questões de outras ordens, filosóficas, cosmológicas, para que a kindene e o jawari possam circular nas mais altas esferas quando se tratar das relações intra e interétnicas:

Em resumo, a perspectiva em estudo supõe a arte como universo central para a compreensão das terras baixas, entendidas estas como um mundo relacional e comunicante por excelência. Aqui, as ideias da intertradutibilidade dos subsistemas artísticos envolvidos no rito e, nessa trama, do papel central da música, são básicas... Estudos indicam fortemente a pertinência e a utilidade da perspectiva em referência - centrada no estudo integrado da arte - para a antropologia das terras baixas (Menezes Bastos 2001:347MENEZES BASTOS, Rafael. 2001. “Ritual, História e Política no Alto Xingu: Observações a partir dos Kamayurá e do Estudo da Festa da Jaguatirica (Jawari)”. In: B. Franchetto & M. Heckenberger (orgs.), Os Povos do Alto Xingu: História e Cultura. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ . pp. 335-357., itálicos nossos).

Deste modo, as artes marciais, ensinadas mitologicamente, consolidadas no plano histórico e disputadas durante os rituais, vêm para somar-se a este intricado programa que antevê nas artes ameríndias caminhos para a conexão entre distintas e integradas manifestações. Não por acaso, existe um contínuo entre pinturas e adereços corporais, conhecimentos musicais e tradicionais, danças e habilidades técnicas que compõem a figura dos campeões, também não por acaso, chefes ou potenciais futuros chefes.

Enfraquecimento das oposições e transformações entre guerra e ritual

Após descrições sobre o que estamos a tratar por artes marciais alto-xinguanas, sua proximidade com outros modos relacionais, como as trocas matrimoniais, os subsistemas artísticos, comerciais e até mesmo de inimizades, via a feitiçaria, encerramos o argumento ao especificar as relações de transformações entre guerra e ritual a partir do “enfraquecimento das oposições”.

Ao pesquisar os processos históricos de interações entre os grupos aruak/karib e tupi no Alto Xingu, Menezes Bastos (1984:142MENEZES BASTOS, Rafael. 1984. “O “Payemeramaraka” Kamayurá: uma Contribuição à Etnografia do Xamanismo no Alto Xingu”. Revista de Antropologia , v. 27/28:139-177.) destaca a importância do “amansamento” dos chamados “índios bravos”, mudando seus hábitos sexuais, alimentares, matrimoniais. A xinguanização teria se iniciado, entre outros fatores, a partir da mudança dos mestres do arco para os mestres da fala, cujas habilidades na luta ritual seriam características essenciais. Esse deslocamento do eixo da guerra para o da política21 21 Ou a política como continuação da guerra por outros meios, numa transformação da máxima de Clausewitz (Guerreiro 2012:27). faria parte do “virar gente” de que tratam Basso (1973BASSO, Ellen. 1973. The Kalapalo Indians of Central Brazil. New York: Holt/ Rinehart & Winston.) e Coelho de Souza (2001COELHO DE SOUZA, Marcela. 2001. “Virando Gente: Notas a uma História Aweti”. In: B. Franchetto & M. Heckenberger (orgs.), Os Povos do Alto Xingu: História e Cultura. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ. pp. 358-400.). Seja no plano das relações interétnicas ou da formação da pessoa, os “chefes de verdade” (anetü hekugu) são aqueles que não ficam bravos jamais: “Ele é deixado passar fome para que aprenda a controlar a sua raiva, pois um verdadeiro amunaw [chefe] é aquele que jamais se encoleriza” (Barcelos Neto 2005:278BARCELOS NETO, Aristóteles. 2005. Apapaatai: Rituais de Máscaras no Alto Xingu. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.).

Nosso ponto é demonstrar como um conjunto de disputas corporais e embates performáticos caminha entrelaçado a esse “amansamento” e como as artes marciais ritualizadas podem ser consideradas como “enfraquecimentos” da lógica guerreira - quando tomado este contexto histórico específico:

A guerra não é um momento necessário de reprodução social, adquirindo a feição de guerra defensiva. A sua substituição por outras práticas sociais é explicitamente afirmada pelos povos do Alto Xingu, que dizem não fazê-la por preferirem realizar festivais para os chefes, aos quais convidam todas as aldeias para cantar, dançar, trocar e lutar. No Xingu, a violência foi ritualizada e expressa na forma da luta esportiva, evento obrigatório nos rituais intertribais. A essa esportificação da violência juntam-se uma cuidadosa etiqueta da moderação e um regime alimentar fundado em uma ideologia antivenatória e anticanibal (Fausto 2007:28FAUSTO, Carlos. 2007. “Entre o Passado e o Presente: Mil Anos de História Indígena no Alto Xingu”. Revista de Estudos e Pesquisas, v. 2, n. 2:9-52., itálicos nossos).

Seja pela kindene ou pelo jawari, as relações interétnicas entre esses povos passam a se consolidar pela via ritual, instaurando uma duplicidade entre aliança e oposição e como isso se traduz na pacificação das relações de alteridade, ou seja, formas que poderiam ser descritas como enfraquecidas da guerra ao se estabelecerem através de disputas corporais e regimes matrimoniais.

No terceiro volume das Mitológicas, A Origem dos Modos à Mesa, Lévi-Strauss diz que a passagem do mito ao romance opera de modo que as oposições se enfraqueçam ao saírem do plano estrutural para o da serialidade, cuja condição de existência dos mitos enfraquecidos estaria subordinada à sua repetição. A relação entre sintagma e paradigma é estabelecida demonstrando como os enfraquecimentos das oposições atuam na relação entre mitos e periodicidade. No caso analisado, marcada através da astronomia em relação à origem das estrelas, uma periodicidade anual, passando por enfraquecimentos ao tratar das periodicidades sazonais (presença ou ausência de peixes), ou mesmo a alternância dos dias, a relação entre sol e lua (Lévi-Strauss 2006:93LÉVI-STRAUSS, Claude. 2006 [1968]. A Origem dos Modos à Mesa. São Paulo: Cosac Naify .).

O enfraquecimento das oposições é trabalhado ao afirmar como as construções romanescas tomam o lugar das narrativas míticas e como tais enfraquecimentos ocorrem em todos os códigos. Isto é feito através da análise sistemática de um conjunto de mitos, ou melhor, é corroborada a partir da relação de complementaridade entre dois mitos e como tais enfraquecimentos provocam as transformações de conteúdo e de forma.22 22 M354 é o mito estrutural e M60 sua forma enfraquecida. Ambos tratam dos mesmos paradigmas, mas invertem o conteúdo de modo que em cada eixo paradigmático ocorra uma diminuição, ocasionando posteriormente a transformação sintagmática: do mito ao romance. Enquanto os personagens de M354 são Homem - Mãe - Esposa, em M60 são Esposa - Pai - Marido. No final de M354: Mulher - agarra - marido - se livra - água, ao passo que em M60: Homem - larga - mulher - se vinga - fogo. M354 e M60 estão na ordem dos conjuntos, daí suas transformações (Lévi-Strauss 2006:105).

Isto para demonstrar como o enfraquecimento das oposições não está apenas em um paradigma, mas em todos. Assim, as oposições sociológicas se enfraquecem (a heroína é uma mulher); o paradigma anatômico se enfraquece (ao invés da mutilação, ocorre a pancada na perna); e o paradigma astronômico também (não se trata mais de uma periodicidade anual, marcada pelas estrelas, mas da alternância entre sol e lua).23 23 Em Antropologia Estrutural Dois, tal ferramenta demonstrava o enfraquecimento a partir de uma oposição marcada no paradigma espacial. Da oposição inicial entre leste e oeste a intervalos menores: [oeste : leste] :: [mar : terra] :: [água : terra (firme)] :: [rio : margem] (Lévi-Strauss 2013:197).

Seu conteúdo estrutural se dissipa. No lugar das transformações vigorosas do início, só se veem, no final, transformações exauridas. Esse fenômeno já se tinha apresentado a nós na passagem do real para o simbólico, depois para o imaginário (supra:75), e agora se manifesta de dois outros modos: os códigos sociológico, astronômico e anatômico, que tínhamos visto funcionar claramente, passam para o estado latente, e a estrutura se degrada em serialidade. Essa degradação começa quando estruturas de oposição dão lugar a estruturas de reduplicação - episódios sucessivos, mas todos no mesmo molde. E se encerra no momento em que a própria reduplicação assume o lugar de estrutura. Forma de uma forma, ela colhe o derradeiro murmúrio da estrutura expirante. Já sem nada, ou quase nada, a dizer, o mito só dura sob a condição de repetir-se (Lévi-Strauss 2006:116-17LÉVI-STRAUSS, Claude. 2006 [1968]. A Origem dos Modos à Mesa. São Paulo: Cosac Naify .).

Propomos agora a utilização do enfraquecimento das oposições para pensar a relação entre a prática guerreira e as artes marciais nativas. Não se trata de ruptura, mas de processos, de transformações históricas, de seguidos enfraquecimentos em que a relação entre matador e sua vítima, reverberação da relação fundamental entre vida e morte, passa para aquela entre vencedor e vencido através das disputas rituais. O enfraquecimento vai se estabelecer de modo que as mudanças paradigmáticas desencadeiem transformações sintagmáticas, ou seja, alterou-se tanto o conteúdo das oposições que estas passam a adquirir uma nova forma: o ritual.

Se a guerra é que consolida a relação entre morte e vida, e ao longo da história as guerras marcaram as relações entre os povos na região, as práticas ritualizadas transformam essa relação. Sai do plano da metonímia para a metáfora, como demonstrado na análise dos discursos rituais da chefia kalapalo feita por Guerreiro (2012:298GUERREIRO, Antonio. 2012. Ancestrais e suas sombras: Uma Etnografia da Chefia Kalapalo e seu Ritual Mortuário. Tese de Doutorado, Universidade de Brasília., 2015bGUERREIRO, Antonio. 2015b. “Political Chimeras: The Uncertainty of the Chief's Speech in the Upper Xingu”. HAU: Journal of Ethnographic Theory, v. 5, n. 2:59-85.) sobre como o chefe assume ser um “super-consanguíneo” para os seus perante a função-Jaguar de seus discursos direcionados aos chefes convidados. Ou mesmo o sistema cancional do jawari, analisado por Menezes Bastos (1993MENEZES BASTOS, Rafael. 1993. “A Saga do Yawari: Mito, Música e História no Alto Xingu”. In: M. Carneiro da Cunha & E. Viveiros de Castro (orgs.), Amazônia: Etnologia e História Indígena. São Paulo: Universidade de São Paulo. pp. 117-146.), e a presença constante da guerra transformada em pilhérias contra seus adversários. Os discursos rituais e o sistema cancional estabelecem essa passagem do sentido próprio para o sentido figurado na relação entre antigos inimigos, agora adversários. Tais discursos são ainda acompanhados das artes marciais (esportificação) e das relações matrimoniais, alimentares, sexuais, nesse processo de enfraquecimento (amansamento) ocorrido em diferentes códigos.

Necessário destacar que a relação entre guerra e ritual é também um enfraquecimento da oposição principal, entre morte e vida. O assassinato, a destruição das aldeias inimigas, a tomada de mulheres passam cada qual por reduções: não se mata o inimigo, luta-se contra o adversário. Não se incendeia a aldeia, acampa-se em torno dela e, que gesto mais simbólico, rouba-se o fogo central. Não se tomam mulheres, as reclusas são levadas pelos chefes locais a oferecerem castanhas de pequi (alimento símbolo de sexualidade) aos chefes rivais.

De maneira que:

[guerra : ritual] :: [assassinato : luta/dardos] :: [incêndio : roubo] :: [rapto : troca]

Porém, é importante ter em mente que as inimizades não se resolvem com esses enfraquecimentos. A relação entre vida e morte, real, passa por um enfraquecimento que a leva para outro domínio, simbólico, entre vencedores e vencidos, ainda que a ambiguidade seja marca dos resultados nas lutas e no jawari. É aqui que a feitiçaria aparece, uma vez que é a causa das mortes, ou seja, a morte, o dado mais concreto da realidade, na ausência de confrontos bélicos e na canalização dos conflitos através das artes marciais, precisa de outro mecanismo para acontecer, daí a feitiçaria. De modo que, para abordar essa relação primeira entre morte e vida de que tratam os rituais alto-xinguanos, é como se a transformação da guerra em ritual - “a afirmação categórica, tanto dos xinguanos quanto de seus pesquisadores, de que ‘o ritual toma o lugar da guerra’” - (Hugh-Jones et al 2015:714HUGH-JONES, Stephen; GUERREIRO, Antonio & ANDRELLO, Geraldo. 2015. “Space-time Transformations in the Upper Xingu and Upper Rio Negro”. Sociologia & Antropologia. v. 5, n. 3:699-723., trad. minha), se desse de modo que o ritual se tornasse o momento, não exclusivo, mas preponderante, da prática da feitiçaria, que é a causa das mortes atuais.

Se a morte necessariamente deve ocorrer para encerrar um ciclo - e o egitsü é a libertação da alma do falecido no caminho para a aldeia celeste (Guerreiro 2012:271GUERREIRO, Antonio. 2012. Ancestrais e suas sombras: Uma Etnografia da Chefia Kalapalo e seu Ritual Mortuário. Tese de Doutorado, Universidade de Brasília.), ou ainda, o “duplo do duplo” (Fausto 2017:665FAUSTO, Carlos. 2017. “Chefe Jaguar, Chefe Árvore: Afinidade, Ancestralidade e Memória no Alto Xingu”. Mana - Estudos de Antropologia Social , v. 23, n. 3:653-676.) -, ela só pode ser processada pela feitiçaria, isso num contexto de pacificação das relações entre povos que se convidam mutuamente para os rituais. E a feitiçaria tem maior potencial de ocorrer nesses eventos, cheios de “gente diferente” (telo), encontros que aumentam as chances de alguém ser alvo da “maldade dos feiticeiros”.

Levando adiante essa ideia, seria motivo para se pensar no elevado número de ritos que acontecem atualmente. As distâncias diminuíram, os meios de locomoção e de obtenção de alimentos incrementaram, inclusive com o turismo e o “lugar dos brancos” no ritual, o que potencializou o número de eventos. Trabalhos recentes confirmam a relação entre o aumento no número de rituais e a ampliação no número de mortes de chefes, causadas, como se sabe, pela feitiçaria. Por esta premissa, os ritos funerários aumentariam em quantidade, tendo a repetição como condição de sua manutenção. A morte precisa continuar a ocorrer, senão pela guerra, pela feitiçaria, o terceiro vértice desse triângulo, e que vai culminar na realização de rituais em homenagem aos chefes falecidos. Rituais que serão os momentos decisivos de apresentação dos novos chefes, os “substitutos”, seja através das lutas, dos dardos, seja das possibilidades matrimoniais.

Considerações finais

O objetivo deste texto foi abordar as relações entre guerra e ritual a partir de um contexto etnográfico específico, as chamadas artes marciais alto-xinguanas, tomando como referência conceitual uma ferramenta desenvolvida por Lévi-Strauss. A possibilidade de usar o enfraquecimento das oposições se deu, principalmente, pelo interesse em buscar as transformações históricas24 24 Em outro texto, Lévi-Strauss trabalha os enfraquecimentos das oposições e as transformações dos mitos em suas relações com a história: “Assim, um mito que se transforma ao passar de uma tribo para outra acaba por se extenuar, sem por isso desaparecer. Duas vias ainda permanecem abertas: a da elaboração romanesca e a da reutilização com fins de legitimação histórica. Essa história, por sua vez, pode ser de dois tipos: retrospectiva, para fundamentar uma ordem tradicional num passado remoto, ou prospectiva, para fazer desse passado o germe de um porvir que começa a tomar forma” (Lévi-Strauss 2013:300), ou seja, um futuro que deixou a guerra para trás em nome das realizações rituais e da pacificação das relações. pelas quais passaram os povos que constituem esse conjunto multiétnico até a chamada pax xinguana.

O desenvolvimento das artes marciais e das trocas matrimoniais realizadas ritualmente; o aumento na produção dos rituais pós-funerários, causados pela feitiçaria contra os grandes chefes; o referido “idioma da corporalidade” e a exibição performática dos potenciais futuros chefes; a tradução entre diferentes formas de artes envolvidas, que fazem a intertradutibilidade de mito e rito a partir do desenrolar das relações históricas, todos estes são temas etnográficos que se apresentam ao se tomar como referência as relações entre esses povos, sua descrita especificidade. Tal característica que está diretamente conectada com o idioma pan-xinguano de não violência pública, de uma etiqueta marcada pela vergonha, pela calma, pelo amansamento, em suma, pela pacificação das relações. Foi neste sentido, ao menos como inspiração, que propusemos a aproximação entre a esportificação, a “eufemização da violência” e o desenvolvimento processual das relações pacíficas através de confrontos esportivos. E também a tomada conceitual do enfraquecimento das oposições, isto é, das transformações que consolidam as relações entre guerra e ritual.

Ao contrastar as exegeses yawalapiti e kamayurá em face das versões oficiais, Menezes Bastos confronta os “clichês” sobre a região ao demonstrar que não se trata tão somente de “pacifismo”, “isolacionismo”, “conservação sociocultural”, mas também de uma intricada teia de alianças e oposições, dando destaque para a superação da saga heroica dos irmãos Villas-Boas, embora respeitando o trabalho de linha de frente da expedição (1989:392MENEZES BASTOS, Rafael. 1989. “Exegeses Yawalapití e Kamayurá da Criação do Parque Indígena do Xingu e a Invenção da Saga dos Irmãos Villas Boas”. Revista de Antropologia , v. 30/31/32:391-426.). A questão é mostrar, a partir do ponto de vista dos Kamayurá e dos Yawalapiti, a chegada dos Villas-Boas e as maneiras como as narrativas oficiais se confrontam com as versões nativas. A “saga heroica” é considerada o “quarto período” de consolidação histórica da região. Dada a realocação dos povos no entorno da formação proto-xinguana aruak-karib, passam a se integrar nesse complexo multilinguístico alguns tipos de linguagens francas, destacando-se os rituais, as artes marciais, matrimoniais e o complexo xamanismo-feitiçaria, a marca das relações de inimizades.

Deste modo, a consolidação da pax xinguana foi estabelecida através de três princípios básicos: 1. abastecimento permanente de bens manufaturados, porém, insuficientes; 2. controle das principais doenças virais e infecciosas; 3. generalização pan-xinguana da realização ritual e do sentimento de não violência pública, “etiqueta da xinguanidade”. Os Kalapalo, Kuikuro, Mehinaku e Wauja (proto-xinguanos) somados aos Nahukua, Matipu e Yawalapiti realocados, e aos Aweti, invasores, passam a consolidar as relações com os Kamayurá e suas facções tupi. Nesse mesmo movimento, as relações com Trumai, Suya, Juruna e Txucahamãe vão diminuindo - a ponto de que em nove participações em egitsü nunca presenciei convites feitos a esses povos.

Enfim, essas considerações são para evidenciar a complexidade das relações entre esses povos que, numa dupla tomada, afastam as inimizades para tempos longínquos, ou trazem para a memória histórica - como no caso narrado por Menezes Bastos quando da oposição entre os Kamayurá e Leonardo Villas-Boas, sendo que os Yawalapiti se aliaram ao sertanista, no controle do posto de vigilância que levaria seu nome, ao mesmo tempo em que os Kamayurá, após a ameaça de morte de Leonardo ao filho do chefe kamayurá - e o episódio das relações sexuais na casa das flautas - passam a se aliar ao posto de vigilância Jacaré e ao pessoal da FAB (Menezes Bastos 1989:396MENEZES BASTOS, Rafael. 1989. “Exegeses Yawalapití e Kamayurá da Criação do Parque Indígena do Xingu e a Invenção da Saga dos Irmãos Villas Boas”. Revista de Antropologia , v. 30/31/32:391-426.). Tais oposições e inimizades marcam essa etapa e consolidam as alianças e as rivalidades em outro plano e que serão enfrentadas não mais pela guerra, mas pelas disputas rituais e pelos casamentos interétnicos: “Observe-se que tal repartição poderia direcionar-se ao confronto entre esses dois grupos locais caso um providencial casamento não se fizesse, aquele entre o pai de Aritana 3 (YL) com duas irmãs de Takumã (KM)” (:397).

Além desse casamento entre o chefe yawalapiti com as irmãs do chefe kamayurá, outros casamentos interétnicos ocorrem entre famílias de chefes e confirmam os regimes matrimoniais, especialmente aqueles realizados ritualmente, como nova forma de relacionamento com a alteridade. Chefes kalapalo vão se casar na aldeia Yawalapiti, respeitando a uxorilocalidade, e se estabelecem as relações entre Yawalapiti e Kuikuro - amplamente descritas na literatura desses povos.25 25 Por exemplo, Guerreiro relata a ida de um dos grandes chefes kalapalo para se casar na aldeia Yawalapiti (2012). Ver também as relações entre Txicão e Wauja, inimigos históricos, que passam a trocar esposas e a se visitarem mutuamente nesse mesmo período (Menget 2001:103). Deste modo, os casamentos interétnicos, ainda que minoritários, serão os responsáveis por garantir as alianças rituais quando da homenagem a um chefe falecido, momento maior das disputas através das artes marciais aqui analisadas.26 26 Ou, etnograficamente, como num egitsü matipu em que os chefes kalapalo, yawalapiti e matipu consolidaram uma aliança que fez o time de luta anfitrião ser imbatível, com muitas vitórias e nenhuma derrota. Os chefes kalapalo tinham relações de consanguinidade com os homenageados, ao passo que o chefe yawalapiti era genro, casado com as filhas da homenageada principal. Retomando Clastres, mais uma vez, sobre como a aliança para a guerra não seria um fim, mas um meio para se obter a melhor empreitada possível, uma ponte entre relações matrimoniais.

Desta forma, delimitamos as artes marciais como objetos privilegiados para debater a pax xinguana. São alianças e oposições que se reorganizam a cada ritual com sua instabilidade característica, relativizando a relação entre guerra e paz e a manutenção de linguagens francas, como as trocas matrimoniais interétnicas e o complexo xamanismo-feitiçaria. Através de ferramentas conceituais, como os processos de esportificação e o enfraquecimento das oposições, os dados relativos às disputas corporais definidas como artes marciais ampliam e dão polimento aos embates interétnicos realizados ritualmente.

Agradecimento

Agradeço às instigantes leituras realizadas pelos/as pareceristas anônimos/as que, através de ótimas críticas e sugestões, muito colaboraram para o desenvolvimento e o aprimoramento desta versão.

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  • MENEZES BASTOS, Rafael. 2001. “Ritual, História e Política no Alto Xingu: Observações a partir dos Kamayurá e do Estudo da Festa da Jaguatirica (Jawari)”. In: B. Franchetto & M. Heckenberger (orgs.), Os Povos do Alto Xingu: História e Cultura Rio de Janeiro: Editora da UFRJ . pp. 335-357.
  • MENGET, Patrick. 1978. “Alliance and Violence in the Upper Xingu”. Apresentado em 77 th Annual Meeting of the American Anthropological Association, Los Angeles.
  • MENGET, Patrick. 2001. Em Nome dos Outros: Classificação das Relações Sociais entre os Txicão do Alto Xingu Lisboa: Assírio & Alvin.
  • MONOD-BECQUELIN, Aurore. 2001. “Histórias Trumais”. In: B. Franchetto & M. Heckenberger (orgs.), Os Povos do Alto Xingu: História e Cultura Rio de Janeiro: Editora da UFRJ . pp. 401-443.
  • NOVO, Marina. 2018. “Esse é o Meu Patikula": Uma Etnografia do Dinheiro e Outras Coisas entre os Kalapalo de Aiha Tese de Doutorado, Universidade Federal de São Carlos.
  • PERRONE-MOISÉS, Beatriz. 2016. Festa e Guerra Tese de Livre-docência. São Paulo: USP.
  • RODRIGUES, Patrícia. 2006. “Vida Cerimonial e Luto entre os Javaé da Ilha do Bananal”. Revista de Estudos e Pesquisas , 3 (1/2):107-131. Brasília: Funai.
  • SEEGER, Anthony; DAMATTA, Roberto & VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1979. “A Construção da Pessoa nas Sociedades Indígenas Brasileiras”. Boletim do Museu Nacional, n. 32:2-19.
  • SEEGER, Anthony. 1980. Os Índios e Nós: Estudos Sobre Sociedades Tribais Brasileiras Rio de Janeiro: Campus.
  • STEINEN, Karl. 1940. “Entre os Aborígines do Brasil Central”. Revista do Arquivo Municipal, separata: XXXIV e LVIII.
  • VANZOLINI, Marina. 2010. A Flecha do Ciúme: O Parentesco e seu Avesso Segundo os Aweti do Alto Xingu Tese de Doutorado, Museu Nacional.
  • VANZOLINI, Marina. 2013. “Ser e não ser gente: dinâmicas da feitiçaria no alto Xingu”. Mana - Estudos de Antropologia Social , v. 19, n. 2:341-370.
  • VERANI, Cibeli. 1990. A “Doença da Reclusão” no Alto Xingu: Estudo de um Caso de Confronto Intercultural Dissertação de Mestrado, Museu Nacional.
  • VIANNA, Fernando. 2008. Boleiros do cerrado. Índios Xavantes e o futebol São Paulo: Annablume Editora/Fapesp/ISA.
  • VILLAS BOAS, Orlando & VILLAS BOAS, Claudio. 1970. Xingu: os Índios, seus Mitos São Paulo: Círculo do Livro.
  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1977. Indivíduo e Sociedade no Alto Xingu: os Yawalapíti Dissertação de Mestrado, Museu Nacional.
  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1979. “A Fabricação do Corpo na Sociedade Xinguana”. Boletim do Museu Nacional , n. 32:40-49.

Notas

  • 1
    Embora a etnologia ainda não tenha se debruçado em pormenores sobre combates indígenas, podemos estender esse entendimento a certos contextos de armistício e “eufemização da violência” já etnografados: as lutas rituais karajá/javaé (Rodrigues 2006RODRIGUES, Patrícia. 2006. “Vida Cerimonial e Luto entre os Javaé da Ilha do Bananal”. Revista de Estudos e Pesquisas , 3 (1/2):107-131. Brasília: Funai.); as corridas de toras e bordunas xavante (Vianna 2008VIANNA, Fernando. 2008. Boleiros do cerrado. Índios Xavantes e o futebol. São Paulo: Annablume Editora/Fapesp/ISA.; ver também https://www.youtube.com/watch?v=w-jUvCHLXh0); o Kanjire e o Pinjire kaingang (Fassheber 2006FASSHEBER, José. 2006. Etno-desporto indígena: contribuições da antropologia social a partir da experiência entre os Kaingang. Tese de Doutorado, Unicamp.); zarabatanas, arcos e flechas e a luta ritual yanomâmi (Delgado 2010DELGADO, Angél. 2010. “Estructura y función del fútbol entre los yanomami del Alto Orinoco”. Revista Española de Antropología Americana, v. 40, n. 1:111-138.). Essas disputas dão novos dimensionamentos e limites para as comparações, seja entre áreas regionais, seja através das práticas.
  • 2
    As palavras e termos nativos serão grafados em itálico. Egitsü, mais conhecido como Quarup, faz referência ao tronco de árvore homônima da qual se faz a efígie que homenageia os chefes falecidos. Na mitologia de origem, após uma longa epopeia narrada em três partes, as lutas finais acontecem entre peixes versus animais terrestres. Ver Villas Boas (1970VILLAS BOAS, Orlando & VILLAS BOAS, Claudio. 1970. Xingu: os Índios, seus Mitos. São Paulo: Círculo do Livro.) e Agostinho (1974aAGOSTINHO, Pedro. 1974a. Kwarìp: Mito e Ritual no Alto Xingu. São Paulo: EPU/Edusp., 1974bAGOSTINHO, Pedro. 1974b. Mitos e Outras Narrativas Kamayura. Salvador: UFBA.).
  • 3
    Durante aproximadamente 15 meses, divididos em sete estadias e participação em nove egitsü de diferentes povos, fiz trabalho de campo em Tanguro, segunda maior aldeia kalapalo para confecção de tese de doutorado (Costa 2013COSTA, Carlos. 2013. Ikindene hekugu. Uma etnografia da luta e dos lutadores no Alto Xingu. Tese de Doutorado, Universidade Federal de São Carlos.). A pesquisa teve por objetivo pensar a luta e a formação dos lutadores, os processos de fabricação dos corpos e os desencadeamentos políticos, intra e interétnicos, relacionados aos combates rituais. Ainda, tomar a luta junto a outros modelos relacionais, como os dardos jawari, as relações matrimoniais, a chefia e a feitiçaria, temas que aqui passaremos em revista.
  • 4
    Para uma análise sobre a relação entre festa e guerra, ver Perrone-Moisés (2016PERRONE-MOISÉS, Beatriz. 2016. Festa e Guerra. Tese de Livre-docência. São Paulo: USP.).
  • 5
    Para além da utilização frequente nas etnografias, que descrevem as disputas corporais alto-xinguanas como esportes ou práticas esportivas, pretendemos compreender os processos de esportificação (Elias 1992ELIAS, Norbert. & DUNNING, Eric. 1992. A Busca da Excitação. Lisboa: Diffel.) e o desenvolvimento histórico desses fenômenos e suas relações com processos mais amplos sobre a pacificação das relações. No modelo elisiano, esportificação remete sempre a transformação e mudança, não é algo, mas processa a mudança de algo. São processos históricos análogos ao que trabalharemos com as transformações entre guerra e ritual a partir da esportificação das modalidades descritas como artes marciais.
  • 6
    O debate sobre a categoria “dono” é recorrente na região. Como sugere Fausto: “designa uma posição que envolve controle e/ou proteção, engendramento e/ou posse, e que se aplica a relações entre pessoas (humanas e não humanas) e entre pessoas e coisas (tangíveis ou intangíveis)” (2008:330FAUSTO, Carlos. 2008. “Donos Demais: Maestria e Domínio na Amazônia”. Mana - Estudos de Antropologia Social, v. 14, n. 2:329-366.). Ver Viveiros de Castro (1977VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1977. Indivíduo e Sociedade no Alto Xingu: os Yawalapíti. Dissertação de Mestrado, Museu Nacional.), Basso (1973BASSO, Ellen. 1973. The Kalapalo Indians of Central Brazil. New York: Holt/ Rinehart & Winston.), Guerreiro (2016GUERREIRO, Antonio. 2016. “Do que é feita uma Sociedade Regional? Lugares, Donos e Nomes no Alto Xingu”. Ilha - Revista de Antropologia, v. 18, n. 2:23-55.).
  • 7
    Como se sabe, Lévi-Strauss analisa em O Pensamento Selvagem (2004LÉVI-STRAUSS, Claude. 2004 [1962]. O Pensamento Selvagem. Campinas: Papirus Editora.) a relação entre jogo e rito. Resumidamente, trata-se de um conjunto de oposições simétricas e inversas, a partir dos ritos funerários. Podemos dizer que no rito a assimetria é estrutural, opõe vivos e mortos, iniciantes e iniciados, enquanto no jogo a simetria é estrutural, estabelecendo uma igualdade prévia entre os participantes. Em contrapartida, o jogo tem um caráter disjuntivo, estabelecerá uma diferença ao final que é da ordem diacrônica, ao passo que o rito é conjuntivo. Todavia, aqui nos deteremos nos “enfraquecimentos das oposições” entre guerra e ritual, as artes marciais aí inseridas. Ver também o Finale de O Homem Nu (2011:603LÉVI-STRAUSS, Claude. 2011 [1971]. O Homem Nu. São Paulo: Cosac Naify .).
  • 8
    Para detalhes do Decreto Lei nº 50.455 de 14 de abril de 1961, assinado pelo presidente Jânio Quadros: Menezes Bastos (1989:392MENEZES BASTOS, Rafael. 1989. “Exegeses Yawalapití e Kamayurá da Criação do Parque Indígena do Xingu e a Invenção da Saga dos Irmãos Villas Boas”. Revista de Antropologia , v. 30/31/32:391-426.), Lea (1997:73LEA, Vanessa. 1997. “Parque Indígena do Xingu”. Laudo Antropológico.) e Menezes (2000:299MENEZES, Maria. 2000. Parque Indígena do Xingu: a Construção de um Território Estatal. Campinas: Editora da Unicamp/Imprensa Oficial.).
  • 9
    A proposta de Menezes Bastos é mostrar que o “amansamento” ou “xinguanização” dos Kamayurá, que trabalharemos através das disputas rituais, se deu em duas “profundidades”. Uma longínqua, que remete a esse passado canibal, e outra recente, trazida com o casamento entre o chefe yawalapiti e duas irmãs kamayurá que selaram as relações entre esses povos na época de consolidação dos limites do território sob a atuação dos irmãos Villas-Boas. Já de partida passamos por essa associação entre disputas rituais e trocas matrimoniais que fundamentam esse sistema regional ao longo da história.
  • 10
    O ritual de furação de orelhas marca a entrada dos meninos na “reclusão pubertária” (Verani 1990VERANI, Cibeli. 1990. A “Doença da Reclusão” no Alto Xingu: Estudo de um Caso de Confronto Intercultural. Dissertação de Mestrado, Museu Nacional.). É dito que todos devem passar pelo período de isolamento, mas para os filhos de chefes o fato deve ser público quando da realização do tiponhü. Nesse momento, os povos são convidados para conhecer os futuros chefes, os “substitutos” dos chefes atuais. Os meninos de linhagem de chefes passarão por uma reclusão diferenciada, no tempo e nos quesitos executados, para se tornarem grandes lutadores, pois um campeão de luta é, potencialmente, um chefe: Viveiros de Castro (1977VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1977. Indivíduo e Sociedade no Alto Xingu: os Yawalapíti. Dissertação de Mestrado, Museu Nacional.); Barcelos Neto (2005BARCELOS NETO, Aristóteles. 2005. Apapaatai: Rituais de Máscaras no Alto Xingu. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.).
  • 11
    Os povos que se reconhecem parentes dos homenageados, na figura de seus chefes, serão aliados aos anfitriões, enquanto os outros serão adversários - levando-se em conta o faccionalismo e as disputas internas. Vanzolini destaca a relação de cognação ao estabelecer a proximidade e o aparentamento entre aqueles que “choram o morto”, mas este é um carpido construtivo, diferente daquele resultante da feitiçaria (2010:52VANZOLINI, Marina. 2010. A Flecha do Ciúme: O Parentesco e seu Avesso Segundo os Aweti do Alto Xingu. Tese de Doutorado, Museu Nacional.). Para Guerreiro (2012:154GUERREIRO, Antonio. 2012. Ancestrais e suas sombras: Uma Etnografia da Chefia Kalapalo e seu Ritual Mortuário. Tese de Doutorado, Universidade de Brasília.), os processos de fabricação da pessoa por meio de seu corpo são o vetor do aparentamento e da humanização, inclusive nessa relação estabelecida entre chefes e efígies. Mehinaku (2010MEHINAKU, Mutua. 2010. Tetsualü: pluralismo de línguas e pessoas no Alto Xingu. Dissertação de Mestrado, Museu Nacional.) descreve, através da ideia de tetsualü, a “mistura” entre os povos da região, que faz com que as pessoas se identifiquem com dois ou mais povos, aumentando o contingente das relações de parentesco entre os chefes e os homenageados.
  • 12
    Para melhor apreciação sobre as posições organizacionais (donos do morto, donos dos convidados, coordenadores, convidadores, aliados, convidados) e a relação entre parentesco e o sistema de convites, ver Guerreiro (2012:49, 419GUERREIRO, Antonio. 2012. Ancestrais e suas sombras: Uma Etnografia da Chefia Kalapalo e seu Ritual Mortuário. Tese de Doutorado, Universidade de Brasília.).
  • 13
    Algo que remeteria a Clastres sobre como a guerra indígena pressupõe uma aliança em outro plano e a instabilidade e a desconfiança recíprocas dessas relações: “aliança, que não é desejada como um fim, mas apenas como um meio: o meio de atingir a empresa guerreira com os menores riscos e os menores custos... Em resumo, a realidade da aliança possibilita uma troca completa que respeita não somente os bens e os serviços mas as relações matrimoniais” (1980:36-37CLASTRES, Pierre. 1980 [1977]. “Arqueologia da Violência: A Guerra nas Sociedades Primitivas”. In: P. Clastres; M. Gauchet; A. Adler & P. Lizot (orgs.), Guerra, Religião, Poder. Lisboa: Edições 70. pp. 11-47.). Como veremos, a aliança para a montagem dos times de luta é fundamental para a boa empreitada dos anfitriões, além de estar ancorada nas relações de parentesco com o homenageado falecido.
  • 14
    Fausto (2017:669FAUSTO, Carlos. 2017. “Chefe Jaguar, Chefe Árvore: Afinidade, Ancestralidade e Memória no Alto Xingu”. Mana - Estudos de Antropologia Social , v. 23, n. 3:653-676.) diz que a convocação é mais uma maneira de se atestar continuidade entre a chefia, ao se chamar o lutador campeão como “neto de temido-respeitado” (itsanginhü higü). Em Costa (2013:210COSTA, Carlos. 2013. Ikindene hekugu. Uma etnografia da luta e dos lutadores no Alto Xingu. Tese de Doutorado, Universidade Federal de São Carlos.) demonstrei que a convocação pode ser entendida por seu aspecto tático, negociada entre os chefes donos do ritual e seus aliados, sendo decidida em conversas prévias no pátio central, levando em consideração questões técnicas dos melhores lutadores e suas condições a cada evento.
  • 15
    O que poderia ser entendido em relação à “máquina de dispersão” (Clastres 1980:44-45CLASTRES, Pierre. 1980 [1977]. “Arqueologia da Violência: A Guerra nas Sociedades Primitivas”. In: P. Clastres; M. Gauchet; A. Adler & P. Lizot (orgs.), Guerra, Religião, Poder. Lisboa: Edições 70. pp. 11-47.) causada pela guerra, ou seja, após a efetivação da aliança para a disputa, rompe-se de imediato o laço criado momentaneamente, inclusive, findadas as possibilidades matrimoniais.
  • 16
    Vale notar que, mesmo na mitologia que envolve o tema da luta no primeiro egitsü, os empates são predominantes entre os campeões. Até que se narrem duas lutas em que se ensinem as maneiras de se obter a vitória. Na primeira, Anta é arremessada contra o chão por Gafanhoto, por isso tem sua bunda achatada. Na segunda, Kangasingi, um dos heróis da narrativa que luta como aliado do povo do peixe, vence Sapo, um forte lutador, ao tocar sua perna na parte de trás da coxa (Costa 2013:297COSTA, Carlos. 2013. Ikindene hekugu. Uma etnografia da luta e dos lutadores no Alto Xingu. Tese de Doutorado, Universidade Federal de São Carlos.).
  • 17
    Entre agosto e setembro de 2021, dois dos lutadores mais reconhecidos no âmbito regional, invictos em suas carreiras, completaram esse ciclo. Hekine Kalapalo e Aritana Yawalapiti faleceram e receberam o egitsü em homenagem para completar suas biografias de maiores campeões e chefes patrocinadores.
  • 18
    Usamos analogia apoiados no entendimento de Goldman sobre Wagner: “O procedimento analógico deve obedecer a três princípios fundamentais. Primeiro, só pode operar num campo de diferenças, o que significa que, evidentemente, só precisamos de analogias quando nos defrontamos com situações à primeira vista irredutíveis às que nos são habituais - ou seja, analogia não é sinônimo de semelhança. Em segundo lugar, nenhum dos dois termos colocados em relação pela analogia deve estar situado em um plano superior ao outro, como se o primeiro fosse capaz de revelar a verdade oculta do segundo - analogia não significa explicação. Por fim, os dois termos devem ser afetados pelo processo, de tal modo que o conceito ocidental de cultura, por exemplo, tem que ser ao menos ligeiramente subvertido quando serve de analogia para a vida nativa - o que significa que a analogia é da ordem da relação: a ideia de 'relação' é importante aqui pois é mais apropriada à conciliação de duas entidades ou pontos de vista equivalentes do que noções como 'análise' ou 'exame', com suas pretensões de objetividade absoluta" (Goldman 2011:29GOLDMAN, Márcio. 2011. “O Fim da Antropologia (resenha de R. Wagner. A invenção da Cultura). São Paulo: Cosac Naify; São Paulo: Novos estudos - CEBRAP, no 89:195-211.).
  • 19
    Ao analisar a relação entre o charivari e o eclipse, a partir da gritaria ocorrida nesses momentos, Lévi-Strauss (2004b:329LÉVI-STRAUSS, Claude. 2004b [1964]. O Cru e o Cozido. São Paulo: Cosac Naify .) estabelece que o ruído sanciona ou uma conjunção repreensível ou uma disjunção cheia de riscos. Isto, para destacar que tais situações representam perigo, trata de mostrar que existe uma ruptura na cadeia sintagmática que é seguida de uma intrusão de um elemento estranho. As gritarias ocorridas durante o roubo do fogo central, nas vitórias por arremesso e nos casamentos interétnicos ficariam, assim, analogicamente interligadas em seus significados.
  • 20
    Para debates sobre “Visões Regionais e Visões Locais”, ver Franchetto e Heckenberger (2001FRANCHETTO, Bruna & HECKENBERGER, Michael (orgs.). 2001. Os Povos do Alto Xingu: História e Cultura. Rio de Janeiro: EDUFRJ.).
  • 21
    Ou a política como continuação da guerra por outros meios, numa transformação da máxima de Clausewitz (Guerreiro 2012:27GUERREIRO, Antonio. 2012. Ancestrais e suas sombras: Uma Etnografia da Chefia Kalapalo e seu Ritual Mortuário. Tese de Doutorado, Universidade de Brasília.).
  • 22
    M354 é o mito estrutural e M60 sua forma enfraquecida. Ambos tratam dos mesmos paradigmas, mas invertem o conteúdo de modo que em cada eixo paradigmático ocorra uma diminuição, ocasionando posteriormente a transformação sintagmática: do mito ao romance. Enquanto os personagens de M354 são Homem - Mãe - Esposa, em M60 são Esposa - Pai - Marido. No final de M354: Mulher - agarra - marido - se livra - água, ao passo que em M60: Homem - larga - mulher - se vinga - fogo. M354 e M60 estão na ordem dos conjuntos, daí suas transformações (Lévi-Strauss 2006:105LÉVI-STRAUSS, Claude. 2006 [1968]. A Origem dos Modos à Mesa. São Paulo: Cosac Naify .).
  • 23
    Em Antropologia Estrutural Dois, tal ferramenta demonstrava o enfraquecimento a partir de uma oposição marcada no paradigma espacial. Da oposição inicial entre leste e oeste a intervalos menores: [oeste : leste] :: [mar : terra] :: [água : terra (firme)] :: [rio : margem] (Lévi-Strauss 2013:197LÉVI-STRAUSS, Claude. 2013 [1973]. “Como Morrem os Mitos”. Antropologia Estrutural Dois. São Paulo: Cosac Naify .).
  • 24
    Em outro texto, Lévi-Strauss trabalha os enfraquecimentos das oposições e as transformações dos mitos em suas relações com a história: “Assim, um mito que se transforma ao passar de uma tribo para outra acaba por se extenuar, sem por isso desaparecer. Duas vias ainda permanecem abertas: a da elaboração romanesca e a da reutilização com fins de legitimação histórica. Essa história, por sua vez, pode ser de dois tipos: retrospectiva, para fundamentar uma ordem tradicional num passado remoto, ou prospectiva, para fazer desse passado o germe de um porvir que começa a tomar forma” (Lévi-Strauss 2013:300LÉVI-STRAUSS, Claude. 2013 [1973]. “A gesta de Asdiwal”. Antropologia Estrutural Dois. São Paulo: Cosac Naify .), ou seja, um futuro que deixou a guerra para trás em nome das realizações rituais e da pacificação das relações.
  • 25
    Por exemplo, Guerreiro relata a ida de um dos grandes chefes kalapalo para se casar na aldeia Yawalapiti (2012). Ver também as relações entre Txicão e Wauja, inimigos históricos, que passam a trocar esposas e a se visitarem mutuamente nesse mesmo período (Menget 2001:103MENGET, Patrick. 2001. Em Nome dos Outros: Classificação das Relações Sociais entre os Txicão do Alto Xingu. Lisboa: Assírio & Alvin.).
  • 26
    Ou, etnograficamente, como num egitsü matipu em que os chefes kalapalo, yawalapiti e matipu consolidaram uma aliança que fez o time de luta anfitrião ser imbatível, com muitas vitórias e nenhuma derrota. Os chefes kalapalo tinham relações de consanguinidade com os homenageados, ao passo que o chefe yawalapiti era genro, casado com as filhas da homenageada principal. Retomando Clastres, mais uma vez, sobre como a aliança para a guerra não seria um fim, mas um meio para se obter a melhor empreitada possível, uma ponte entre relações matrimoniais.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    13 Maio 2020
  • Aceito
    03 Fev 2022
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