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PENNY, H. Glenn 2021. In Humboldt's Shadow: A Tragic History of German Ethnology. Princeton: Princeton University Press. 240 pp.

PENNY, H. Glenn. 2021. In Humboldt's Shadow: A Tragic History of German Ethnology . Princeton: Princeton University Press. 240 pp.

Em julho de 2021 foi inaugurado um novo museu em Berlim: o Humboldt Forum. O leitor que acompanha os debates atuais acerca das questões de repatriação de objetos e coleções coloniais certamente terá ouvido falar dele. A rigor, não se trata de um museu propriamente novo, pois foi fundado a partir da junção das coleções de dois museus já antigos: o Museu de Etnologia de Berlim e o Museu de Arte Asiática. A novidade, porém, se quer presente na reconstrução do antigo Palácio Real (da Prússia) para abrigar o museu e na maneira com que ele se apresenta ao público: um museu com um “passado significativo” que hoje se transformou num espaço multivocal de questionamentos e aprendizados.

In Humboldt's Shadow: A Tragic History of German Ethnology, o novo livro do historiador H. Glenn PennyPENNY, H. Glenn 2021. In Humboldt's Shadow: A Tragic History of German Ethnology. Princeton: Princeton University Press. 240 pp., faz parte da rica bibliografia que vem surgindo como parte das discussões públicas e acadêmicas sobre o museu e a repatriação de coleções coloniais. Trazendo reflexões pautadas em sua experiência como pesquisador da história da etnologia alemã e escrevendo para um público amplo, o autor oferece um panorama detalhado e complexo da história de criação do acervo do Humboldt Forum e outros museus de etnologia alemães. Faz isso, ademais, para defender os museus enquanto centros de pesquisa, educação, de encontros e transformações, e suas coleções como pontos de partida para diálogos difíceis mas necessários.

O livro tem diversas qualidades, entre elas a riqueza de dados empíricos e a franqueza da perspectiva adotada pelo autor. Penny se recusa a escrever mais uma denúncia superficial - e repetitiva - das origens violentas e coloniais das coleções alemãs. Sem procurar justificativas ou desculpas para a origem imperialista delas, o autor cria um percurso narrativo em que diversos episódios da história da etnologia alemã são expostos em seus contextos específicos, revelando as tensões internas ao campo, bem como as divergências profundas entre pesquisadores e governo alemão entre o fim do século XIX e as primeiras décadas do XX - tensões e divergências das quais os museus atuais são herdeiros materiais e simbólicos.

Dividido em cinco capítulos e um epílogo, o livro é organizado cronologicamente a partir da década de 1860 chegando até os dias atuais. Cada capítulo tem como fio condutor um objeto ou conjunto de objetos a partir dos quais a narrativa histórica é reconstruída e temas mais amplos são discutidos. Assim, a leitura começa com dois capítulos dedicados à história da criação do Museu de Etnologia de Berlim através de um manto de penas havaiano, esculturas maias e um totem haida. A narrativa tem o etnólogo Adolf Bastian (1826-1905), um dos fundadores e primeiro diretor deste museu, como personagem central. Sua formação e trajetória inicial, incluindo sua viagem de quatro anos de duração pelo sudeste asiático e, mais tarde, suas experiências transitando pela América Central e Andes, recebem detalhada descrição e mostram o duplo empenho de Bastian em, por um lado, estudar as culturas com a finalidade de escrever uma história geral da humanidade e, por outro, criar uma grande rede de contatos mundiais para colecionar os objetos típicos de cada uma delas. Com efeito, Bastian propunha o estudo comparativo das culturas para escrever uma teoria das características essenciais do pensamento humano. Não se tratava, porém, de comparar para estabelecer hierarquias, mas sim para demonstrar a unidade da humanidade em toda a sua diversidade.

Este primeiro capítulo por vezes adquire um tom saudosista, quase absolvendo Bastian de qualquer responsabilidade pelos abusos do colecionismo colonial alemão. Talvez este tom se deva a uma certa admiração que o autor do livro parece nutrir pelo “pai da etnologia alemã” - admiração esta bastante compreensível dadas a extensão e a profundidade do impacto de Bastian não só na criação da coleção etnográfica da capital alemã, mas também de todo o sistema de museus da Alemanha, bem como seu papel decisivo na formação de uma geração de antropólogos que, por sua vez, viriam a atuar como pesquisadores, curadores e professores pelo mundo afora.

É a estes dois aspectos do trabalho de Bastian que o segundo capítulo se dedica, passando a introduzir novos personagens nessa história: os alunos e assistentes de Bastian no museu de Berlim, como Karl von den Steinen e - por um curto período de tempo - Franz Boas, assim como outros colecionadores que forneceram material para o museu, como o norueguês Johan Adrian Jacobsen, enviado à costa pacífica da América do Norte por Bastian. À medida que o segundo capítulo se desenvolve, encontramos um Bastian cada vez mais exasperado diante dos limites impostos pela burocracia e certo desinteresse do governo alemão e o constante desafio de tornar o museu de etnologia de Berlim o primeiro da Alemanha em tamanho, escopo, e qualidade das coleções, transformando-se assim numa espécie de grande laboratório para o estudo das culturas. A mensagem central deste capítulo é que a coleção do Museu de Etnologia de Berlim foi criada no contexto de um “hipercolecionismo” acelerado conforme posto em prática por Bastian e, depois, seguido por seus discípulos e colegas. Esse movimento gerou uma atenção cada vez maior para a questão do método (como e o que colecionar), alinhando-se, portanto, com o desenvolvimento da antropologia como ciência investigativa.

O terceiro capítulo enfoca os bronzes do Benin, conjunto de mais de mil placas e esculturas em metal, além de joias, saqueadas do Palácio Real do Reino do Benin (Nigéria) pelo exército britânico durante uma expedição punitiva em 1897. Penny procura responder à pergunta: como é possível que centenas destes objetos tenham ido parar justamente na Alemanha, que não participara da expedição e nem tivera colônias ali? A resposta está ligada ao contínuo clima de “hipercolecionismo” na Alemanha das primeiras décadas do século XX e ao vigor do mercado de arte. Com efeito, o livro explora em vários momentos a dinâmica do mercado de arte “etnográfica” ou “arqueológica” global, explicitando as formas de agir de personagens indo desde comunidades locais nos Andes, arqueólogos, até galerias e negociadores e intermediários na Europa. O papel dessas pessoas na constituição de coleções museais como as conhecemos hoje revela-se, assim, fundamental. Não aparece neste livro, porém, nenhum tipo de julgamento de suas ações: o autor propõe uma leitura quase contemporizada dos atos violentos que fazem parte da história dos museus, como colecionar restos humanos ou saquear as colônias.

O quarto capítulo trata de materiais têxteis da Guatemala, cuja história serve para o autor examinar o papel importante dos imigrantes alemães mundo afora para a constituição de coleções, seja como colecionadores, ou intermediários. O museu de Berlim, entre outros, precisou contar com o apoio e a ação dessas comunidades para expandir seus acervos até pelo menos o início da Primeira Guerra Mundial. O foco, neste capítulo, é o conceito de “rede” de pessoas conectadas ao museu - conceito este que volta a aparecer quando o autor propõe, em sintonia com os discursos atuais, o quão importantes as “redes” de/e “comunidades locais” são para o desenvolvimento da nova missão dos museus.

Recusando-se a aderir à fórmula que iguala coleções coloniais com a obrigatória devolução dos objetos às suas comunidades de origem, Penny também não chega a sugerir que os museus etnográficos tenham direitos inquestionáveis sobre os objetos que atualmente expõem e guardam. Antes, propõe que a repatriação não é a única opção para o difícil dilema dos museus contemporâneos, e pauta-se no exemplo de uma máscara xamânica Yup’ik adquirida por Jacobsen, no Alasca, no final do século XIX. No quinto capítulo, lemos a história “interna” desta máscara - sua itinerância entre museus pré e pós-Segunda Guerra, seu destino durante a ocupação soviética - até sua redescoberta no início da década de 1990 quando da abertura de caixas que haviam voltado ao museu desde São Petersburgo. Tal redescoberta gerou um projeto colaborativo com representantes de comunidades Yup’ik que vieram ao museu para ver, estudar, reencontrar-se com a máscara sagrada, sem que tenham chegado a requisitar a devolução do objeto.

Esta narrativa, interessantíssima enquanto exemplo da circulação de coleções intermuseus no contexto das guerras europeias do século XX, serve para o autor do livro reafirmar as muitas possibilidades de colaboração e diálogo que as coleções etnográficas comportam. E chega, assim, ao epílogo do livro, onde faz uma crítica contundente às escolhas feitas durante a construção física, nomeação, planejamento e alocação de recursos para o Humboldt Forum. Alterando quase radicalmente o tom até agora moderado do livro, Penny declara que, ao invés de seguir o exemplo de sucesso da colaboração com os Yup’ik, as autoridades responsáveis pelo projeto do Forum preferiram gastar milhões de euros na reconstrução de um palácio do que em realmente investir em pesquisa, treinamento, manutenção e conservação das coleções, e - um aspecto fundamental - em pessoal. Lamenta, assim, a chance perdida de fazer uso realmente criativo e progressista do potencial da coleção. Volta, desta forma, à figura de Adolf Bastian e sua insistência no papel dos museus e da cultura material como caminhos para a compreensão da história humana - e, no contexto atual, também como ferramentas de diálogo intercultural.

“Polêmica” parece ser a melhor palavra para caracterizar o Humboldt Forum, mas também para qualificar a possível recepção do livro de Glenn Penny. Haverá críticos condenando sua mensagem não radical, sua rejeição a posições extremas. O comprometimento do autor com o método e os limites da sua profissão fala alto neste livro. Ainda assim, a leitura é fortemente recomendada, tanto pela erudição do autor e pelo cuidado com que destrincha a história das coleções etnográficas alemãs quanto pelas ponderações sobre o que um entendimento real e profundo desta história implica para as discussões políticas do tempo atual.

Referência

  • PENNY, H. Glenn 2021. In Humboldt's Shadow: A Tragic History of German Ethnology Princeton: Princeton University Press. 240 pp.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022
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