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Caminhos de Bisiw: uma abordagem tensiva da mobilidade ritual no Jurupari dos Hupd’äh1 1 Agradeço aos Hupd’äh de Taracuá Igarapé e, especificamente, a Ponciano Salustiano, Américo Socot, Manoel Socot e a José Socot pelo acolhimento e os ensinamentos. Agradeço a Geraldo Andrello e Pedro Lolli pelo incentivo e diálogos profundos. Meu agradecimento também às valiosas sugestões e correções apontadas pelos(as) pareceristas que avaliaram o trabalho.

Bisiw Paths: a tensive study of hupd’äh jurupari ritual mobility

Los caminos de bisiw: un enfoque tensivo de la movilidad ritual en el jurupari de los hupd’äh

Resumo

Na região do Alto Rio Negro-Uaupés, os rituais de Jurupari dos Hupd’äh reúnem os mais velhos e os rapazes ao longo dos caminhos florestais amazônicos. Sopros xamânicos são proferidos e flautas sagradas são tocadas durante expedições de caça e coleta alguns dias antes e outros depois da cerimônia comunitária. A relação entre uma abordagem perspectivista e tensiva permite, neste trabalho, evidenciar as dimensões do movimento xamânico e etnopoético do ritual do Hupd’äh Jurupari. Este estudo tem como objetivo mostrar como os campos relacionais de caminhos florestais situam as dimensões da mobilidade sociocósmica, da comunicação humano-não humano e da arte musical-verbal ao longo da paisagem ritual extensiva do Jurupari.

Palavras-chave:
Ritual; Mobilidade; Análise tensiva; Alto Rio Negro; Hupd’äh

Abstract

In the region of the Upper Rio Negro-Vaupés, Hupd’äh Jurupari rituals join elders and young boys along Amazonian forest paths. Shamanic spells are uttered and sacred flutes are played during hunting and gathering expeditions a few days before and after the communal ceremony. The relation between perspectivist anthropology and tensive semiotics enables this study to highlight the shamanic and ethnopoetic motile dimensions of the Hupd’äh Jurupari ritual movement. It shows how relational forest path fields situate the dimensions of sociocosmic mobility, human-non human communication and musical-verbal art along the Jurupari extensive ritual landscape.

Keywords:
Ritual; Mobility; Tensive analysis; Alto Rio Negro

Resumen

En la región del Alto Río Negro-Vaupés, los rituales Jurupari de los Hupd’äh reúnen a los ancianos y a los niños a lo largo de los caminos de la selva amazónica. Se pronuncian soples chamánicos y se tocan flautas sagradas durante las expediciones de caza y recolección unos días antes y después de la ceremonia comunal. La relación entre un enfoque perspectivista y uno tensivo permite, en este trabajo, resaltar las dimensiones del movimiento chamánico y etnopoético del ritual Hupd’äh Jurupari. Este estudio tiene como objetivo mostrar cómo los campos relacionales de los caminos del bosque sitúan las dimensiones de la movilidad sociocósmica, la comunicación humano- no humano y el arte musical-verbal a lo largo del extensivo paisaje ritual del Jurupari.

Palabras clave:
Ritual; Movilidad; análisis tensivo; Alto Río Negro; Hupd’ah

Introdução

O presente trabalho tem como foco o estudo da mobilidade sociocósmica associada ao ritual de iniciação masculina conhecido como Jurupari. Denominado Döhö d’äh, “Pessoas-sopro”, na língua hup, a prática envolve a exibição de flautas e trompetes a neófitos, a coleta de frutos para oferecimento nos Pä’, “Derramas” ou “Dabucuris”, e a proibição da visão dos instrumentos a mulheres e crianças. Perseguidos pelos missionários salesianos nos anos 1970, os praticantes Hupd’äh do Jurupari mantiveram o ritual oculto e inacessível a não indígenas até os anos 1990. Assim, Reid (1979REID, Howard. 1979. Some aspects of movement, growth and change among the Hupdu Maku indians of Brazil. Ph.D. Dissertation, Cambridge University.) fez apenas alguns apontamentos sobre o ritual que começaria a ser mais bem descrito a partir de trabalhos recentes (Ramos 2018RAMOS, Danilo Paiva. 2018. Círculos de coca e fumaça: encontros noturnos e caminhos vividos pelos Hupd’äh. São Paulo: Hedra.; Lolli 2010LOLLI, Pedro. 2010. As redes de trocas rituais dos Yuhupdeh no igarapé Castanha, através dos benzimentos (mihdɨɨd) e das flautas jurupari (Ti’). Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo. ). Tomando como base a participação em eventos rituais e em caminhadas florestais para lugares sagrados, busca-se entender em que medida os percursos realizados pelos neófitos com os aerofones durante a coleta de frutos e as viagens relacionam-se à performance ritual que ocorre na aldeia.

Os Hupd’äh habitam a região do Alto Rio Negro-Uaupés na fronteira entre Brasil e Colômbia. Atualmente, há cerca de 35 comunidades distribuídas na região interfluvial dos rios Papuri e Tiquié. O último recenciamento realizado no lado brasileiro mostrou que a população atual é de 2.634 indivíduos (FOIRN & ISA 2017FEDERAÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS DO RIO NEGRO (FOIRN) & INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA). 2017. “Levantamento Socioambiental com as comunidades das TIs do médio e alto Rio Negro”. São Gabriel da Cachoeira/ São Paulo: Instituto Socioambiental.). A língua hup pertence à família linguística Nadûhup (Epps & Bolaños 2017EPPS, Patience. & BOLANOS, Katherine. 2017. “Reconsidering the ‘Makú’ family of northwest Amazonia”. International Journal of American Linguistics, v. 83, n. 3:467-507.). A estrutura social hup tem nos clãs agnáticos seus segmentos básicos de constituição e de diferenciação. O casamento preferencial dá-se entre os primos cruzados bilaterais numa mesma geração e procura respeitar certa hierarquia entre os clãs. O sistema de matrimônio estabelece-se a partir da endogamia linguística e a exogamia clânica. A coabitação em um mesmo território ou espaço de grupos familiares gera os grupos locais cognáticos, que são nomeados e diferenciados entre si (Reid 1979REID, Howard. 1979. Some aspects of movement, growth and change among the Hupdu Maku indians of Brazil. Ph.D. Dissertation, Cambridge University.; Athias 1995ATHIAS, Renato. 1995. Hupdë-Maku et Tukano: relations inégales entre deux sociétés du Uaupés, amazonien (Brésil). Tese de Doutorado, Université de Paris X. ). Trabalhos acadêmicos recentes vêm mostrando a importância da vida ritual, da prática xamânica, da organização social e dos padrões de mobilidade (Ramos 2018RAMOS, Danilo Paiva. 2018. Círculos de coca e fumaça: encontros noturnos e caminhos vividos pelos Hupd’äh. São Paulo: Hedra.; Marques 2009MARQUES, Bruno. 2009. Figuras do Movimento: os Hupda na literatura etnológica do Alto Rio Negro. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro. , 2015MARQUES, Bruno. 2015. Os Hupd’äh e seus mundos possíveis: transformações espaço-temporais do Alto Rio Negro. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro.; Ribeiro 2011RIBEIRO, Lirian. 2011. Territorialidade e mobilidade. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Bahia. ; Moreira 2017MOREIRA, Rafael. 2017. Signos de pobreza: uma etnografia dos Hupd’äh e dos benefícios sociais no Alto Rio Negro. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina. ).

Figura 1
Grupos locais, comunidades e alguns caminhos dos Hupd’äh

Pensando com Lévi-Strauss, o estudo do contínuo Jurupari-caminhos exige tentar transcender a oposição entre o sensível e o inteligível, dando atenção ao modo como ambos “se exprimem um pelo outro”, à geração de sentidos através das mínimas nuanças e à diversidade da experiência sensível (2004:33LÉVI-STRAUSS, Claude. [1964] 2004. O cru e o cozido. São Paulo: Cosac & Naify. ). Na leitura de Viveiros de Castro, a conceituação de Lévi-Strauss sobre o ritual permite acompanhar “o cascatear de oposições de escopo decrescente” (2008:126VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2008. “Xamanismo transversal”. In. R. Caixeta de Queiroz & Renarde Nobre (orgs.), Lévi-Strauss: leituras brasileiras. Belo Horizonte, Ed. UFMG. pp. 87-136.). No caso do contínuo Jurupari-caminhos, a noção de diferença transversal, trabalhada por Viveiros de Castro, ajuda a perceber como se instituem modos de comunicação entre heterogêneos, entre multiplicidades intensivas, e a descrever os caminhos vividos como linhas de fuga que acionam relações intensivas, feixes de afecções e forças que transformam os termos ao fazerem passar algo entre eles (2008:98VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2008. “Xamanismo transversal”. In. R. Caixeta de Queiroz & Renarde Nobre (orgs.), Lévi-Strauss: leituras brasileiras. Belo Horizonte, Ed. UFMG. pp. 87-136.). Assim, a abordagem perspectivista leva a ver operações xamânicas inversas e regressas. O cromatismo das viagens revela metamorfoses e passagens entre mundos possíveis, deslocamentos ao longo de um “mesmo fundo humano de todos os seres” (2008:127VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2008. “Xamanismo transversal”. In. R. Caixeta de Queiroz & Renarde Nobre (orgs.), Lévi-Strauss: leituras brasileiras. Belo Horizonte, Ed. UFMG. pp. 87-136.).

Tal abordagem é posta em diálogo com os estudos tensivos em Semiótica que, a partir dos trabalhos de Zilberberg e Fontanille (2001ZILBERBERG, Claude. & FONTANILLE, Jacques. 2001. Tensão e significação. São Paulo: Humanitas. ), deslocam progressivamente a ênfase de A. Greimas na descontinuidade e na estabilidade de estruturas discursivas (Fiorin 2017:153FIORIN, José L.. 2017. “Semiótica tensiva”. In: J. FIORIN (org.), Novos caminhos da Linguística. São Paulo: Contexto. pp. 151-169. ) e propõe uma “semântica das tensões e das gradações” (Fontanille 2007:25FONTANILLE, Jacques. 2007. Semiótica do discurso. São Paulo: Contexto . ) que busca entender as continuidades e as descontinuidades entre a intensidade (ordem do sensível) e a extensão (ordem do inteligível). Nesse sentido, através do continuo Jurupari-caminhos parecem delinear-se múltiplos campos de presença, centros dêiticos que correlacionam gradientes de presença e ausência de humanos e não humanos (Barros 2019BARROS, Mariana.L. 2019. “Pequena semiótica da memória”. Estudos semióticos, v. 15:122-135. :125).

Propõe-se, assim, uma abordagem antropológica das tensões e gradações do ritual de Döhö d’äh, dando ênfase ao modo como os caminhantes-sopradores, os aerofones, os Seres-Outrem como Bisiw, a partir de sua práxis e percepções sensíveis, geram sentidos não só por oposições discretas, mas também por diferenças graduais e tensivas, correlacionando mundos possíveis e perspectivas Outras. Questiona-se como paisagens de sentido são enredadas pelos caminhantes-sopradores em meio a seus movimentos com as flautas e a seus deslocamentos florestais, acompanhando os movimentos de intensidade e extensão rituais.

Ritual e mobilidade

A primeira descrição do Jurupari para a região do Alto Rio Negro-Uaupés foi feita por Wallace (1853:241-242WALLACE, Alfred Russel. 1853. A narrative of travels on the Amazon and Rio Negro, with an account of the native tribes. London: Ed. Revee.) a partir de sua viagem na região em 1850 (S.Hugh-Jones 1979HUGH-JONES, Stephen. 1979. The Palm and the Pleiades. Cambridge: Cambridge University Press .). Pouco depois, E. Stradelli (1890STRADELLI, Ermanno. 1890. “La leggenda del Jurupari”. Bolletino da Società Geographica Italiana. ) publicou trabalho sobre a “lenda do Jurupari” e contribuiu para o interesse etnográfico sobre o tema. Como mostram Hill e Chaumeil (2011HILL, Jonathan. & CHAUMEIL, Jean Pierre. 2011. Burst of Breath: Indigenous Ritual Wind Instruments in Lowland South America. Lincon & London: University of Nebraska Press.), o ritual foi descrito por Goldman (1963) como um culto aos ancestrais, como a iniciação no culto secreto masculino por S.Hugh-Jones (1979)HUGH-JONES, Stephen. 1979. The Palm and the Pleiades. Cambridge: Cambridge University Press ., como a “casa masculina” por Schaden (1959SCHADEN, Egon. 1959. A mitologia heroica de tribos indígenas do Brasil. Rio de Janeiro: Ministério de Educação e Cultura ), e como a promulgação da exogamia por Reichel-Dolmatoff (1989)REICHEL-DOLMATOFF, Gerardo. 1989. “Biological and social aspects of the Yuruparí of the Colombian Vaupés territory”. Journal of Latin American Lore, v. 15, n. 1:95-135. . A associação do Jurupari às cerimônias de troca de alimentos, conhecida como Dabucuri, foi trabalhada de modos diferentes pelos estudos regionais (S. Hugh-Jones 1979HUGH-JONES, Stephen. 1979. The Palm and the Pleiades. Cambridge: Cambridge University Press .; C. Hugh-Jones 1979HUGH-JONES, Christine. 1979. From the Milk-River. Cambridge: Cambridge University Press.; Andrello 2006ANDRELLO, Geraldo. 2006. Cidade do índio. São Paulo: Ed. Unesp/ISA; Rio de Janeiro: Nuti.; Hill 1993HILL, Jonathan. 1993. Keepers of the sacred chants. Tucson: University of Arizona Press.; Wright 1993WRIGHT, Robin. 1993. “Pursuing the spirit: Semantic construction in Hohodene Kalidzamai chants for initiation”. Amerindia, n. 18. ; Hill & Chaumeil 2011HILL, Jonathan. & CHAUMEIL, Jean Pierre. 2011. Burst of Breath: Indigenous Ritual Wind Instruments in Lowland South America. Lincon & London: University of Nebraska Press.). Para os Hupd’äh, a descrição de Reid (1979REID, Howard. 1979. Some aspects of movement, growth and change among the Hupdu Maku indians of Brazil. Ph.D. Dissertation, Cambridge University.) apontou a importância do ritual do Jurupari e de caminhadas florestais com mentores como eventos associados à iniciação masculina dos jovens (Reid 1979:155REID, Howard. 1979. Some aspects of movement, growth and change among the Hupdu Maku indians of Brazil. Ph.D. Dissertation, Cambridge University.). Assim, mobilidade e ação ritual parecem estar profundamente relacionados ao Jurupari Hupd’äh.

A vasta distribuição das práticas rituais de Jurupari por uma enorme área geográfica da América do Sul indica a conexão com antigas rotas migratórias e de comércio entre povos étnica e linguisticamente diferentes (Hill & Chaumeil 2011HILL, Jonathan. & CHAUMEIL, Jean Pierre. 2011. Burst of Breath: Indigenous Ritual Wind Instruments in Lowland South America. Lincon & London: University of Nebraska Press.). Tal associação veio sendo estudada mais profundamente para o caso dos povos Arawak, amplamente dispersos pelo continente (Piedade 2004PIEDADE, Acácio. 2004. O canto do Kawoká: música, cosmologia, e filosofia entre os Wauja do Alto Xingu. Tese de Doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina. ; Hill 1993HILL, Jonathan. 1993. Keepers of the sacred chants. Tucson: University of Arizona Press.; Vidal 2000VIDAL, Silvia. 2000. “Kuwé Duwákalumi: The Arawak sacred routes of migration, trade, and resistance”. Ethnohistory, v. 47, n. 3/4:635-667. ). De modo abrangente, a dimensão xamânica do Jurupari aproxima sopro, respiração e som para gerar paisagens sonoras importantes para a fertilidade, o equilíbrio social, a cura, a proteção e a reciprocidade. Em alguns casos (Waiwai, Hupd’äh e Yuhupdëh), o sopro das flautas amplifica ou aumenta a potência da respiração xamânica por meio de uma sonoridade alta e capaz de reverberar por longas distâncias (Hill & Chaumeil 2011:20HILL, Jonathan. & CHAUMEIL, Jean Pierre. 2011. Burst of Breath: Indigenous Ritual Wind Instruments in Lowland South America. Lincon & London: University of Nebraska Press.; Lolli, no preloLOLLI, Pedro. O trompete do guariba: do modo de existência artefactual da pessoa no Alto Rio Negro (no prelo).).

Apesar da proibição e da perseguição exercidas pelos missionários salesianos às práticas rituais do Jurupari, os Hupd’äh e os Yuhupdëh continuaram a realizar a iniciação masculina ao longo de todo o século XX, tomando sempre o cuidado de ocultá-la dos não indígenas (Lolli 2010LOLLI, Pedro. 2010. As redes de trocas rituais dos Yuhupdeh no igarapé Castanha, através dos benzimentos (mihdɨɨd) e das flautas jurupari (Ti’). Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo. ). Lolli (2010)LOLLI, Pedro. 2010. As redes de trocas rituais dos Yuhupdeh no igarapé Castanha, através dos benzimentos (mihdɨɨd) e das flautas jurupari (Ti’). Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo. afirma que essa manutenção da realização secreta do Jurupari fez com que Hupd’äh e Yuhupdëh assumissem prestígio hierárquico na rede de sociabilidade ritual nos anos 1980 e 1990 por ocasião da implementação de projetos de revalorização cultural (Lolli 2010:144LOLLI, Pedro. 2010. As redes de trocas rituais dos Yuhupdeh no igarapé Castanha, através dos benzimentos (mihdɨɨd) e das flautas jurupari (Ti’). Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo. ). Os rituais de Jurupari e Dabucuri atualizam relações entre hierarquia e igualdade, não havendo uma distinção tão marcada entre ambos. Os Jurupari são fundamentais para o fortalecimento de relações de descendência entre agnatos, enquanto os Dabucuris são associados à reciprocidade, à promoção de igualitarismo entre grupos afins. O contínuo Jurupari-Dabucuri Yuhupdëh consolida alianças entre grupos afins para a contraefetuação de relações assimétricas com grupos de outras etnias, como Yeba Masa, Tuyuka e Desana (Lolli 2010:148LOLLI, Pedro. 2010. As redes de trocas rituais dos Yuhupdeh no igarapé Castanha, através dos benzimentos (mihdɨɨd) e das flautas jurupari (Ti’). Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo. ).

É por ocasião dos Pä’, “Derramas” ou “Dabucuris”, cerimônias de troca entre afins (anfitriões e convidados), que é realizada a iniciação masculina através do ritual dos Döhö d’äh, “Pessoas-sopro” ou Jurupari (Reid 1979REID, Howard. 1979. Some aspects of movement, growth and change among the Hupdu Maku indians of Brazil. Ph.D. Dissertation, Cambridge University.). Por meio de sopros xamânicos2 2 Opto por denominar “sopro” a ação xamânica que envolve a enunciação murmurada de fórmulas verbais para a cura e/ou proteção, direcionadas a objetos e/ou substâncias a serem utilizados ou consumidos pela pessoa (ou coletivo) a ser curada ou protegida. A palavra bi’id ora é traduzida por meus interlocutores Hupd’äh como “benzimento”, próximo ao uso corrente por falantes do português regional, ora como sopro. Nesse segundo caso, o emprego da palavra “sopro” em português pode referir-se à agência para a cura, o que é mais raro, ou como sinônimo da palavra “estrago”, empregada para ações voltadas à destruição da pessoa ou coletividade. Na língua Hup, a palavra bi’id refere-se a um tipo de sopro específico, distinto de pu᷈hu᷈́t (assoprar) e mais próximo de ha᷈g-sák (respirar) e de ha᷈́wäg (sopro vital). Entendo que o sentido da palavra “benzimento” aproxima demasiadamente essa agência xamânica hup de práticas religiosas católicas, fazendo-nos perder de vista a diferença profunda que as práticas xamânicas Hupd’äh têm em relação a essas práticas religiosas colonizadoras. Creio que em português o uso da palavra “sopro” para a tradução da palavra hup bi’id tem a vantagem, assim, de distanciar-nos tanto do campo semântico religioso (benzimentos) quanto do mágico (encantamento). realizados por xamãs no início e no fim do ritual, e pela agência das flautas, as potências do “sopro vital”, hãwäg, “corpo”, sap, e a “sombra”, b’atɨb’, são trabalhadas coletivamente (1979:279REID, Howard. 1979. Some aspects of movement, growth and change among the Hupdu Maku indians of Brazil. Ph.D. Dissertation, Cambridge University.). As frutas coletadas pelos neófitos advêm de uma parte alta da floresta e associam-se à essência fria e à calma. Já o caxiri acentua o calor, a força e a agressividade da “sombra”. O corpo dos aerofones é fabricado a partir de distintos troncos e cascas de árvores. Para a fabricação, ganha destaque simbólico a paxiúba, palmeira cuja origem se refere ao corpo queimado do herói Bisiw. As partes dos instrumentos são nomeadas como boca, osso, pele, o que mostra o entendimento dos aerofones como corpos e reforça também a homologia necessária entre os corpos dos neófitos que devem se tornar duros e fortes como os das flautas e dos trompetes (1979:280REID, Howard. 1979. Some aspects of movement, growth and change among the Hupdu Maku indians of Brazil. Ph.D. Dissertation, Cambridge University.). Os aerofones são atravessados pelos “sopro vital” e “sombra” das “pessoas do nascimento”, ancestrais cuja potência faz com que os instrumentos sejam vistos como perigosos e também por seu calor e agressividade.

Doew Pudn Wvaidu, “aqueles dos corpos moles/ por formar”, é um dos modos de se referir aos rapazes e que ressalta a dimensão de fabricação e o endurecimento corporal proporcionado pelos rituais de Jurupari. Ao descrever a fase de amadurecimento dos rapazes, Reid (1979REID, Howard. 1979. Some aspects of movement, growth and change among the Hupdu Maku indians of Brazil. Ph.D. Dissertation, Cambridge University.) destaca a importância das caminhadas em grupos por longas distâncias que permitem a observação de tipos de vegetação, topografia, igarapés, grandes árvores e áreas de caça-coleta e pesca. Devem também passar longo tempo explorando a região, em atividades de caça e pesca, do início ao fim do dia, pois tais atividades “endurecem o corpo”. Nesse período da vida são encorajados a tocar os instrumentos Jurupari, a ouvir narrativas míticas e a aprender cantos e sopros. Nos anos 1970, as viagens para regiões longínquas permitiam busca de esposas e alianças com grupos locais (1979 149-154REID, Howard. 1979. Some aspects of movement, growth and change among the Hupdu Maku indians of Brazil. Ph.D. Dissertation, Cambridge University.). É por meio dessas caminhadas, guiadas por mentores ou em grupo com outros rapazes, que os mais jovens conhecem os locais dos antigos aldeamentos, os índices da passagem e da existência de demiúrgos e ancestrais, montanhas e cabeceiras, sempre tidas como paisagens mito-históricas importantes (Ramos & Epps 2018RAMOS, Danilo Paiva & EPPS, Patience. 2018. “Caminhos de sopro: discurso xamânico e percursos florestais dos Hupd’äh”. Mana, v. 24, n. 1:161-198.).

Desse modo, as caminhadas com as flautas durante o Jurupari e os percursos florestais parecem ser fundamentais para a transformação dos rapazes, seu endurecimento e para o aprendizado perambulatório que permite concentrar a atenção em processos ontogenéticos, paisagens mito-históricas, interagências predatórias (caça, pesca e interação com não humanos) e relações de afinidade. A descrição da mobilidade das flautas e as viagens à região das serras ajudarão a entender melhor essa conexão próxima entre a agência ritual e o atravessamento de mundos possibilitado pelas caminhadas.

Círculos de pessoas-sopro

Em 06/09/2015, os rapazes penetraram a mata logo cedo. Alguns levavam mochilas, outros jamaxins3 3 Tipo de cesto para cargas a serem carregadas nas costas durante caminhadas. . As folhas de bananeira protegiam as cabeças da chuva. Estavam atentos às orientações do sr. Manoel Socot, dono a coordenar a empreitada. Paramos logo após a travessia do Igarapé-Taracuá para aguardar. Depois de alguns instantes, os wõwöy começaram a ser ouvidos. Dois rapazes surgiram soprando os instrumentos, enquanto outros traziam mais flautas e trompetes. Os sons graves encheram os ares e misturaram-se aos sorrisos e às risadas. Um círculo formou-se e mais dois sopradores tomaram instrumentos. A música espalhou-se pelo entorno e envolveu-nos quando retomamos a caminhada. Os sopradores-caminhantes, um atrás do outro, mantinham a sequência dos pares de aerofones. Seguimos pelo caminho das roças e logo passamos pelo hup höd, “cemitério”. Os sopradores tocaram até cruzarmos a fronteira da última roça. Um novo círculo se fez. Os instrumentos soavam mais fortes. Os sons ecoavam mais longe. Como nós, a música das flautas rumava para a Bisiw b’ot, a “roça de Bisiw”. A fumaça dos cigarros tateou o ar da floresta tão logo a música cessou. Eram o “sopro dos caminhos” e o “sopro da mata” que saíam dos cigarros para nos cercar e proteger das “pessoas-árvore”, das “pessoas-sombra” e do terrível Bisiw, o predador dono dos animais.

Nosso grupo tinha 20 pessoas entre senhores, adultos e jovens. Os neófitos tinham entre 9 e 11 anos. Era a primeira vez que estavam vendo os instrumentos poderosos. As palmeiras de buriti tomavam conta de uma vasta área de floresta. A plantação era resultado do trabalho de um não humano, Bisiw. A chuva caía cada vez mais forte, mas não impediu o grupo de continuar a empreitada de coleta dos buritis. Aos poucos, fomos enchendo mochilas e cestos aturá com os carregamentos de buriti.

Terminado o trabalho, reunimos os frutos na clareira onde os aerofones nos aguardavam quietos, ocultos pela mata. Erguidos e abaixados, os pares de mot e d’öp recebiam agora a companhia do par Hup wed ãy, “mulher canibal”, na roda. Os sopros direcionavam-se agora para os carregamentos de buritis e para os corpos dos apanhadores. Círculo desfeito, era hora de seguirmos os instrumentos na volta para a aldeia. Os Jurupari foram tocados em círculo novamente já à beira do Igarapé-Taracuá, onde foram deixados os carregamentos. O grupo de apanhadores desfez-se para os banhos e a preparação da entrada das flautas na aldeia. Tendo ouvido os sons aterradores dos jurupari, mulheres e crianças já se preparavam para a reclusão necessária.

Os instrumentos ressurgiram na boca da noite. Empunhados por sopradores-caminhantes, soaram da mata até o porto. Os músicos formaram um círculo na água. Tocavam com os corpos voltados para os rapazes que começavam a entrar na água para o b’atɨb’ s’om, “banho do homem-sombra”. Demonstrando sua força, erguiam os braços, socavam o ar e, com toda a potência, esmurravam a superfície do rio. Jogavam água para trás para molhar os companheiros.

“Fazem isso para ficar fortes e com o corpo duro. Os Jurupari precisam ser resfriados para Pẽy wäd nɨh, Wähäd wäd nɨh, “não ficarem como o Trovão ou como os ancestrais wäd”, contou Genésio Monteiro. “As flautas não podem jogar água para trás, para não dar doenças”, continuou. Fazendo graça, Valter abaixou sua bermuda e tocou sua flauta D’öp balançando o pênis e exibindo as nádegas. Todos riam dizendo que ele estava brincando com o perigo. Davam tapas em sua bunda. Ao final, os flautistas desfizeram o círculo e rumaram para a palhoça comunitária, a äg moy, “casa de beber”.

Um após o outro, Valdemar Brasil e Isaias Socot seguiram primeiro com o par de Wõwöy. Logo após vieram as flautas Mot (tipo de cunuri), esposas de Wõwöy, tocadas por Custódio Socot e Cláudio Barbosa. Mais atrás, vinham os pares këro, “cabeça”, e yam, “cantante”, da Hup wed ãy, tocadas por Higino Brasil e Pedro Paulo. As flautas D’öp, “Japú”, eram tocadas por José Oliveira e Isaias Socot. O par D’öp tein, “esposa de D’öp”, tocado por Manoel Socot e Patrício Monteiro. Assim, cada par de instrumentos é formado por uma flauta këro, “cabeça”, um pouco menor e de som mais agudo, e uma flauta yam, “cantante”, maior e mais grave em contraste com a sua këro. Os pares de instrumentos podem manter relações de parentesco entre si, não apenas matrimoniais, como nesse evento aqui analisado, mas também de filiação e de germanidade (ver Ramos 2018RAMOS, Danilo Paiva. 2018. Círculos de coca e fumaça: encontros noturnos e caminhos vividos pelos Hupd’äh. São Paulo: Hedra.). As duplas de sopradores buscam combinar membros de clãs afins, podendo ser também formadas por membros de clãs agnatos (Ex. 5-6; 9-10). No nível da relação entre os pares, quando estes são marido (WH) e esposa (HW), o soprador da flauta këro (marido - WH) de um par é sempre de clã afim ao soprador da këro esposa (HW).

Quadro 1
Sopradores e aerofones durante a dança

Quadro 2
Grupos exogâmicos divididos entre bab d’äh, “irmãos” (agnatos), e yoh, “cunhados” (afins), segundo a perspectiva do clã: Sokw’ät-Noh-K’öd-Tẽh

A entrada se dá pela Sakan Moyo, “Porta do Sol Nascente”, a leste, e a saída, pela Dëh K’et Yoh Moyo, a “Porta da Cabeceira”, a oeste. Como me contou Samuel Monteiro em 2012, a dança do Jurupari faz com que o Lago de Leite, paisagem da criação, surja na palhoça (Ramos 2018RAMOS, Danilo Paiva. 2018. Círculos de coca e fumaça: encontros noturnos e caminhos vividos pelos Hupd’äh. São Paulo: Hedra.). É em torno dele que se movimentam instrumentos e dançarinos. Os esteios a sustentar o telhado da palhoça passam a ser montanhas, Paç Moy, “Casas de Pedra”, a suportar o céu e a servir de morada para os ancestrais. O igarapé e os caminhos tornam-se o Rio de Leite de onde emergem instrumentos e ancestrais para dançar na grande “Serra do Pedaço do Filho” e celebrar o Dabucuri com os animais. Percursos florestais e hídrico-lácteis a ligar montanhas-cabeceiras vão compondo uma vasta paisagem mito-histórica a expandir suas fronteiras.

Os cinco pares de sopradores seguiram lado a lado em círculo, erguendo e abaixando as flautas, soprando forte os bocais. Outros rapazes foram chegando com os carregamentos de buriti para despejá-los no centro da palhoça. Quando cessava a música, os instrumentos eram deixados no chão. O yo’om ĩh, “dono” do ritual, José, oferecia cuias de caxiri soprado, extremamente forte, para todos. As lanternas deviam ser apagadas e nenhuma luz podia ser direcionada às flautas. Após as cuias e as conversas, os wõwöy voltavam a ser tocados, e chamavam os demais para a retomada da dança. Houve alternância nas duplas que tocavam os pares de instrumentos e também participação dos neófitos que tocaram as flautas pela primeira vez. As danças, o caxiri e as conversas seguiram até o amanhecer quando os dançarinos começaram a deixar a palhoça, levando as flautas até a beira do igarapé. Lá, os aerofones foram tocados em círculo, para depois serem escondidos na mata próxima. Todos deixamos a palhoça para um sono breve e para os preparativos do Dabucuri intracomunitário.

O novo dia era 7 de setembro, dia da Independência do Brasil. Já de banho tomado, todos foram entrando na palhoça para a quinhampira, missa, hasteamento da bandeira e hino nacional. Após a celebração patriótica, mulheres e moças foram entrando na palhoça com seus cestos aturá vazios para retirar os buritis. Recebiam as oferendas dos homens. Mais tarde, algumas mulheres trouxeram panelas de caxiri, enquanto outras entraram rindo com bacias de nuh, “massa de tapioca”. Circulavam com as bacias e, divertindo-se, jogavam um pouco da massa na cabeça dos homens. As bacias foram colocadas no centro e formaram-se duas fileiras, uma com homens participantes do Jurupari, e outra com mulheres. À frente, Quitéria Brasil fez o agradecimento ritual animadamente, com gestos marcados e voz melódica. Na outra fila, Manoel Barbosa proferiu o discurso masculino de agradecimento, mais tímido e rindo da eloquência de Quitéria. Neófitos e jovens recolheram a massa de tapioca e levaram para suas casas. Todos agora podiam beber e dançar ao som dos cariçus, yamidos, “cantos” e forrós.

Na manhã seguinte, alguns ainda bebiam cuias de caxiri quando deixamos a aldeia rumo às serras. Nosso grupo de caminhada era formado principalmente por senhores e jovens que haviam participado da coleta de buritis e do ritual do Jurupari. Além de serem incursões de caça e pesca, a viagem para as cabeceiras dos igarapés inseria os neófitos em percursos que levavam a antigos aldeamentos, locais de passagem de demiurgos, moradas de animais e não humanos. Realizaríamos também o etnomapeamento para o desenvolvimento do Plano de Gestão Territorial e Ambiental do Território Hupd’äh (PGTA-Hup)4 4 Os Planos de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PGTA) da Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial de Terras Indígenas (PNGATI) (Funai 2013). . As ameaças do garimpo e da construção de estradas exigiam ações de proteção territorial para que os Hupd’äh fossem vistos como interlocutores do Estado, exército e movimento indígena.

Seguíamos num grupo de oito pessoas. Todos levavam seus arcos e flechas e terçados para a abertura do caminho. Nossa primeira parada foi na clareira da aldeia antiga de Joanico Brasil. José Socot contou que essa era a região do Yo dëh s’a’, “Igarapé Jandiá”, onde os antigos chamaram os jandiás para habitar aquelas águas e se darem como alimento aos Hupd’äh. Perto dali estava o Bisiw hoy, “poço de pesca de Bisiw”, e o local onde certa vez se ouviu um terrível estrondo. Quando os caçadores foram ver, Bisiw tinha derrubado muitas árvores, formando uma clareira. Estávamos próximos às terras desse perigoso Ser. Os rapazes mantinham-se atentos a todas as histórias contadas por José e a todos os sinais.

Nos dias que seguiram, os mentores mostraram os diferentes tipos de árvores aos rapazes, caminhos e varadores que ligavam aldeias e regiões, pegadas de tatus, pacas e jacarés. Escalamos a D’ok Paç, “Serra do Acarápuru” e a Nik Hũ’ Paç, “Serra-Torta”. Visitamos as cavernas e bebemos as águas puras da serra. Antigamente, contou José, antes dos rituais de Jurupari, os antigos viajavam para as serras, ingeriam essa água das nascentes, vomitavam e dormiam nas cavernas. Em seus sonhos, conversavam com antepassados, aprendiam e fortaleciam seus bi’id, “sopros”, para proteger as famílias durante o ritual do Jurupari e as trocas cerimoniais de Dabucuri. Contou também do tempo em que sua família habitava a região das serras, próximo da aldeia antiga de B’ot pem dëh moy höd.

Nos anos que se seguiram (2016, 2019), realizamos novas viagens para etnomapeamento e elaboração de planos de manejo ambiental, agora para a região da Serra Grande. Os neófitos que participaram do Jurupari em 2015 continuaram integrando o grupo de viajantes, pois tais percursos, assim como o sopro das flautas, são vistos como importantes para o fortalecimento-endurecimento corporal, para o aprendizado de caminhos e rotas, e para os banhos rituais nos lagos do topo da Paç Pög, a “Serra Grande”. Sempre protegidos pelos sopros xamânicos, os rapazes seguiam seus mentores para a visitação da Serra Grande e banhos nos lagos do topo da montanha. Ao lado da Serra Grande, uma montanha, Paç Te᷈h, “Serra Pequena”, e o morro Tõg te᷈g complementam o complexo que constitui o cenário de diversas mito-histórias. Do alto da Serra Grande, o demiurgo K’eg Te᷈h chamou e os Hupd’äh responderam quando eram ainda apenas vozes. No topo da Serra Grande, pinturas rupestres recobrem boa parte da superfície rochosa. São os escritos de K’eg Tẽh feitos após a evocação da humanidade. Do alto da Serra Grande é possível avistar serras muito distantes na região do rio Papuri e também a montanha Te᷈h Sik Moy Paç, “Serra Filho-Pedaço”. No tempo em que os animais falavam, foi nesta última serra que os primeiros Hupd’äh, depois da chegada na viagem da Cobra-Canoa, realizaram o primeiro Dabucuri com os animais e exibiram os instrumentos Jurupari.

A Serra Grande é também uma cidade das onças comandada por um perigoso dono. Em 2019, antes de nossa caminhada para a Serra Grande, o pajé Armando S. Socot contou ter sonhado com esse dono, cujo nome era Carlo Bisiw. Tõg te᷈g é a morada de um “homem-sombra” de mesmo nome que fugiu e entrou no morro para proteger-se do sopro do Jurupari dos ancestrais hupd’äh. É dentro da Serra Grande também que mora Matumã, esposa de um caçador que, seduzida por uma jovem onça, abandonou o marido e foi morar com seus filhos dentro da montanha.

Finalmente, a montanha é o destino das pessoas-sopro dos Hupd’äh quando seguem seu caminho após a morte.

As caminhadas com as flautas durante a coleta do buriti, a dança na palhoça e as viagens às serras inserem os jovens no curso de ações e paisagens de sentidos fundamentais para a transformação e o endurecimento corporais, para a aquisição de habilidades de caça, pesca e deslocamentos pelos percursos florestais e para a imersão em territórios de memória. A presença imanente de seres como K’eg Tẽh, demiurgo criador, e Bisiw, de cujo corpo queimado surgiram as flautas e que é, a um só tempo, um canibal dono dos animais, roças e montanha, situa os elementos relacionais de uma reciprocidade fundamental para a iniciação masculina, mas também perigosa. A seguir, a análise dos elementos etnopoéticos marcantes para a prática ritual do Jurupari ajudará a entender melhor a relação entre ritual e mobilidade estabelecida pelo contínuo Jurupari-percursos florestais.

Caminhos de Bisiw

Durante as caminhadas para as serras, uma ação protetiva importante era soprar a fumaça dos cigarros xamanizados com o “sopro dos caminhos” e com o “sopro da serra”. Os percursos florestais fazem com que os jovens atravessem paisagens habitadas por Bisiw e por demais seres não humanos, como as Pessoas-Árvore, Pessoas-Sombra e Döh ãy. Muitas das potenciais agressões a serem inibidas pelos sopros revelam continuidades entre as dimensões de guerra e predação necessárias à fabricação do corpo dos rapazes como guerreiros. Da mesma forma como a coleta de frutos para o Dabucuri de 2016 foi feita na roça de Bisiw, os caminhos florestais sempre perpassaram as casas, as aldeias e as cidades de perigosos Outros. O entrelaçamento de itinerários do “sopro da serra”, da mito-história de Bisiw, da sonoridade e da socialidade das flautas ajudará a entender melhor o continuo existente entre o Jurupari e os caminhos florestais. Estes podem ser entendidos como caminhos vividos, percursos de movimento por meio dos quais os viajantes acionam relações intensivas, feixes de afecções e forças, a transformar caminhantes, Seres-Outrem e domínios por meio de atravessamentos, metamorfoses e passagens entre mundos possíveis.

O “sopro da serra” deve ser exalado com fumaça de tabaco para criar proteções nos corpos dos viajantes, para que estejam ocultos dos potenciais agressores quando se aproximam dos morros, imediações das moradas de não humanos. A exegese do sopro xamânico foi contada pelo sr. Manuel Barbosa por ocasião do retorno do grupo de viajantes da Serra Grande em 2017.

Paç Bi’id - “Sopro da Serra”

1 Pɨnɨg tëg. Vou contar. Tëg-d’uh hup d’äh an mah Para as Pessoas- árvore hɨd dö’ yë pem yɨ’ɨh. Para fazê-las entrar e sentar, dizem. Tëg-D’uh-Hup-d’äh. As Pessoas-árvore. 5 Tëg-D’uh-Hup-d’äh mah As Pessoas-Árvore hɨd nɨh d’apb’uy meheh batem na gente com suas armas sugut ɨn k’et k’ö’ teneh. quando andamos pela floresta, dizem. Tih. Raiz. Tih-Hup-I᷈h mah sɨw’ɨh. O Homem-Raiz surra, dizem. 10 Tih-Hup-I᷈h mah sɨw’ɨh bɨ’ɨh. O Homem-Raiz dá surra, dizem. Tɨnɨh d’apb’uy mah tɨh meheh. Com suas armas ele nos bate. Tɨ᷈hɨ᷈y, Jararacas, tɨnɨh ho᷈poy sukut, com o caniço de surubim delas, mah tɨh sɨw’ɨh bɨ’ɨh. elas surram a gente, dizem. 15 Yup mah yup ɨnan sɨ’ pëë ë’ wëh. Com isso ficamos com dor na panturrilha. Yɨd dähan mah yup Mandam embora yup Tëg D’uh Hup a essa Pessoa-Árvore wed no yë pem yɨ’ɨh. dá comida, faz entrar e sentar, dizem. Tɨnɨh hib’ah wed mah Sua comida primordial, dizem, 20 tɨnɨh wed no pem yɨ’ɨh. dá a comida dele e faz sentar. tɨnɨh pu᷈’u᷈k b’o’ yɨ’ɨh mah. sua cuia de coca, Tɨnɨh hu᷈t tëg yɨ’ɨh mah. seu cigarro Tɨnɨh kapi yɨ’ɨh mah. seu caapi. Hɨd wed no yë pem yɨ’ɨh. Dá a comida, faz entrar e sentar. 25 Tɨh hɨdan Para ele Tɨnɨh moy ködan Para a casa dele yɨkan d’ö’ yë pem yɨ’ɨh. Para lá, faz entrar e sentar. Yup nɨhɨy mah yup Assim dizem Yò’ mah kädan Falam: “Sentem-se cabas”, 30 hib’ah yó’óh ɨnan mah tɨh yó’óh. “com o pinu-pinu primordial para nós”, dizem, “com o pinu-pinu”! Nup pɨnɨg ɨnan tɨh puhuwuh nɨh. Essas palavras fazem não inchar para nós. Yuwan ãh hɨd d’ö’ yë pem yɨ’ɨh i᷈h. Para esses, eu os faço entrar e sentar. Hɨd wed d’ö’ yë pem yɨ’ɨh i᷈h. com a comida deles, faço-os entrar e sentar tɨnɨh moyan. para suas casas. 35 Döhãyan yɨd yɨ’. Para a Döhãy, o mesmo. Yɨd yɨ’ pɨd d’ö’ yë pem bayah. Da mesma forma faz-se entrar e sentar. Tɨnɨh hib’ah wed yɨ’ɨh pɨd. Também com seu alimento primordial. Ya’aman Para as onças yɨd yɨ’ pɨd. faz-se o mesmo. 40 Ya’ap, Assim mesmo, yo’ot, Cabas, Tëg d’uhut Gente-Árvore, yuwut mah tɨh sɨp’wɨbɨh esses são os que surram, tɨh dap’buy tɨh meheh. batem com suas armas. 45 Tɨnɨh se᷈he᷈k, “Com seu paricá”, tɨnɨh hib’ah se᷈he᷈ke᷈t mah Falam: “Com seu paricá primordial” ɨd d’ö’ yë pem yɨ’ɨh. Profere-se e faz-se entrar e sentar. ɨd köd d’ö’ yë pem yɨ’ɨh Fala-se e faz-se entrar e sentar tɨnɨh moyanah. e estar dentro de sua casa. 50 Yup bɨ’ɨy nɨh yö’mah Essa minha ação, yup tɨnɨh yö’ äg tëg b’o’ d’ö’yë pem yɨ’ɨh. a cuia de beber dele faz-se entrar e sentar, dizem. Yɨkan pɨd. Para lá longe vai-se indo. Yup bɨ’ɨy no’oh yö’ mah. Vai-se fazendo e proferindo, dizem. Yup tɨnɨh tëg d’uh se᷈he᷈k, Esse seu paricá árvore, 55 tëg d›uh ag se᷈he᷈k, paricá árvores de fruta, yub se᷈he᷈k, paricá cipó ya’ap mah yup se᷈he᷈k tɨh tonoh cada um desses paricás que possuem, dizem. B’atɨb hup i᷈hi᷈h. O homem-sombra. Yuwan hɨd d’ö’yë pem yɨ’ɨh. Faz-se para que eles entrem e sentem. 60 Yɨt tɨh tonoh yɨ’ ayah Aqui termina. Bɨg nɨh meh yɨ’ɨh. Não demora muito, é rápido.

Num primeiro movimento, o xamã fala para as Pessoas-Árvore, Homem-Raiz e Jararacas para fazer com que não batam, surrem ou firam os andarilhos com suas armas. No ritual do Jurupari, uma das ações importantes para a transformação dos corpos dos neófitos é justamente a surra dada pelos mentores para que braços e pernas se tornem duros e para que, ao seguirem pelos caminhos, possam suportar a dor na panturrilha e as feridas dos ataques de não humanos. Coca, tabaco e caapi são ofertados para que os predadores entrem em suas moradas e não causem nenhum mal. As cabas, no segundo movimento, devem sentar-se em seus bancos. O pinu-pinu5 5 Urtiga. faz com que, ainda que as cabas piquem os viajantes, as feridas não inchem. O xamã prossegue fazendo os seres que consomem paricá6 6 Paricá, Se᷈he᷈k na língua Hup, rapé psicoativo preparado a partir de casca do tronco da árvore Virola calophylloidea. entrar em suas moradas. Estes são os predadores mais perigosos. São canibais que não apenas podem bater nos viajantes, mas devorá-los. A terrível Döh ãy é uma devoradora de caçadores e defensora dos animais. As onças caçam com suas espingardas e protegem sua cidade na Serra Grande. Os b’atɨb’ são caçadores de humanos-hup que habitam o inframundo e emergem para vagar pela floresta. Cercando seus paricás e suas cuias de beber caapi7 7 Caapi (Banisteriopsis caapi), Kapi na língua Hup, cipó utilizado para a preparação da bebida de mesmo nome caapi, psicoativo importante para danças coletivas, práticas e aprendizados xamânicos. , o xamã os faz entrar em suas casas e não perceber a passagem dos andarilhos.

A exegese do sopro mostra em que medida os percursos florestais aproximam os jovens das moradas, mundos e agências de não humanos. As toponímias revelam também a presença imanente de Bisiw. Os atos de mostrar dos mentores envolvem a indicação, a narração de histórias e os sonhos que vão inserindo os rapazes nos territórios ou nas fronteiras das terras de Bisiw. A agência ritual inicia-se na Bisiw b’ot, a “roça de Bisiw”, um buritizal cuja coleta se torna possível apenas com o toque e a proteção dos aerofones. Próximo ao Igarapé-Jandiá, local de evocação dos jandiás, está o Bisiw hoy, o “poço de pesca de Bisiw”, área de pesca desse poderoso ser. Sua força e poder são percebidos pela clareira aberta por Bisiw com um vendaval estrondoso que derrubou dezenas de árvores. A indicação indexical evidencia a presença, os domínios e os caminhos de Bisiw. A passagem pelas fronteiras desses mundos possíveis deve ser cuidadosa e/ou negociada.

No sentido de Cesarino (2013CESARINO, Pedro. 2013. “Cartografias do cosmos”. Mana, v. 19, n. 3:437-471. ), mentor e neófitos cartografam o cosmos, mapeiam bem as fronteiras das áreas de Bisiw para tangenciá-las ou atravessá-las atentamente. Outra toponímia importante advém da identificação da Serra Grande como Carlo Bisiw Moy, “Casa de Carlo Bisiw”. O nome mostra a potência não indígena desse Ser que é também o dono da Cidade das Onças existente dentro da Serra Grande. “Carlo Bisiw” é assim o dono das perigosas Onças, inaladoras de paricá, que perseguem os viajantes-caçadores com suas espingardas-trovões ao longo dos caminhos e são apaziguadas pelo “sopro da serra”. A própria toponímia Tõg Tẽg Paç, “Serra Tõg Tẽg Paç”, refere-se à onomatopeia do som da flauta Jurupari soprada pelos ancestrais para afugentar um b’atɨb’, “homem-sombra”, para dentro dessa serra. Muitas das risadas de nosso grupo de viajantes durante a caminhada às serras em 2016 decorreram do apelido de nosso mentor José, também chamado jocosamente de Bisiw. Toponímias, sopro e brincadeiras revelavam a presença imanente desse poderoso ser e de sentidos ligados ao ritual das flautas Jurupari.

Uma versão da mito-história de Bisiw narrada por Jovino Socot em 2011 ajuda a entender a importância desse Ser para a iniciação masculina e para os percursos florestais.

Bisiw pɨnɨg, “História de Bisiw”

O Bisiw deu as flautas. Primeiro, ele era igual a uma pessoa. O som dele zoava o som do Jurupari, da tã’ãy, “Fêmea”, e do tiyi, “macho”. O Bisiw transformou-se num toco onde os meninos entraram imitando o som dele. Ele mostrou-lhes o corpo e seu som zoando. Falou para os rapazes fazerem uma festa para ele. Cada povo conta o seu. A outra história começa assim, a outra história ele vem na origem. Cada grupo vinha com a sua história. Para nós, o Bisiw era forma de pessoa. Ele e Wed B’ö são gêmeos e Bisiw é puy, “irmão menor”. Primeiro, ele tinha forma de gente, o corpo zoava. Os meninos estavam imitando. Ele mostrou como zoava o corpo. Pediu para as crianças fazerem Dabucuri. O Bisiw subiu na árvore de uacú e pediu para os rapazes não saírem debaixo do pé. As crianças assaram o caroço de uacú e a fumaça chegou para ele. Ele desmaiou. Depois, disse: “Vocês também vão sentir como eu senti”. Aí ele fez uma chuva. Transformou-se em toco e os rapazes entraram dentro dele. Entraram pelo seu ânus. Ele comeu todos os meninos. Um escapou, comeu uacú e foi avisar os pais. Os pais estavam querendo matá-lo, e não conseguiram. Ele foi para a Paç-Moy, “Casa de Pedra”. O pai do rapaz mandou preparar bebidas e falou para o pássaro weyt, “periquito”, para avisar o Bisiw. O pássaro foi e começou a dizer a ele quais os tipos de bebida os homens tinham preparado. O Bisiw não queria aceitar, mas aceitou ir e beber sawi dëh, “caxiri da fruta de pau amarelo”. Então, ele foi até a casa dos pais para beber. Deixaram uma panela de caxiri para oferecer para ele. A panela era de barro como faziam antes, uma b’ok-täw. Deixaram essa panela para oferecer só para ele, pois o caxiri estava benzido para que ele logo se embriagasse. Bisiw falou: “Vocês querem vingança!”. Eles foram pegar lenha para fazer fogo. Empurraram-no. Ele queimou. Antes tinha dito: “Vocês vão cortar lenha, vão me queimar e vão sentir o que eu senti. Vocês vão brigar, vão matar, vão envenenar”. Foi aí que começou o corpo dele desse jeito. Com esse fogo que queimaram o corpo dele é que aparecem as flautas. Foi K’eg tẽh quem pegou as flautas e entregou para cada grupo no Lago de Leite. Do corpo queimado dele surgiram as flautas, muitas. Outros grupos podem contar mais, saber mais, mas a gente conta assim. K’eg tẽh encontrou o Bisiw queimado e levou as flautas para o Lago de Leite para dar à humanidade. As flautas eram os ossos de Bisiw. Do Lago de Leite a humanidade veio embaixo d’água na M’eh-Hoh-Tëg, a “Cobra-Canoa”, até Ipanoré, Hib’ah Höd. Então, desceram de novo até o Lago de Leite e subiram de novo, invisíveis. Foi aí que K’eg tẽh entregou para cada grupo as flautas. Aí, a humanidade teve cada um a sua flauta. Já subiram com a flauta na canoa. Essa transformação da canoa foi em Ipanoré. Subiram todos os rios: Uaupés, Papuri, Tiquié. Subiram de canoa e vieram todos se encontrar nessa “Serra do Filho-Pedaço”, Tẽh S’ ɨg Moy Paç. Saíram de canoa em Ipanoré e, andando, atravessaram em São Tomé, perto de Boca da Estrada. Lá tem a pedra onde eles atravessaram. Foram se encontrar nessa Serra da Iniciação, e daí mostraram o que receberam. Nessa “morada”, Moy, havia três casas. A primeira tinha só banco para sentar. A segunda era a casa dos homens com as flautas, A terceira, eles cercaram com pari para as mulheres ficarem dentro e não verem as flautas. Na segunda casa é que mostraram, entre os cunhados. Aí mostraram cada flauta. Todos os grupos foram mostrando e tocando até o final. Foi então que cada grupo se espalhou. Estavam lá os Tukano, os Desano.

Gêmeo, irmão menor (yB) de Wed Bö, Bisiw foi o segundo a nascer. A mãe era uma mulher tapada. O sopro do pai abriu-a para o parto (vagina) e digestão (ânus). O primeiro filho a nascer, Wed Bö, foi quem legou à humanidade os alimentos cultiváveis, os peixes moqueados e a coca e o tabaco. Bisiw cresceu sozinho, vagando pela mata e fazendo seu corpo soar como o som que as flautas Jurupari, macho e fêmea, fazem hoje em dia. Ao encontrar rapazes que brincavam de imitar seu som, ele ofertou a eles os frutos de uacú. Trata-se do primeiro “Dabucuri” que, no lugar de gerar a abertura de um ciclo de dádivas, suscitou a inimizade entre o anfitrião (Bisiw) e seus convidados (rapazes). A fumaça de uacú agrediu-o e fez Bisiw desmaiar. Em fúria, ele fez uma tempestade, transformou-se em tronco oco e devorou os jovens que penetraram seu ânus. Bisiw abrigou-se em uma “Casa de Pedra” semelhante à Serra Grande que visitamos. Ouvindo o periquito, aceitou o delicioso caxiri. Ao beber o caxiri soprado, praguejou que seus inimigos iriam se vingar queimando-o no fogo e, por isso, sentiriam o ódio e brigariam entre si, se matariam e se envenenariam. Essa origem da reciprocidade do Dabucuri é também uma origem da guerra e da inimizade. Do corpo queimado de Bisiw surgiram as flautas Jurupari que são seus ossos. K’eg Tẽh recolheu as flautas e entregou-as à humanidade, a cada grupo, às margens do Lago de Leite. Os grupos embarcaram com suas flautas na Cobra-Canoa e navegaram, invisíveis, pelo Rio de Leite até Ipanoré. Lá saíram e caminharam por percursos florestais até a “Serra do Pedaço-Filho” onde mostraram uns aos outros suas dádivas sonoras. Nessa maloca grande do alto da serra havia uma casa com bancos para sentar. Numa segunda casa ficaram as mulheres e as crianças cercadas por pari. Na terceira casa deu-se a exibição das flautas entre cunhados.

As flautas são assim uma dádiva de K’eg Tẽh aos grupos de agnatos que formarão os diferentes clãs e etnias. Recebida a dádiva, é preciso viajar com as flautas entre agnatos para estabelecer o domínio sobre os territórios e, ao mesmo tempo, seguir por caminhos florestais para mostrar as flautas aos cunhados (afins) em danças circulares. Ao redor do Lago de Leite e na “Serra do Filho-Pedaço”, círculos se fazem para a exibição dos aerofones que são, a um só tempo, ossos de Bisiw e Pessoas-sopro. O nome do demiurgo K’eg Tẽh pode ser traduzido como “filho do osso”, filho de um pedaço do corpo de um ser pretérito, o que aponta para diversas relações metonímias de sentido. A toponímia “Serra do Filho-pedaço” espacializa essa relação metonímica de descendência gerando uma paisagem onde os ossos-pedaços-flautas de Bisiw circulam nas danças entre afins.

As flautas também possuem seus nomes próprios, relações de aliança, afinidade e descendência, e grupo etário. Muitas delas são tidas como filhos e filhas de Bisiw: Hup wed ãy, Kukuy “Macaco da noite”, Sɨb “Mutum”. Soho - “Carangueijo” é irmão (B) e marido (H) de Mot, sendo ambos pais de Mohoy - (Veado), e de Pëd - (Cunuri). Mohoy e Pëd são casadas entre si e pais do flautim Bi’ (Rato). Em 2016, o par Soho foi tocado à frente por José Maria Andrade (Dög-M’eh-Tẽh-D’äh) e seu afim Custódio Socot (Sokw’ät-Noh-K’öd-Tẽh), seguido pelo par Mot, tocado pela dupla de afins Valdemar Brasil (ɨh-Noh-Tẽh-D’äh) e Almir Monteiro, (Sokw’ät-Noh-K’öd-Tẽh). Em 2016, os aerofones pertenciam a donos do clã Sokw’ät-Noh-K’öd-Tẽh, Manoel Monteiro (Soho, Mot e Hup wed ãy) e José (D’öp).

Como na mito-história de Bisiw, as flautas são exibidas e tocadas entre afins. Considerados donos das terras da região do grupo local cognático de Tat Dëh, os Sokw’ät-Noh-K’öd-Tẽh exibiam seus instrumentos e sua descendência como “filhos-pedaço” - “filhos do osso”. Muitos dos nomes de flautas são nomes pertencentes ao estoque de nomes do clã Sokw’ät-Noh-K’öd-Tẽh, alguns remetendo a animais, outros, a frutas. Os casamentos entre flautas irmãs evidencia uma endogamia extrema como um fundo em meio à afirmação de laços de afinidade masculina entre os dançarinos. Retomando a mito-história, o tema da guerra-predação vem à tona, por exemplo, com pares de trompetes, como Hup wed ãy, “Mulher canibal”, que foi roubado pelo antepassado Joanico Brasil dos ɨh noh tẽh d›äh, inimigos de guerra de clã afim.

Na mito-história, os rapazes imitam o som de Bisiw, encontram-no nas imediações de árvores de ucuqui, cujos frutos são por ele coletados para a oferenda. O sopro das flautas ao longo dos caminhos durante a coleta dos frutos se dá nas fronteiras da roça de buritis de Bisiw. Os rapazes Hup precisam estar protegidos para retirar os frutos sem sofrerem agressões desse ser e dos demais predadores não humanos presentes. A coleta que pode sinalizar a reciprocidade com esse Ser pode ser tomada também como um roubo a ser reprimido por Bisiw com sua violência canibal. Por isso, é preciso sempre estar pronto para correr e afastar-se rapidamente dessa paisagem não humana.

Durante a performance das flautas ao longo dos caminhos florestais, os pares de aerofones são tocados isoladamente e em círculos, evidenciando cada um dos timbres presentes. Tomando como referência o sistema tonal ocidental, é possível dizer que as flautas Soho emitem sons mais agudos na altura relativa às notas B (si) e o Bb (si bemol), as flautas Mot entre as notas G (sol) e A (lá), e D’öp entre G (sol) e Bb (si bemol). Já o trompete Hup wed ãy oscila entre os sons graves na altura relativa às notas Eb (mi bemol) e Gb (sol bemol), compondo uma sonoridade grave que marca os passos da dança e da caminhada, cumprindo um papel marcadamente rítmico e de baixo. Tendo como parâmetro a descrição de Lolli (no prelo) para o Jurupari dos Yuhupdëh, pode-se dizer que também entre os instrumentos 1 e 2 ocorre um jogo de pergunta e resposta com notas alternadas, o que exige extrema sincronia entre os músicos (hocket style). A constância rítmica permite observar o padrão de compasso quaternário 4/4 com alternância entre notas de curta duração em tercinas (colcheias e semínimas), e notas longas (mínimas).

A onomatopeia Tõg Tẽg que corresponde ao som grave da flauta dos ancestrais capaz de assustar e fazer correr um “homem-sombra”, e o som soturno do par de trompetes “mulher canibal” permitem entrever um sentido de fuga-perseguição do conjunto de flautas por um predador, ao mesmo tempo em que é essa agressora sonora que cadencia os passos e o ritmo das flautas com nomes de filhos e filhas do clã Sokw’ät-Noh-K’öd-Tẽh. Desse modo, percursos florestais e movimentos sonoros parecem entrelaçar sentidos de fugas e roubos, assim como de proteções sonoras para o deslocamento por fronteiras não humanas. Como me contou Genésio, os movimentos circulares-pendulares feitos pelos dançarinos com as flautas remetem ao momento em que os ancestrais receberam os aerofones às margens do Lago de Leite, sendo os movimentos verticais referências ao deslocamento dos “filhos do nascimento” com suas flautas ao longo do Rio de Leite. De forma semelhante, dentro da palhoça, as duplas de dançarinos seguem um itinerário-caminho que circunda o Lago de Leite a constituir-se a partir do amontoado de frutas no centro. Também é no alto da Serra Grande e às margens de um Lago de Leite que os rapazes se curvam para banhar o corpo e endurecer os braços e as pernas.

Ao aproximar as viagens para as serras e os percursos feitos com as flautas Jurupari é possível entender como se estabelece um contínuo entre o ritual do Jurupari e as jornadas para as serras, cuja duração e circunscrição estendem-se para além de eventos rituais pontuais. Percursos florestais e sopro das flautas aproximam os neófitos de potências generativas e destrutivas fundamentais para a metamorfose corporal e a produção da dureza dos guerreiros-caçadores.

Paisagem ritual tensiva e caminhos vividos

É ao longo de uma complexa paisagem ritual que potências intensivas e extensas geram sentidos por meio da interpelação entre mobilidade e xamanismo. Nesse sentido, percebe-se a importância de acompanhar o contínuo Jurupari-caminhos a partir da noção de paisagem ritual tensiva, entendida aqui como o centro dêitico (campo de presença) a situar gradações de ausência e presença e a entrelaçar transversalmente movimentos interagenciais e pontos de vista-sujeitos (perspectivas). Atenta-se assim para a trama de percursos-jurupari que compõe uma paisagem ritual a expandir-se e a contrair-se por afecções não apenas de corpos-sujeitos interespecíficos, mas também de temporalidades e espacialidades múltiplas.

Seguir os caminhos vividos permite acompanhar os modos sensíveis dos caminhantes de direcionar a atenção para o entorno e para suas próprias ações por meio de alterações de andamento e tonicidade, e entender melhor os processos de magnificação e de desmagnificação de si e do mundo possibilitados pelo ritual do Jurupari e pelos percursos florestais. Assim, as caminhadas florestais com as flautas durante a coleta de buritis na roça de Bisiw podem ser vistas como uma aproximação da fronteira e invasão da s’ah, “terra”, desse poderoso dono-canibal para o roubo-retirada dos frutos.

De modo extensivo, a paisagem ritual delineia-se inicialmente na aproximação e na intrusão da roça de Bisiw; em seguida, configura um campo de percepção intensivo na palhoça onde Bisiw e sujeitos rituais (flautas e dançarinos) formam uma singularidade múltipla; depois se expande até a Casa de Bisiw na Serra Grande, tangenciando e atravessando o poço de pesca e a área de derrubada do poderoso canibal.

A reciprocidade negativa estabelece um Fazer-Fazer, modalidade que impele Bisiw à perseguição e à transformação dos rapazes em tab’a’ ũh meh d’äh, “guerreiros duros”. O dono-canibal age sobre objetos-sujeitos (corpo, flautas, frutas, água), sobre valores (covardia : coragem) e sobre paixões (ódio, raiva, temor, calma, simpatia, tranquilidade) (Greimas 2014GREIMAS, Algirdas. 2014. Sobre o sentido II. São Paulo: Edusp. ). A posição de predação de Bisiw, Ser que devorou os rapazes tornando seu corpo um tronco oco e seu orifício-ânus uma boca, faz com que ele possa ser tomado como um sujeito do fazer, por suscitar a continuidade do percurso gerativo de sentido8 8 Percurso gerativo de sentido trata-se de um modelo metodológico desenvolvido por A. Greimas para analisar processos de produção do discurso em suas estruturas fundamentais, narrativas e discursivas (Fiorin 2017:153). como uma fuga dos rapazes, mas também como um antissujeito, por poder interromper o percurso com a aniquilação de todos (antisujeito).

Da mesma forma, como aponta Lolli (no prelo) para os Yuhupdëh, os instrumentos Jurupari fabricam e fazem crescer os corpos, compondo-os, mas podem também destruí-los, decompondo-os (:12). Caminhar com as flautas após a coleta e a fuga gera um aquecimento (demais) dos corpos (aerofones e rapazes), que são resfriados com o “banho dos homens-sombra” - b’atɨb’ s’om (pouco demais). É como pessoas-sombra, seres com grande concentração de calor, sangue, fúria e coragem, que os dançarinos retomam as flautas para tocar na palhoça na transição entre o espaço da mata e o espaço da aldeia hup. No “sopro da serra”, o apaziguamento das Pessoas-Árvore, Jararacas, Onças e Homem-Sombra faz-se como uma negociação da passagem por suas Terras-fronteiras. O banho no lago do topo da Serra Grande e/ou a ingestão das águas das cavernas das outras serras purifica e resfria a pessoa-sopro, tonifica braços e pernas endurecendo-os, e suscita bons sonhos de interlocução com antepassados. Ao mesmo tempo, a viagem de volta, um retorno acelerado para a aldeia, assume os contornos de uma perseguição por Bisiw, Onças e Gentes-Sombra que, surrando ou ameaçando devorar os rapazes, os fazem temer e enfrentar o perigo com coragem. Assim, o “sopro da serra”, ao mesmo tempo em que protege os andarilhos da ida, faz com que os predadores não humanos fortaleçam-se bebendo caapi e inalando paricá para, em seguida, caçar os caminhantes hup.

Seguindo por percursos florestais até a “Serra do Filho-Pedaço”, portando suas flautas dentro da Cobra-Canoa e rumando ao longo do Rio de Leite, os ancestrais atravessam e tangenciam moradas de não humanos, como Gentes-Cobra e Gentes-Árvore, tal como no “sopro da serra” e no ritual do Jurupari. Enquanto o percurso pelo Rio de Leite dá continuidade ao resfriamento das flautas dentro de uma anaconda-veículo, os itinerários florestais parecem aquecer e preparar os corpos para o estabelecimento da reciprocidade positiva da exibição e da troca entre afins no alto da “Serra do Filho-Pedaço”. No ritual do Jurupari, se primeiro há a invasão da Terra de Bisiw por humanos, agora há a invasão da Terra humana por Bisiw e uma coletividade de pessoas-sopro-sombras que assumem a posição de predadores furiosos a superaquecer seus corpos pela ingestão de caxiri, conversas e sopro-danças das flautas às margens do Lago de Leite a se formar no centro da palhoça. Projetar-se em direção ao dono canibal faz com que Bisiw, afetado, projete-se em direção aos rapazes e à palhoça-paisagem. Produzem-se impactos sobre Bisiw e reversamente sobre os sujeitos rituais. A simultaneidade dos sons agudos de flautas com nomes de frutas e animais e os sons graves e aterradores dos trompetes Hup wed ãy, “Mulher-Canibal”, mantém a continuidade semântica da predação.

As moradas (casas) podem ser vistas como termos intensivos a concentrar sentidos e afecções (espaços-ponto), enquanto os caminhos constituem termos extensivos (espaços-meio) a disseminar a significação (Zilberberg 2011:127ZILBERBERG, Claude. 2011. Elementos de semiótica tensiva. São Paulo: Ed. Ateliê Editorial.). Assim, a maloca no alto da Serra do Filho-Pedaço reúne em si a casa fechada com pari onde se ocultam mulheres e crianças, a casa com bancos e a casa dos homens com as flautas. Com a entrada das flautas, a palhoça torna-se a paisagem do Lago de Leite, assim como o topo da Serra Grande durante o banho dos viajantes. Todas essas moradas concentram sentidos de modo intensivo, agindo sobre a tonificação - endurecimento dos corpos - e concentrando múltiplas temporalidades em danças, banhos e fugas que compõem ações rituais. O enfoque na intensidade desses fenômenos para aqueles que vivem o ritual permite tomar o Jurupari como um acontecimento, no sentido de Zilberberg (2011)ZILBERBERG, Claude. 2011. Elementos de semiótica tensiva. São Paulo: Ed. Ateliê Editorial., operador do impacto sobre os sujeitos que “não pode ser apreendido senão como algo afetante, perturbador”, como uma suspensão arrebatadora por sua força extrema e intensidade (2011:169). Coloca-se aqui um jogo entre o esperado e o inesperado que faz com que os neófitos sejam arrebatados pelo ápice de acentuação (intensidade) e, aos poucos, inscrevam a percepção sensível-inteligível como um percurso de atualização e atenuação por meio de uma cadência de vivências mútuas.

No que diz respeito às temporalidades correlacionadas, a narrativa mito-histórica estabelece uma descontinuidade entre o tempo em que os Hupd’äh ainda não possuíam as flautas e não guerreavam e o tempo da produção de guerreiros. Nesse tempo pretérito, os humanos ouviam o som das flautas pelo ressoar do corpo integral de Bisiw a movimentar-se pela floresta. O som das flautas é índice de sua presença, crescimento e deslocamento pelos caminhos. Os Hupd’äh preparavam e consumiam diversas qualidades de caxiri e habitavam as cercanias do Lago de Leite. Os rituais de Jurupari instituem a descontinuidade biográfica para os neófitos, havendo um tempo em que ainda não tinham visto nem tocado as flautas, pois para os meninos é permitida apenas a audição dos instrumentos dentro de casa em companhia de mães e irmãs. A progressão de sentido delineia-se a partir da sequência:

[não ouvir à ouvir] → [ouvir à ver] → [ver à tocar] → [tocar → [ser tocado]

O sopro dos dançarinos penetra os corpos duráveis das flautas, resistentes ao desgaste. Os corpos-sujeitos rituais são penetrados pelos sons das flautas para que se enrijeçam e se tornem igualmente duráveis e resistentes, bravos e corajosos. Expandindo tais dimensões de sentido, instaura-se um tempo em que os andarilhos ainda não tinham se banhado nas serras. É o banho que tonifica e dota os viajantes da capacidade de resistir às investidas predatórias dos não humanos. Na narrativa mito-histórica há um Dabucuri não realizado plenamente antes que Bisiw, machucado e irado, devorasse seus convidados, dando indício às guerras. Posteriormente, há um Dabucuri pleno após a viagem na Cobra-Canoa à “Serra do Filho-Pedaço”, dando início às formas de reciprocidade próprias da afinidade.

Relações tensivas de abertura/fechamento, externo/interno e repouso/movimento delineiam sentidos importantes para o entendimento do contínuo Jurupari-caminhos. Bisiw, filho de uma mãe tapada e aberta (ânus e vagina) para o nascimento de gêmeos, abre-se como um tronco oco para a devoração dos rapazes pelo ânus-boca. Nesse sentido, a mãe-tapada e impermeável (não tubular) é aberta pelo sopro do pai (tubutar) e dá à luz a um filho poroso, cujo corpo é repleto de tubos-orifícios (hipertubular). Queimado o corpo-tubo poroso do canibal, surgem as flautas, que receberão nomes-sopros vitais de filhos de clãs hup, expressando um sentido de descendência. Sua morte pela queima fragmenta-o em múltiplos tubos duros não porosos, abertos nas extremidades. Assim, os jovens devorados ressurgem como aerofones, tubos duros que são atravessados pelo sopro vital dos neófitos hup. Enquanto estar dentro de Bisiw é ser predado e comido numa digestão invertida, estar dentro da Cobra-Canoa a viajar pelo Rio de Leite assemelha-se a uma gestação-percurso para o nascimento como humanos nas novas Terras. Cobra-canoa e andarilhos vão abrindo caminhos fechados e atravessando as moradas de diferentes seres. O percurso e a dança exigem que as casas dos Hupd’äh estejam fechadas com mulheres e crianças dentro, exige que Pessoas-Árvore e Pessoas-Sombra adentrem suas moradas para beber caapi e inalar paricá. As serras e a palhoça abrem-se para a entrada de andarilhos e pessoas-sopro que dançarão para enfurecer seus corpos pelo aquecimento, resfriá-los e endurecê-los pelos banhos e pelas águas das serras.

Depois de devorar os rapazes, Bisiw ruma para a serra. Lá, repousa na caverna e digere suas prezas. Movimenta-se rumo à aldeia para beber o caxiri oferecido e repousa, novamente, ao ser queimado e desintegrado. Seguindo para as serras, os andarilhos repousam nos acampamentos, mas evitam o descanso na viagem de retorno, parando apenas na chegada para beber caxiri e repousar plenamente. Na dança das flautas, após a movimentação circular entendida como o deslocamento por um Rio de Leite, os instrumentos repousam quando os dançarinos se sentam e bebem caxiri. As pausas marcam graus de desaceleração e controle, à medida que há o aumento da embriaguez e do calor corporal que indica o progressivo endurecimento dos corpos. O repouso inicia-se com a saída da palhoça, desmembramento das flautas, cujos pedaços-ossos são depositados sob a água do igarapé, num resfriamento máximo e distribuído. É nesse momento que se come a pimenta soprada e repousa-se na rede.

As tempestades provocadas por Bisiw, para que os rapazes se abrigassem em sua boca-tronco, e pelas Onças, após a visita da serra pelos viajantes, geram acelerações importantes que alteram a percepção e os estados dos andarilhos, que passam a temer e a correr. O “banho do homem-sombra”, a dança com as flautas e a ingestão progressiva de caxiri suscitam a aceleração até o ápice, quando os rapazes, fatigados, começam a deitar-se sobre as frutas no centro da palhoça. Desacelerações são assim geradas pelo banho no topo da serra, pela viagem pelo Rio de Leite, o que salienta a lentidão das viagens com as flautas e os processos de pacificação nos percursos florestais de ida (montante). De modo contrário, há rapidez na intrusão na terra de Bisiw (roça e serra), no retorno pelos caminhos abertos (jusante) e nos movimentos de erguer e abaixar as flautas. A transformação de corpos moles em corpos duros é, assim, operada por gradações de proporção.

Enquanto na narrativa mítica quanto maior o ódio, maior a dureza e o potencial predatório de Bisiw resultantes, na dança, quanto maior a homologia entre [neófitos] à [homem-sombra] à [Bisiw], maior o ódio-calor-sopro dos corpos e maior o endurecimento a magnificar os guerreiros. Esses fluxos de afecções eufóricas geram assim a tonificação, a magnificação dos neófitos e o ódio. De modo complementar, o “banho do homem-sombra”, as águas da serra e o Rio-Lago de Leite suscitam o endurecimento pelo resfriamento e o aumento do grau de serenidade, paixão mobilizada por K’eg Tẽh para resfriar e dar as flautas, continuada por anfitriões e convidados na exibição e na troca dos Dabucuris. Dois modos de endurecimento-magnificação efetivam-se através de intensificações de estados passionais de ódio (aquecimento) e/ou serenidade (resfriamento). Ambos estão em paralelo em relação ao modo feminino de gerar a vida a partir do útero, uma panela a cozer e a gestar filhos moles e quentes que precisam ser resfriados pelo leite materno (ver Ramos 2018RAMOS, Danilo Paiva. 2018. Círculos de coca e fumaça: encontros noturnos e caminhos vividos pelos Hupd’äh. São Paulo: Hedra.).

Em diferentes níveis, o contínuo Jurupari-caminhos instaura um antes, lócus da continuidade, e um depois, lócus da descontinuidade, e cria relações de oposição, como predador-presa, amigo-inimigo, que permitem aos sujeitos do fazer animarem a continuidade dos percursos. O controle dos fluxos e das afecções é garantido por ações que levam à desaceleração (maior controle) para pacificar os Seres-Outrem antagonistas e desarmá-los, e pela aceleração (menor controle) durante a fuga das presas. A aproximação das flautas e dos dançarinos na palhoça cria uma totalidade poderosa e perigosa, uma singularidade múltipla (Bisiw) que será controlada apenas com a desintegração e a imersão dos pedaços-ossos-filhos nas águas correntes do igarapé. A cadeia de vivências mútuas do ritual realiza-se a partir de uma intensificação no aquecimento dos corpos-seres, fazendo com que o quente passe a queimar como no fogo que incinera Bisiw e manifesta o ódio demasiado. A queima coletiva do Bisiw-sujeitos rituais possibilita a fragmentação e o resfriamento como etapas posteriores.

Seguindo Deleuze, o ritmo passa a unificar e homogeneíza domínios sensíveis quando a sensação desses domínios é capturada por uma potência vital que transborda todos os domínios e os atravessa (2007:49-50DELEUZE, Gilles. 2007. Francis Bacon: Lógica da sensação. Rio de Janeiro: Ed. Zahar. ). Quando o demasiado se torna “demasiadamente demais” (mais à demais), o aumento da tonicidade atualiza o excesso, os dançarinos começam a largar os aerofones e a deitar-se no chão e nos bancos, expressando o esgotamento e o repouso como a interrupção do movimento e o ápice da progressão numa afirmação da suficiência. A dissolução-separação do corpo de baile antecede e adianta a fragmentação dos tubos num fracionamento que distribui a potência vital imanente.

O ritual do Jurupari e as caminhadas florestais proporcionam a transformação-metamorfose por encontros com sujeitos e paisagens que instauram a descontinuidade entre pontos de vista perspectivos e espaços relacionais (mundos). Como já observado para o xamanismo ameríndio, o contínuo Jurupari-caminhos “faz cruzar barreiras corporais e adotar a perspectiva de subjetividades não humanas” (Viveiros de Castro 2002:468VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naify . ). Desse modo, ao longo das paisagens rituais do Jurupari, os neófitos-flautas transitam por estados intensos e extensos de [vida à não vida] à [morte à não morte] que possibilitam a metamorfose e a magnificação de seus corpos-sujeitos ao longo de um período transicional de passagem de Seres-Moles para Seres-Duros, tornando-os capazes de controlar e mobilizar para si as potências da ira-ódio e da serenidade próprias aos estados de guerreiros e parceiros Hupd’äh. Os acontecimentos suscitados pela predação de Bisiw, queima do canibal, resfriamento e dádiva das flautas, e dança na serra projetam energias e afecções em direção aos sujeitos rituais, o que mostra o caráter de contraefetuação ritual a partir das ações e dos feixes de afecções concentradas como um acontecimento-Jurupari e estendidas de modo duradouro como atualização pelos percursos florestais das viagens às serras.

Conclusões

Os estudos antropológicos sobre a vida ritual procuram descrever sequências totais da performance (Schechner 1985SCHECHNER, Richard. 1985. Between theatre and anthropology. Philadelphia: University of Pennsylvania Press. ), processos rituais (Turner 1974TURNER, Victor. 1974. O processo ritual. Petrópolis: Ed. Vozes. ), campos relacionais por meio dos quais emergem formas constantes de interação (Houseman & Severi 2009HOUSEMAN, Michael. & SEVERI, Carlo. 2009. Naven ou le donner à voir. Paris: CNRS-Éditions. ) e mesmo a meta-agencialidade dos participantes (Humphrey & Laidlaw 1994HUMPHREY, Caroline. & LAIDLAW, James. 1994. The archetypal actions of ritual. Oxford: Ed. Clarendon. ). Os estudos sobre o complexo ritual do Jurupari-Dabucuri no Alto Rio Negro-Uaupés buscaram, até o momento, sustentar-se em perspectivas teórico-analíticas que enfocam as dimensões eventuais, institucionais, performáticas e analógicas do fenômeno.

Enfatizando o sentido de amplificação no Jurupari dos Yuhupdëh, Lolli (no prelo) mostra que as formas sonoras verbais emitidas pela boca nos sopros xamânicos (benzimentos) e as formas sonoras não verbais amplificadas pelos instrumentos estão em relação de transformação. Trabalhos recentes sobre o complexo ritual do Jurupari de povos Arawak e Tukano têm ressaltado igualmente a centralidade dos processos de construção gradual de imagens de continuidade e mudança entre ancestrais míticos e humanos viventes e a criação de um mundo expandido que diferencia pessoas e lugares como processos musicais dinâmicos de transformação, movimento, deslocamento e descontinuidade (Hill 2011:94HILL, Jonathan. 2011. “Sacred landscapes as en-vironmental histories in lowland South America”. In: A. Hornborg & J. Hill (orgs.), Ethnicity in ancient Amazonia. Boulder: University Press of Colorado. pp. 259-278.).

Como modelos conceituais, feixes de relações são analisados para explorar oposições entre abertura/fechamento - continente/conteúdo por meio de formas como o Tubo, ou das dimensões andrógena e sinestésica do complexo do Jurupari-Dabucuri (S. Hugh-Jones 2017HUGH-JONES, Stephen. 1979. The Palm and the Pleiades. Cambridge: Cambridge University Press .). Ao destacar as ideias de que uma entidade (Jurupari Kuwai) pode ser ao mesmo tempo singular e múltipla, condensar em um único corpo/clã a abrangência da vida e que processos e produtos de vida são entendidos como fluxos, Hugh-Jones aponta já para a importância de uma atenção para os contínuos e as gradações de sentidos como necessários para entender melhor a sinestesia dos rituais de Jurupari. Assim, para os Tukano, a vivência dos movimentos da dança do Jurupari é percebida como o voo de pássaros-humanos que liga os sentidos de visão e audição de modo inextricável (S. Hugh-Jones 2017:31-40HUGH-JONES, Stephen. 2017. “Body tubes and Synaesthesia”. Mundo Amazônico, v. 1, n. 8:27-78. ). A condensação de sentidos e a expansão de escala encapsulada no corpo-tubo fazem com que seja possível mover-se entre diferentes escalas de espaço e tempo no Jurupari (2017:61HUGH-JONES, Stephen. 2017. “Body tubes and Synaesthesia”. Mundo Amazônico, v. 1, n. 8:27-78. ).

A análise tensiva do continuum Jurupari-caminhos ajudou a perceber a importância de uma abordagem focada não apenas no Jurupari como um fenômeno episódico, circunscrito temporal e espacialmente a sequências de ações realizadas na aldeia e suas cercanias, mas também nos percursos florestais realizados pelos sujeitos rituais, humanos e não humanos, antes e depois do acontecimento ritual intensivo, enfatizando que a distância semântica depende do andamento e das durações diferenciais adotadas por caminhantes e dançarinos, o que alonga e distribui a paisagem ritual (temporalidade-espacialidade) de modo ora concentrado (tônico), ora difuso (átono). Dando centralidade à maneira como sentidos são gerados ao longo de percursos sensíveis e inteligíveis de movimento e ação, é possível pensar não apenas por meio da diferença estabelecida por feixes de relações de termos ou formas conceituais contrapostas posicionalmente, mas também por fluxos intensivos e extensivos (tensividade) a gerar sentidos através de percepções, afecções, sensações e paixões de pontos de vista-sujeitos.

Em História e Dialética, C. Lévi-Strauss (2002)LÉVI-STRAUSS, Claude. [1962] 2002. O pensamento selvagem. Campinas: Ed. Papirus. contrapõe-se à visão de História de J. P. Sartre afirmando que as significações estão sujeitas à marcha, podendo a história do dia a dia, de curto prazo, ser acelerada; a de longo prazo, ser lenta; e a de médio prazo, tender à neutralidade. O estudo tensivo do continuum Jurupari-caminhos dos Hupd’äh possibilitou direcionar a atenção para a cadeia de vivências mútuas do ritual a se delinear através de movimentos agenciais com ritmo, duração, extensidade e intensidade diferenciais. Tal abordagem garantiu não apenas constatar que há deslocamento por diferentes escalas de espaço-tempo, mas mostrar como se dá a percepção perspectiva de fluxos de afecções entre temporalidades e espacialidades múltiplas, distribuídas ao longo de paisagens rituais que instituem a guerra-xamanismo (cosmopolítica), a atualização cotidiana e a contraefetuação ritual como horizontes dialéticos e vivenciais possíveis.

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  • ZILBERBERG, Claude. & FONTANILLE, Jacques. 2001. Tensão e significação São Paulo: Humanitas.

Notas

  • 1
    Agradeço aos Hupd’äh de Taracuá Igarapé e, especificamente, a Ponciano Salustiano, Américo Socot, Manoel Socot e a José Socot pelo acolhimento e os ensinamentos. Agradeço a Geraldo Andrello e Pedro Lolli pelo incentivo e diálogos profundos. Meu agradecimento também às valiosas sugestões e correções apontadas pelos(as) pareceristas que avaliaram o trabalho.
  • 2
    Opto por denominar “sopro” a ação xamânica que envolve a enunciação murmurada de fórmulas verbais para a cura e/ou proteção, direcionadas a objetos e/ou substâncias a serem utilizados ou consumidos pela pessoa (ou coletivo) a ser curada ou protegida. A palavra bi’id ora é traduzida por meus interlocutores Hupd’äh como “benzimento”, próximo ao uso corrente por falantes do português regional, ora como sopro. Nesse segundo caso, o emprego da palavra “sopro” em português pode referir-se à agência para a cura, o que é mais raro, ou como sinônimo da palavra “estrago”, empregada para ações voltadas à destruição da pessoa ou coletividade. Na língua Hup, a palavra bi’id refere-se a um tipo de sopro específico, distinto de pu᷈hu᷈́t (assoprar) e mais próximo de ha᷈g-sák (respirar) e de ha᷈́wäg (sopro vital). Entendo que o sentido da palavra “benzimento” aproxima demasiadamente essa agência xamânica hup de práticas religiosas católicas, fazendo-nos perder de vista a diferença profunda que as práticas xamânicas Hupd’äh têm em relação a essas práticas religiosas colonizadoras. Creio que em português o uso da palavra “sopro” para a tradução da palavra hup bi’id tem a vantagem, assim, de distanciar-nos tanto do campo semântico religioso (benzimentos) quanto do mágico (encantamento).
  • 3
    Tipo de cesto para cargas a serem carregadas nas costas durante caminhadas.
  • 4
    Os Planos de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PGTA) da Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial de Terras Indígenas (PNGATI) (Funai 2013FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO. COORDENAÇÃO GERAL DE GESTÃO AMBIENTAL (org.). 2013. Plano de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas: Orientações para Elaboração. Brasília: Funai. ).
  • 5
    Urtiga.
  • 6
    Paricá, Se᷈he᷈k na língua Hup, rapé psicoativo preparado a partir de casca do tronco da árvore Virola calophylloidea.
  • 7
    Caapi (Banisteriopsis caapi), Kapi na língua Hup, cipó utilizado para a preparação da bebida de mesmo nome caapi, psicoativo importante para danças coletivas, práticas e aprendizados xamânicos.
  • 8
    Percurso gerativo de sentido trata-se de um modelo metodológico desenvolvido por A. Greimas para analisar processos de produção do discurso em suas estruturas fundamentais, narrativas e discursivas (Fiorin 2017:153).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    22 Ago 2021
  • Aceito
    19 Jul 2022
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