Acessibilidade / Reportar erro

Buscando a vida na economia e na etnografia

Searching for Life in the Economy and in Ethnography

Buscando la vida en la economía y en la etnografía

Resumo

Este ensaio propõe uma pragmática das relações entre vida e economia, explorando regiões de contato entre ambos os conceitos. O foco são as chamadas “emergências econômicas”, nas quais se coloca em jogo o acesso aos “essenciais para a vida”, quando não a própria vida biológica de seres humanos. Nas emergências, as relações entre vida e economia passam a ser objeto de controvérsia pública, aparecem nos posicionamentos dos especialistas e, também, no dia a dia das pessoas que fazem as suas vidas mobilizando disposições incorporadas no tempo longo de outras crises. O texto tematiza formas monetárias de calcular o valor da vida que sustentam o conceito de custo de vida e modos de articular a materialidade da vida com a moralidade da pessoa na busca pela vida e por uma vida que merece ser vivida em situações de extrema pobreza e precariedade. O fundamento etnográfico do ensaio e do programa de pesquisas que ele propõe está em pesquisas realizadas sobre as hiperinflações brasileira e argentina de fim do século passado, sobre as dinâmicas econômicas em paisagens de extrema pobreza, como as dos bairros populares de Port-au-Prince, capital do Haiti, especialmente no período posterior ao terremoto de 12 de janeiro de 2010, e sobre alguns traços das atmosferas da emergência que envolvem a crise suscitada pela pandemia de covid-19.

Palavras-chave:
Vida; Economia; Etnografia; Emergências; Crise

Abstract

This article argues for a pragmatics of the relations between life and economy, exploring regions of contact between both concepts. Its focus is on the so-called “economic emergencies” where access to the “essentials of life”, if not the biological life of human beings themselves, are at stake. In emergencies, the relationship between life and economy becomes an object of public controversy, appears in the elaborations of experts, and in the daily lives of people who make a living by mobilizing dispositions incorporated in the long time of other crises. The text thematizes the monetary ways of calculating the value of life that underpin the concept of cost of living and ways of articulating the materiality of life with the morality of the person in the search for life and for a life worth living in situations of extreme poverty and precariousness. The ethnographic basis of the article and the research program it proposes rests in research conducted on the Brazilian and Argentine hyperinflations of the end of the last century, on economic dynamics in landscapes of extreme poverty, such as those of the poor neighborhoods of Port-au-Prince, capital of Haiti, especially following the earthquake of January 12, 2010, and on some traces of the atmospheres of emergency surrounding the crisis of the covid-19 pandemic.

Keywords:
life; economy; ethnography; emergencies; crisis

Resumen

Este ensayo propone una pragmática de las relaciones entre vida y economía explorando regiones de contacto entre ambos conceptos. La atención se centra en las llamadas “emergencias económicas”, en las que está en juego el acceso a lo “esencial para la vida”, o incluso la propia vida biológica de los seres humanos. En las emergencias, las relaciones entre vida y economía se convierten en objeto de controversia pública, surgen en la toma de posición de los expertos y, también, en el día a día de las personas que hacen sus vidas movilizando disposiciones incorporadas durante otras crisis. El texto tematiza las formas monetarias de calcular el valor de la vida que sustentan el concepto de costo de vida y formas de articular la materialidad de la vida con la moralidad de la persona en la búsqueda por la vida y por una vida que merezca ser vivida, en situaciones de extrema pobreza y precariedad. El fundamento etnográfico del ensayo y el programa de investigación que se propone aquí se fundamenta en investigaciones sobre las hiperinflaciones brasileña y argentina de finales del siglo pasado, sobre las dinámicas económicas en escenarios de extrema pobreza, como los de los barrios populares de Port-au-Prince, capital de Haití, especialmente en el periodo posterior al terremoto del 12 de enero de 2010, y sobre algunos rastros de las atmósferas de emergencia que rodearon la crisis suscitada por la pandemia del covid-19.

Palabras clave:
vida; economía; etnografía; emergencias; crisis

Junto com o fato de que temos fronteiras, sempre e em todos os lugares, assim também somos fronteiras. Na medida em que cada conteúdo da vida - cada sentimento, cada experiência, cada ação ou pensamento - possui uma intensidade, uma tonalidade específica, uma quantidade específica e uma posição específica em alguma ordem das coisas...

Georg Simmel, The view of Life, 1918.

O meu objetivo neste ensaio é propor um mapa etnográfico que mostra regiões de contato entre vida e economia. O guia para desenhar esse mapa é um exercício de pragmática histórica da vida e da economia que aponta como esses conceitos (vida e economia) se constituem mutuamente, em relação. O foco do argumento são situações ou processos nos quais esses vínculos se apresentam em “carne viva”: as chamadas emergências econômicas decorrentes de desequilíbrios monetários (como as hiperinflações), crises de abastecimento de alimentos, conflitos militares, deslocamentos populacionais ou catástrofes “naturais”, como terremotos, furações, grandes incêndios, inundações e outras consequências das mudanças climáticas. Emergências econômicas entrelaçadas com emergências humanitárias nas quais está em jogo o acesso aos “essenciais para a vida”, quando não a própria vida biológica de seres humanos.

Na segunda metade de 2019 iniciei o que deveria ter sido um período de um ano como pesquisador convidado no Instituto de Estudos Avançados, em Princeton. Meu objetivo era escrever um livro sobre as relações entre emergências econômicas, vida e economia, focando em situações e processos sobre os quais pesquisei e escrevi nos últimos anos, como as hiperinflações brasileira e argentina da década de 1980 e as dinâmicas econômicas das favelas de Port-au-Prince, capital do Haiti, especialmente no período que se seguiu ao terremoto de 12 de janeiro de 2010.

Quando começava a organizar o meu material fui arrastado, como todos nós, pela dinâmica da pandemia de covid-19. Tive que encurtar o período no exterior ao mesmo tempo em que o meu objeto de pesquisa era literalmente desbordado por um processo jamais antes visto, produzindo dois efeitos. O primeiro foi o de paralisia: como não considerar a nova emergência que atravessava as nossas vidas e se desenvolvia diante de nós, em escala planetária? Como evitar dizer banalidades sobre processos em curso de tamanha dimensão, envolvidos em temporalidades e desdobramentos incertos? O segundo efeito foi me obrigar a explicitar mais e melhor as questões sobre as que estava escrevendo (vida, economia, emergências), colocando-as em uma perspectiva mais ampla do que aquela que se mostrava para mim até então.

Apresento aqui uma primeira catalisação desse processo de amadurecimento das questões conceituais e empíricas de uma pesquisa que continua em andamento. Catalisação no sentido etimológico e químico do termo: o da produção acelerada de um novo conjunto a partir de relações originais entre elementos preexistentes. Isto justifica também o caráter experimental, inacabado e por vezes fragmentário do meu argumento. Uma sorte de “ensaio no estrito sentido do termo”, diríamos, evocando Clifford Geertz.1 1 Como se relata nos agradecimentos, a base deste texto é uma sucessão de conferências. O tom falado, que aqui foi em certo modo mantido, é coerente com o ensaio como gênero.

Começo falando das emergências econômicas, mostrando por que elas são uma janela privilegiada para observar regiões de contato entre vida e economia. Em seguida, foco nesse par de conceitos (vida e economia) para propor as coordenadas gerais do programa de pesquisa, sublinhando o fato de que os vínculos entre eles têm sido pouco explorados até agora pela literatura antropológica que em anos recentes se interessa pela vida. Sigo com um argumento que procura iluminar etnograficamente essas regiões de contato com base nas minhas pesquisas sobre o conceito de custo de vida entre os profissionais da economia e sobre o conceito chache lavi (algo como “buscar a vida”) entre os meus interlocutores no Haiti e na diáspora haitiana. Finalizo voltando ao plano geral da pesquisa: a pragmática histórica das regiões de contato entre os conceitos de vida e economia que, por sua vez, coloca em evidência políticas da vida e da economia.

Emergências econômicas

“Emergência econômica” é um dispositivo técnico-jurídico que dispõe o uso de instrumentos extraordinários para o governo da economia, legitimados no imperativo moral da urgência de preservar vidas ou de garantir o acesso ao “mínimo essencial” para viver (Neiburg 2020NEIBURG, Federico. 2020. “Vidas, economia e emergências”. Boletim Ciências Sociais e Coronavirus, 22, Anpocs. http://anpocs.com/images/stories/boletim/boletim_CS/Boletim_n22.pdf
http://anpocs.com/images/stories/boletim...
). As emergências econômicas motivam, por exemplo, confiscos de depósitos ou restrições às movimentações financeiras, mudanças no regime de valor do dinheiro (como as desvalorizações ou as substituições da moeda nacional), programas de transferência maciça de renda para restabelecer a liquidez de empresas ou de bancos, medidas para garantir o acesso a bens tidos como básicos para a população, como o congelamento de preços ou a intervenção sobre redes de suprimentos.

Como o “estado de exceção” (Agamben 2005AGAMBEN, Giorgio. 2005. State of Exception. Chicago: Chicago University Press.), e em uma genealogia que se entrecruza com este (Meyler 2007MEYLER, Bernadette. 2007. “Economic Emergency and the Rule of Law”. Cornell Law Faculty Publications. Paper 1371. http://scholarship.law.cornell.edu/facpub/1371
http://scholarship.law.cornell.edu/facpu...
; Scheuerman 2000SCHEUERMAN, William E. 2000. “The Economic State of Emergency”. Cardozo Law Review, 21 (5-6):1869-1894.), o dispositivo da emergência econômica foi utilizado inicialmente no contexto da Primeira Guerra Mundial e, logo depois, no período das grandes hiperinflações europeias, ainda antes da crise de 1929. Naquela época, na Alemanha, por exemplo, várias municipalidades emitiram “dinheiro de emergência” (Notgeld), primeiro para financiar a guerra e depois para lidar com a desvalorização vertiginosa do marco alemão (Feldman 1997FELDMAN, Gerald D. 1997. The Great Disorder. Politics, Economics, and Society in the German Inflation 1914-1924. Oxford: Oxford University Press.; Orléan 2007ORLÉAN, André. 2007. “Crise de souveranité et crise monétaire: l’hyperinflation allemande des annés 1920”. In: Bruno Théret (org.), La monnaie dévoilée par ses crises. Vol II. Crises Monétaires en Russie et en Allemagne au XXe siècle. Paris: Éditions EHESS. pp. 187-219.).2 2 Foi no período da I Guerra quando o conceito de “essencial para a vida” foi mobilizado pela primeira vez por especialistas, na Alemanha e na Inglaterra (Tooze 2013).

As relações entre instabilidade monetária, fluxos de dinheiro e emergências econômicas tornaram-se objeto de intensos debates desde as primeiras décadas do século XX, opondo até hoje aqueles que apostam na injeção de liquidez como forma de superar as crises e aqueles partidários da austeridade. Estes últimos advertem sobre os efeitos desestabilizadores das políticas de expansão monetária, que gerariam desequilíbrios fiscais, estimulando a inflação - um assunto que, como se sabe, também foi ganhando centralidade nas controvérsias públicas a respeito dos efeitos econômicos da pandemia.3 3 Sobre a gênese desses debates ver, por exemplo, Mendershausen (1943), Keynes (1940) e as respostas a este último por Hayek 1998 [1982], vol. 2:124-26.

Já no século XXI, por exemplo, a crise financeira iniciada nos Estados Unidos em 2008 levou o presidente George W. Bush a assinar a Lei de Estabilização Econômica de Emergência, autorizando o Secretário do Tesouro a gastar US$ 700 bilhões para comprar ativos de empresas em dificuldades, especialmente títulos hipotecários, transferindo somas astronômicas de dinheiro para os bancos com o objetivo de “injetar liquidez” para mitigar o colapso (Langley 2015LANGLEY, Paul. 2015. Liquidity Lost. The Governance of the Global Financial Crisis. Oxford: Oxford University Press .). No velho continente, nos anos seguintes, o Banco Central Europeu e vários governos nacionais tomaram medidas semelhantes. Nada se compara, no entanto, com a dimensão dos recursos mobilizados por causa da pandemia de covid-19. Só nos Estados Unidos, em março de 2020, o presidente Donald Trump conseguiu apoio do Congresso para um pacote de mais de 2 trilhões de dólares, que seria ainda ampliado no ano seguinte, já na administração de Joe Biden.4 4 Chamado “Coronavirus Aid, Relief, and Economic Security Act” (CARES).

No Brasil, em março de 2020, o Congresso Nacional votou a emenda constitucional que instituiu o “Orçamento de Guerra”, a fim de transferir mais de R$ 200 bilhões a estados e municípios, ao mesmo tempo em que criou a lei do “Auxílio Emergencial” destinando o equivalente de 4 % do PIB para assegurar o consumo básico das famílias afetadas pela crise (Carvalho 2020CARVALHO, Laura. 2020. Curto-circuito. O vírus e a volta do Estado. São Paulo: Todavia.). Como acontece nas emergências, mas desta vez em uma escala inédita, que parece desbordar a compreensão dos próprios especialistas, no Brasil como em tantos outros países, nesses últimos anos, cada conjunto de medidas se apresenta como transitória, suscitando negociações infindáveis que acompanham a sua própria implementação, embaralhando cronologias e temporalidades, ou melhor, tornando opaco o ponto crucial de toda emergência: quando e como ela acaba? Em que momento se volta à “normalidade” e que “normalidade” é a que surge “após” o seu suposto fim?

Assim, em sucessão vertiginosa, antes mesmo da implementação de novos pacotes, auxílios e ajustes, editam-se e revogam-se disposições legais (medidas provisórias, emendas constitucionais); projetos confundem-se com normas vigentes ou por entrar em vigor, agudizando a temporalidade própria da emergência caracterizada pela compressão, pela aceleração e pela incerteza não só no plano do governo e das leis, mas também no fluxo das vidas ordinárias, nas formas em que pessoas e famílias navegam a emergência no dia a dia.

Alguns especialistas, como o historiador Adam Tooze (2020TOOZE, Adam. 2020. “We are living through the first economic crisis of the Anthropocene”. The Guardian, 07/05/2020. https://www.theguardian.com/books/2020/may/07/we-are-living-through-the-first-economic-crisis-of-the-anthropocene
https://www.theguardian.com/books/2020/m...
), se referiram à emergência econômica desencadeada pela pandemia de covid-19 como a primeira do antropoceno, pela sua intensidade, pela sua velocidade de transmissão, e pelos níveis de incerteza ligados a um sem-número de variáveis não controláveis nem conhecidas, a começar pela própria dinâmica do vírus. Focando no comportamento incerto, agora não do vírus, mas do fogo e dos grandes incêndios impulsionados pelas mudanças climáticas, o conceito de horizoning proposto por Adriana Petryna (2022PETRYNA, Adriana. 2022. Horizon Work: At the Edges of Knowledge in an Age of Runaway Climate Change. Princeton: Princeton University Press.) descreve bem esse caráter multiescalar das incertezas que atravessam do trabalho dos especialistas às vidas das populações ameaçadas e afetadas de forma ao mesmo tempo maciça e granular pela emergência. O trabalho sobre o horizonte (temporal e geográfico), argumenta Petryna, envolve a reconfiguração das possibilidades de conhecimento e de ação.

Assim, envolvidas nessa opacidade de horizontes temporais, as emergências econômicas desenham experiências coletivas marcadas pelas três características da temporalidade mencionadas acima: compressão, aceleração e incerteza.5 5 Há ecos aqui, evidentemente, da análise das temporalidades da crise proposta por Koselleck (2006). Mas o fato crucial é que não se trata nunca de experiências homogêneas. Ao contrário, as emergências econômicas envolvem sempre experiências heterogêneas, distribuídas de forma desigual, o que por sua vez gera ainda mais desigualdades. Cenários de contornos temporais difusos, as emergências econômicas colocam assim em evidência o caráter desigual das vidas. Uma forma radical de expressão dessas desigualdades é a diferenciação da chamada “expectativa de vida” das populações afetadas diferentemente pelas crises (Fassin 2018FASSIN, Didier. 2018. Life. A Critical User’s Manual. New York: Polity Press.), como pode se ver nos efeitos da diminuição da expectativa de vida por causa da pandemia que alcança de maneira mais aguda as populações previamente precarizadas em decorrência de princípios étnico-raciais (Castro et al. 2021CASTRO, Marcia C.; GURZENDA, Susie; TURRA, Cassio M. et al. 2021. “Reduction in life expectancy in Brazil after COVID-19”. Nature Med, 27:1629-1635. https://doi.org/10.1038/s41591-021-01437-z
https://doi.org/10.1038/s41591-021-01437...
).

Nas emergências econômicas as controvérsias sobre as relações entre vida e economia ganham caráter público. No início da pandemia de covid-19, autoridades e especialistas se pronunciaram sobre as relações entre ambos os termos. De Boris Johnson a Donald Trump, de Recep Tayyip Erdogan a Jair Bolsonaro, figuras públicas clamaram que o remédio não fosse mais doloroso do que a doença, condenando o suposto falso humanismo daqueles que diziam valorar a vida, mas que, na verdade, estariam defendendo uns poucos (os idosos, os doentes ou os mais ricos) em detrimento das maiorias (os jovens, os desempregados e os pobres precarizados).6 6 No auge de uma nova onda de coronavirus, o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, foi ainda mais claro, pedindo para que as pessoas: “contribuam com a sua vida para salvar a economia” (Estado de Minas, 25/02/21. https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2021/02/25/interna_nacional,1241134/contribua-com-a-sua-vida-para-que-a-gente-salve-a-economia-diz-prefeito.shtml) Outros denunciaram esses primeiros por priorizarem as empresas e os bancos em detrimento da vida das pessoas, e exigiram universalizar políticas sociais que permitissem o confinamento necessário para frear a transmissão do vírus, defendendo, ao contrário de um tempo de austeridade, a inevitabilidade de um mundo pós-neoliberal ou neo-keynesiano para atravessar a emergência.

Os principais dirigentes do Fundo Monetário Internacional e da Organização Mundial da Saúde assinaram conjuntamente, em meados de 2020, declarações em que chamavam à razão e ao equilíbrio, pois o “custo-benefício”, diziam, era inevitável inclusive nas formas moleculares de gestão da doença nas quais os trabalhadores da saúde eram obrigados a administrar recursos escassos, como os respiradores, tendo que decidir quem viveria e quem morreria nos hospitais (Georgieva & Ghebreyesus 2020GEORGIEVA, Kristalina & GHEBREYESUS, Tedros Adhanom. 2020. “Some say there is a trade-off: save lives or save jobs - this is a false dilemma”. The Telegraph, 3 de abril. https://www.telegraph.co.uk/global-health/science-and-disease/protecting-healthandlivelihoods-go-hand-in-hand-cannot-save/
https://www.telegraph.co.uk/global-healt...
). Meses depois, a discussão sobre a desigualdade planetária na distribuição de vacinas reatualizou em novos termos as controvérsias sobre as relações entre vida e economia, colocando no foco o lucro das empresas farmacêuticas, o empenho dos orçamentos nacionais e a limitada capacidade das agências internacionais para fazerem chegar os imunizantes às populações e aos governos mais pobres do planeta.

Como temos visto com uma intensidade única a partir de 2020, nas emergências as relações entre vida e economia viram assunto público em um duplo sentido: são popularizadas (nos debates participam amplas camadas da população, para além dos estreitos círculos dos especialistas), e são também politizadas, gerando embates que afetam o desenho das políticas públicas.7 7 Sobre esse duplo sentido da “publicidade” (popularização e politização), Fassin (2017).

Uma antropologia da economia e da vida

Nos últimos anos ganhou força uma crítica etnográfica ao conceito de vida que questiona o seu caráter autoevidente. Trata-se de um produtivo engajamento com a vida que se baseia no questionamento dos binarismos que opõem vidas biológicas e vidas biográficas, vidas naturais e vidas sociais e, ainda, as separações entre os universos da vida e da morte, das vidas humanas e não humanas.

Didier Fassin (2018FASSIN, Didier. 2018. Life. A Critical User’s Manual. New York: Polity Press.:44) descreveu três formas através das quais a disciplina se envolveu recentemente com a vida: observando as relações entre vida, vitalidade e movimento; concentrando-se nas relações entre espécies; ou prestando atenção em paisagens socioculturais diferenciadas, cada uma com sua própria forma de vida, cultura ou ontologia (por exemplo, respectivamente, Ingold 2011INGOLD, Tim. 2011. Being Alive: Essays on Movement, Knowledge and Description. London: Routledge ., Kohn 2013 e Pitrou 2014PITROU, Perig. 2014. “La vie, un objet pour l’anthropologie. Options méthodologiques et problèms épistémiologiques”. L’Homme, 212:159-190.). Fassin propõe uma crítica, que certamente vai muito além da antropologia, das diferentes maneiras em que a vida (no singular) é concebida e, sobretudo, das formas desiguais em que as vidas (no plural) são valorizadas nos tempos contemporâneos.

O tratamento do conceito de vida como autoevidente (misturando os seus usos teóricos e práticos) evidencia-se nos títulos de monografias clássicas, como (só cito três exemplos, distribuídos no tempo e na geografia, dentre muitíssimos outros) Life in a Haitian Valley (Herskovits 1937HERSKOVITS, Melville. 1937. Life in a Haitian Valley. New York: Knopf.), A morada da vida (Heredia 1979HEREDIA, Beatriz. 1979. A morada da vida. Rio de Janeiro: Paz e Terra.) ou, mais recentemente, The mushroom at the end of the world. On the possibility of life in capitalist ruins (Tsing 2015TSING, Anna Lowenthal. 2015. The mushroom at the end of the world. On the possibility of life in capitalist ruins. Princeton and Oxford: Princeton University Press. ). Monografias como estas ensinam que a socialidade humana é parte da vida ao mesmo tempo em que ela a anima ativamente (Pina-Cabral 2018:522PINA-CABRAL, João. 2018. “Turning to Life. A comment”. HAU. Journal of Ethnographic Theory, 8 (30):522-529.). Acompanhando a ideia de vida-processo de Tim Ingold (2011INGOLD, Tim. 2011. Being Alive: Essays on Movement, Knowledge and Description. London: Routledge .) poderíamos dizer, também, que os autores dessas monografias mostram que a vida afirma as paisagens que nós, humanos, habitamos e, o que é muito relevante para o meu argumento aqui, que o fluxo da vida está marcado por uma sucessão de eventos que persistem na memória e se projetam no dia a dia, no presente (Das 2020DAS, Veena. 2020. Vida e palavras. A violência e a sua descida ao ordinário. São Paulo: Unifesp.).

Dois elementos chamam a atenção nessa virada para a vida.8 8 Este é o título do dossiê publicado na revista Hau. Journal of Ethnographic Theory, em 2018, https://www.haujournal.org/index.php/hau/issue/view/hau8.3 O primeiro, mais geral, é que os autores raramente se interrogam sobre o(s) conceito(s) de vida que eles mesmos ou que seus interlocutores mobilizam. O segundo, que atinge o centro do meu argumento, é que nessa “virada” poucos até agora tenham se interessado em iluminar as regiões de contato entre vida e economia que, como aprendemos com Michael Foucault (2010FOUCAULT, Michel. 2010 [1979]. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes. [1979]), são tão centrais para as modulações contemporâneas do conceito de vida como certamente o são as suas regiões de contato com as ciências biológicas ou com as disciplinas da “mente”, privilegiadas até agora.9 9 Ver a respeito, por exemplo, a análise de Dias Duarte (2021). Este é justamente o objeto mais geral deste ensaio: mapear as regiões de contato entre economia e vida.10 10 Algumas aproximações etnográficas recentes com as relações entre vida e economia podem ser vistas em pesquisas que tratam de crise e austeridade (como Narotzky & Besnier 2014, e Bear 2015), de “vidas austeras” (Narotzky 2019), ou das dinâmicas do “ganhar a vida” (como Fernándes Álvarez & Perelman 2020). No âmbito da produção do Núcleo de Pesquisas em Cultura e Economia (NuCEC), vários pesquisadores têm indagado questões próximas, como Evangelista (2019), Montinad (2020) e Neiburg e Joseph (2021) no Haiti, Vieira (2021) na República Democrática do Congo, e Petti (2022) no Rio de Janeiro.

Nos últimos anos tenho desenvolvido uma perspectiva sobre a antropologia da economia que me parece produtiva para iluminar essas relações mutuamente constitutivas entre vida e economia, até agora negligenciadas pela literatura. Esta perspectiva é ao mesmo tempo etnográfica, comparativa e histórica. Ela se situa na fronteira entre vários campos de conhecimento: a antropologia das ciências e das tecnologias (econômicas), a antropologia das políticas públicas (notadamente aquelas que visam governar a economia, como as políticas macroeconômicas e as políticas monetárias, sobre as quais pouco ou quase nada se fala na nossa disciplina), e a antropologia da casa e das economias domésticas, que envolve a compreensão das dinâmicas econômicas cotidianas (Motta 2014MOTTA, Eugênia. 2014. “House and economy in the favela”. Vibrant, 11 (1):119-158.). No centro desta perspectiva encontra-se a preocupação por compreender etnograficamente as relações entre as ideias e as práticas econômicas ordinárias (das pessoas, no dia a dia das suas vidas) e as ideias e as práticas econômicas eruditas, dos especialistas ou, como eu prefiro denominar, dos profissionais da economia. Este conceito inclui os economistas (acadêmicos e reguladores de políticas econômicas), os divulgadores e os pedagogos (como os jornalistas econômicos e toda a variedade de “opinólogos” que habitam as mídias) e, de modo ainda mais geral, os chamados “agentes de mercado”, como, por exemplo, aqueles que agem nos mercados de dinheiro (como os cambistas) e nos mercados de bens “essenciais”, como os ligados aos alimentos e à saúde.

Esta perspectiva se inspira na empreitada que acompanhou o nascimento das modernas ciências sociais, na sua preocupação por compreender a natureza do capitalismo, no bojo da chamada controvérsia sobre o método (Methodenstreit), que na virada do século XIX para o século XX serviu como cenário para a separação entre a economia e as disciplinas histórico-culturais. Enquanto a primeira centrou seu projeto sobre o funcionamento dos mercados e a racionalidade das escolhas, a segunda se ocupou por reconstruir a gênese social dos arranjos coletivos e das subjetividades dessa forma de humanidade, urbana e monetizada, que se espalhava especialmente na Europa e nos Estados Unidos - entre a metrópole simmeliana e a teodiceia capitalista weberiana.

Foi Max Weber quem talvez tenha formulado um dos programas mais abrangentes sobre a gênese social do capitalismo, focando justamente nas relações entre as práticas e as ideias econômicas eruditas e as práticas e as ideias econômicas ordinárias. No seu projeto de pesquisa sobre as religiões mundiais, Weber propôs focalizar nas “incitações práticas” das teorias, no papel dos pedagogos e dos divulgadores e, em especial, nas relações múltiplas e plásticas entre a prática teórica dos teóricos e as teorias práticas mobilizadas no cotidiano das vidas (p.e., Weber 1996 [1915]WEBER, Max. 1996 [1915]. “Considérations intermédiaires”. In: Sociologie des religions. Paris: Gallimard.).

Com isso, me parece, o programa weberiano antecipou e formulou de modo mais agudo tanto as perguntas que animaram a chamada “antropologia econômica”, que floresceu na metade do século XX, quanto a “virada performativa” que foi fundamental para a renovação dos estudos sociais da economia, no início do século XXI. Weber explorava uma sociologia histórica e relacional, observando uma miríade de vínculos possíveis entre as formas eruditas e ordinárias de relacionar as teorias econômicas com as realidades da economia (o que em inglês se separa nos termos economics e economy), como afinidade, causalidade, paralelismo, correspondência e simultaneidade, entre outras (Weber 1965 [1913]WEBER, Max. 1965 [1913]. “Essai sur quelques catégories de la sociologie compréhensive”. In: M. Weber, Essais sur la théorie de la science. Paris: Plon. ), abrindo um amplo campo de pesquisa que informa a pragmática histórica das relações entre economia e vida que proponho neste ensaio.

Que relações descrevemos quando usamos o termo “econômico” e como apreendemos as situações empíricas das “economias reais”? Como se compõem as realidades da economia e da vida? De que maneira se entrelaçam comportamentos e instituições? Em que contextos e que agentes sociais utilizam estes termos de forma descritiva ou prescritiva? Como identificar nas formas de relacionar práticas econômicas e vidas aquilo que prescrevem as teorias? Quais são, diríamos com Gregory Bateson, as dinâmicas cibernéticas que entrelaçam teorias e práticas nos campos das políticas da vida (Fassin 2009aFASSIN, Didier. 2009a. “Another Politics of Life is Possible”. Theory, Culture & Society, 26 (5):44-60. ), das emergências econômicas e, de forma mais geral, nos vínculos entre vida e economia?

Nas próximas seções trato de duas regiões de contato entre vida e economia que ilustram, ainda que sempre parcialmente, a vastidão do projeto de pesquisa que sugerem essas interrogações. Na primeira, trato da valoração monetária da vida, na segunda, das articulações entre a materialidade da vida ligada ao dinheiro e a moralidade da vida ligada à ideia de vida boa em paisagens assoladas pela crise e pela carestia.

Vidas, cálculos e dinheiro

Wergild é o título que Georg Simmel deu ao capítulo que na Filosofia do Dinheiro trata do valor monetário da vida humana (Simmel 2008 [1908]:357 e ssSIMMEL, Georg. 2008 [1909]. The Philosophy of Money. London and New York: Routledge.). O sociólogo alemão chama a atenção para a intensidade com a qual a valoração monetária atravessa as concepções da vida na tradição do direito anglo-saxão à qual o termo se refere, indicando “a forma como o dinheiro proporcionou um conceito quantitativo do valor dos seres humanos”. A partir da origem escandinava do termo (que indica o valor da vida de um homem pagável em dinheiro pelo assassino à família da vítima), Simmel descreve aspectos da longa história da quantificação monetária da vida: dinheiro de sangue, escravidão, prostituição, suborno, até a monetização dos direitos e das reparações. Este último tema é de enorme atualidade considerando as demandas de compensação advindas das consequências da crise ambiental e, especialmente, a reivindicação de reparações pelos descendentes das pessoas africanas escravizadas nas Américas. Trata-se, mostrou Simmel, da transformação do ser humano em princípio ou parâmetro do próprio valor do dinheiro.11 11 Sobre os dilemas morais suscitados pela valoração monetária da vida, ver os trabalhos pioneiros de Zelizer (1979, 1985).

Pessoas e moedas colocam-se, assim, em escalas ordinais, umas com mais e outras com menos valor. A moedas “fortes” correspondem a pessoas “fortes”, enquanto as moedas “fracas” correspondem a pessoas “fracas”.12 12 A elaboração dessa distinção, iniciada no século XVIII (Mintz 1964), se consolidou ao longo do século XIX (Neiburg & Dodd 2019). O valor do dinheiro se associa ao valor dos seres humanos, como fica evidente na longa duração da diferença de valores entre as vidas (e os corpos) das pessoas brancas e negras que habitam ou que foram transplantadas de regiões do planeta com moedas tidas como “primitivas” ou “débeis”. O valor moral e o valor monetário das vidas se confundem em encadeamentos ordinais que criam e reforçam desigualdades.13 13 Em temos de Fourcade (2016), passa-se das valorações nominais (ontológicas) a valorações numéricas cardinais (orientadas a quantidades) e ordinais (orientadas a posições).

Na sua etnografia sobre as condições de vida da classe operária na Inglaterra, Friedrich Engels descreve o encurtamento da expectativa de vida dos trabalhadores e denuncia o uso das chamadas “pílulas de vida” que eram distribuídas pelos patrões para supostamente garantir a boa nutrição dos operários. Em suma, ele dizia, os salários eram claramente insuficientes em um mundo no qual “todas as condições da vida são mensuradas em dinheiro” (Engels 1987 [1845]:399ENGELS, Friedreich. 1987 [1845]. The Condition of the Working Class in England. London: Penguin Books.), impedindo satisfazer as necessidades básicas da vida e afastando a possibilidade de viver uma vida boa. Maus salários e vidas ruins, alimentando a estigmatização da miséria, desenhando paisagens relacionais de pessoas e de vidas que se percebem como diferenciadas, ao mesmo tempo materialmente e moralmente: uns mais humanos do que outros.14 14 Naquela época, no século XIX, o assalariamento era, como é hoje (com a generalização da precarização e do chamado empreendedorismo), uma condição que alcançava poucos (Denning 2010). O primeiro salário-mínimo foi instituído em 1894, na Nova Zelândia; no Brasil, em 1941, como em outros lugares, com a intervenção de médicos e sanitaristas, como no nosso país, Josué de Castro, uma figura-chave para a publicização (e a monetização) da fome como problema social.

A gênese social dos chamados indicadores econômicos, ou index numbers, um dos principais instrumentos das novas ciências econômicas, esteve ligada, justamente, à conceituação do “custo de vida”. Já no século XVIII começaram a ser fabricadas quantidades com a finalidade de abstrair conteúdos observáveis em aglomerados de produtos: as chamadas “cestas básicas”. Os primeiros Índices de Preços ao Consumidor foram criados em 1913, na Grã-Bretanha, e pouco depois nos Estados Unidos e na Alemanha (Guyer 2016bGUYER, Jane. 2016b. “Indexing People to Money: The Fate of ‘Shelter’”. In: Legacies. Logics. Logistics. Essays in the Anthropology of the Platform Economy. Chicago: University of Chicago Press . Chapter 9:181-199. ; Neiburg 2010NEIBURG, Federico. 2010. “Sick Currencies and Public Numbers”. Anthropological Theory ,10 (1):1-7.; Stapleford 2009STAPLEFORD, Thomas. 2009. The Cost of Living in America. A Political History of Economic Statistic 1880-2000. Cambridge: Cambridge University Press .; Tooze 2001TOOZE, Adam. 2001. Statistics and the German State, 1900-1945: The Making of Modern Economic Knowledge. Cambridge: Cambridge University Press .). Entre as duas Guerras Mundiais e durante as hiperinflações europeias da década de 1920, se generalizou o uso de índices de preços como um instrumento de conhecimento e de ação sobre as “vidas reais de pessoas reais” (Neiburg & Guyer 2019NEIBURG, Federico & GUYER, Jane. 2019. “The Real in the Real Economy”. In: NEIBURG, Federico & GUYER, Jane (eds.), The Real Economy. Essays in Ethnographic Theory. Chicago: Hau Books/Chicago University Press. pp. 1-25.).

Nesta numerificação da vida coube um papel crucial também ao uso desses números singulares que são as percentagens. Elas estão ligadas (como a vida) a escalas e a hierarquias morais e a um sentido de totalidade (os 100%). As escalas percentuais permitem mensurar variações em linhas temporais, como o incremento do custo de vida. Ordinalização e percentualização se combinam assim de maneiras heterogêneas que reforçam e lapidam diferentes faces da realização numérica das relações entre vida e economia.15 15 Sobre as relações entre ordinalidad e porcentualidad, Guyer (2014) e Verran (2010).

Progressivamente, inventaram-se maneiras cada vez mais sofisticadas de recortar tempos e vidas, segundo períodos (anuais, mensais, quadrissemanais...), segundo faixas etárias (jovens, adolescentes, aposentados...), segundo classes sociais ou agregados populacionais (países, regiões, cidades grandes, médias, pequenas...), entre tantos outros; cada recorte com o seu próprio índice de custo de vida. A proliferação dos indicadores que indexam (no sentido de Charles Peirce) números e vidas é, assim, causa e consequência da expansão autopoiética do campo dos especialistas e dos laboratórios que quantificam e monetizam a vida.16 16 O aspecto que interessa aqui da teoria peirciana é que nenhum elemento da significação (neste caso, números e vidas) preexiste ou existe sem o outro (Peirce 1998 [1931-35]:53-54), nesse sentido eles se indexam mutuamente. Sobre a pragmática dos preços em chave peirciana, ver Muniesa 2007.

Por outro lado, também se multiplicaram as controvérsias e as guerras sobre os números. Nas discussões sobre reajustes de salários (especialmente nas economias de alta inflação), sindicatos confrontam seus próprios números com os produzidos pelos patrões ou pelos governos. Quantidades vinculadas a vidas invadem espaços e debates públicos, como ocorreu, por exemplo, no Brasil após o golpe militar de 1964, com a implementação do plano de estabilização monetária e o sistema de “indexação”. Na década de 1970, questionando a suposta tergiversação dos números oficiais utilizados para medir a inflação e reajustar salários e contratos, criou-se no Congresso Nacional uma Comissão de Inquérito (a “Comissão sobre os números”). Ao mesmo tempo em que ocorriam imensas manifestações nas ruas, as chamadas “manifestações pelo custo de vida” que (diferentemente das manifestações haitianas da “vida cara”, às quais me referirei mais adiante) questionavam menos o próprio aumento dos preços e mais a veracidade e a qualidade técnica dos indexadores numéricos apresentados pelo governo (Neiburg 2011NEIBURG, Federico. 2011. “La guerre des indices. L’inflation au Brésil (1964-1994)”. Genèses. Sciences Sociales et Histoire, 3 (84):25-46.; Nunes Monteiro 2017NUNES MONTEIRO, Thiago. 2017. Como pode um povo vivo viver nesta carestia. O movimento do Custo de Vida em São Paulo (1973-1982). São Paulo: Humanitas/Fapesp.).

Disputas como essas, que buscam capturar as relações entre números e vidas, são ao mesmo tempo técnicas, cognitivas, políticas e morais. Elas podem se apresentar de forma muito variada, em contextos diversos. Por exemplo, podem ganhar a forma de violentas intervenções dos governos (ou de agências internacionais, como o FMI ou o Banco Mundial) nos laboratórios de produção de números, como os institutos nacionais de estatística. Este foi o caso em vários países do sul da Europa após a crise de 2008 e, também, na Argentina, em 2015, quando um novo governo decidiu decretar o estado de “emergência estatística”. Com a finalidade de “restituir a verdade” nas correlações entre números e vidas, o novo governo fabricou novos índices de variação de preços que supostamente exprimiriam as taxas “reais” de inflação, acusando o governo anterior de ter mentido sistematicamente, “confundindo os limites entre a realidade e a fantasia nos cálculos do custo de vida” (La Nación 2/1/2016, também Daniel & Lanata Briones 2019DANIEL, Claudia & LANATA BRIONES, Cecilia. 2019. “Battles over numbers: the case of the Argentine consumer price index (2007-2015)”. Economy and Society, 48 (1):127-151.).

Os indicadores de custo de vida são só uma entre outras formas de capturar as relações entre vidas e economia. Em anos recentes, mais ainda no contexto da pandemia de covid-19, por exemplo, ganhou evidência em países como os Estados Unidos ou a Nova Zelândia o conceito de valor estatístico da vida (value of statistical lives, VSL). Seu objetivo é modelizar os processos através dos quais “os indivíduos tomam diariamente decisões que refletem como eles valorizam a vida, a saúde e os riscos de mortalidade, como dirigir um automóvel, fumar um cigarro e comer um hambúrguer [...] envolvendo trocas implícitas entre vida e dinheiro” (Viscusi & Aldy 2002VISCUSI, Kip W. & ALDY, Joseph E. 2002. “The Value of a Statistical Life: A Critical Review of Market Estimates throughout the World”. Journal of Risk and Uncertainty, 27 (1):5-76.).17 17 Para um comentário crítico sobre o VSL, ver Fourcade (2009). Na linha da aplicação dos modelos da ação racional para capturar a “realidade da vida”, certamente um dos autores mais influentes é o economista Gary Becker. Na conferência na qual recebeu o prêmio Nobel (“The Economic Way of Looking at Life”), ele sustentou que o principal objetivo da economia é aplicar a metodologia da ação racional “fora dos domínios econômicos clássicos, para apreender a própria vida, a vida familiar, a duração da vida e o bem-estar” (Becker 1992:53BECKER, Gary S. 1992. “The Economic Way of looking at Life”. Nobel Lecture. Economic Science, p. 38-58. ).

Às visões individualistas sobre as vidas econômicas (como as de Becker ou Viscusi)18 18 Ou como o célebre conceito do “ciclo de vida”, do também prêmio Nobel de economia, Franco Modigliani (1966). opõem-se desde sempre outras perspectivas que se pretendem humanistas e holistas. Este é o centro, por exemplo, da crítica desenvolvida entre outros pelo também prêmio Nobel de economia, Joseph Stiglitz, à centralidade dada pelo economic mainstream aos indicadores numéricos em geral e aos indicadores de PIB em particular, como se estes fossem os únicos para acessar assuntos como a qualidade da vida e o bem-estar. Esses números (o PIB), argumenta Stiglitz, impedem um “retrato realista”, “erram a medida (mismeasure) das nossas vidas”. Ao contrário de métricas simples, seria preciso um painel de mensurações múltiplas para acessar a multidimensionalidade da vida, “indo além da dimensão material”, “considerando as desigualdades nas vidas” (Stiglitz, Sen & Fitoussi 2010STIGLITZ, Joseph E.; SEN, Amartya & FITOUSSI, Jean-Paul. 2010. Mismeasuring Our Lives Why GDP Doesn’t Add Up. New York and London: The New Press.; também Nussbaum & Sen 1999NUSSBAUM, Martha & AMARTYA, Sen. 1999. The Quality of Life. Oxford: Clarendon.). Ainda mais longe do mainstream, se distinguem por sua pretendida radicalidade outros indicadores que têm a vida como foco, como o indicador do “Buen Vivir” fabricado no Equador, ou o indicador de “Felicidade Nacional Bruta” construído no Butão e patrocinado pela ONU desde 2012.19 19 “Well-being and Happiness Report”, https://worldhappiness.report/

Conflui para estas formas de conceituar a vida e as vidas econômicas a crítica aos paradigmas individualistas da ação racional, procurando, ainda que de formas muito diferentes, medir vidas em situação de pobreza, as diferenças entre as vidas humanas20 20 Como é o caso, por exemplo, dos iniciadores de necessidades básicas insatisfeitas (NBI), do indicador de desenvolvimento humano (IDH) ou do chamado índice Gini de desigualdade. ou, ainda, a construção de séries históricas de longa duração que retratam desigualdades (p.e. Piketty 2014PIKETTY, Thomas. 2014. Capital in the Twenty-First Century. Cambridge: Harvard University Press.). Em alguns contextos, como o haitiano, esses debates confluem com as discussões a respeito do (sub)desenvolvimento, da pobreza e da fome e, ainda, o mais interessante para o meu argumento, eles estão presentes, “conversam”, com as pessoas no dia a dia das suas vidas.21 21 Utilizo aqui a noção de conversa na linha da monografia Conversations in Colombia. The Domestic Economy in Life and Text (Gudeman & Rivera 1990), na qual os autores procuram explicitar etnograficamente as relações entre formas eruditas e ordinárias de pensar a economia.

Precisamente, é nesse plano do cotidiano das vidas e particularmente do cotidiano das emergências econômicas, que as práticas teóricas dos especialistas e as teorias práticas das pessoas ordinárias conversam intensamente, transformando estas últimas também em especialistas em cálculos e em números. Dois exemplos ilustram este ponto.

O primeiro é o das hiperinflações ocorridas nas últimas décadas do século passado em locais como o Brasil e a Argentina. Diante da rápida desvalorização do dinheiro e da perda do poder de compra ocasionada pelo aumento acelerado dos preços, as cifras invadiram os espaços íntimos, tornando os cálculos em assunto cotidiano. As pessoas viam-se confrontadas com a necessidade diária de “fazer alguma coisa com a grana”: investir (mesmo que pequenas quantidades) à procura de taxas de juros “over-night” que compensassem a desvalorização, ou trocar rapidamente o dinheiro por outros produtos, comprando especialmente alimentos e inclusive adaptando os espaços domésticos para estocar bens, adquirindo (quem podia) geladeiras e freezers (O’Dougherty 2002O’DOUGHERTY, Maureen. 2002. Consumption Intensified. The Politics of Middle-Class Daily Life in Brazil. Durham: Duke University Press .). Na Argentina, boa parte dos cálculos de preços e salários eram feitos em dólares, o que obrigava as pessoas a conversões permanentes entre moedas e a trocar rapidamente a moeda nacional pela divisa estrangeira. No Brasil, os contratos eram fixados em indexadores, esses dispositivos centrais do sistema da indexação após 1964. Tabelas de conversão, dinheiros que perdiam aceleradamente valor, moedas “doentes” que eram substituídas uma e outra vez por novas moedas, sempre com menos zeros, impondo processos de transição entre elas e estimulando ainda novas conversões e cálculos em paisagens que eram, como acontece sempre nas paisagens inflacionárias, plurimonetárias, compostas, justamente, de moedas nacionais agonizantes e nascentes, divisas estrangeiras e indexadores (Neiburg 2006NEIBURG, Federico. 2006. “Inflation: Economists and Economic Cultures in Brazil and Argentina”. Comparative Studies in Society and History, 48 (3):604-633., 2007NEIBURG, Federico. 2007. “As moedas doentes, os números públicos e a antropologia do dinheiro”. Mana. Estudos de Antropologia Social, 13 (1):119-151.).

O segundo exemplo se situa nos bairros pobres de Port-au-Prince, onde pude observar como, paradoxalmente, a extrema falta de dinheiro torna o dinheiro onipresente. Essa onipresença na carência ganha modulações específicas dado também o caráter plural da geografia monetária haitiana, na qual circulam quantidades sempre pequenas em pequenas transações da moeda nacional (o gourde), de dólares norte-americanos, de pesos dominicanos, e de outras moedas nacionais, ou até de fichas de plástico ou de metal que são usadas em esferas de troca específicas, como nos mercados da água e do carvão. As pessoas crescem virando especialistas em cálculos entre moedas e escalas. E ainda apreendem a utilizar, para transitar entre essas escalas diferentes calculando mentalmente, uma unidade de conta pura ou uma moeda imaginária (o dólar haitiano) que não tem nem nunca teve existência material como moeda ou como nota (Neiburg 2016NEIBURG, Federico. 2016. “A true coin of their dreams: Imaginary monies in Haiti (The 2010 Sidney Mintz Lecture)”. HAU: Journal of Ethnographic Theory, 6 (1):75-93.). Nessas paisagens de falta de dinheiro e de excesso de números, de jogos de escalas e de cálculos, no se virar diário, articulam-se a materialidade da vida e a moralidade da vida boa, como se observa nos sentidos e nos usos cotidianos da expressão em crioulo, chache lavi (buscar a vida).

A busca pela vida e a vida cara

Nou, an Ayiti, pa gen okenn figi, “no Haiti nós não temos números”. Este diagnóstico, que contrariava a presença intensa dos números entre os meus interlocutores nos bairros da capital, foi realizado por um técnico do Instituto Haitiano de Estatística (IHSI) em uma conversa que tivemos em novembro de 2009, enquanto as ruas de Port-au-Prince e das principais cidades do país eram sacudidas pelas manifestações da lavi chè (literalmente, vida cara).22 22 No Haiti 80% dos alimentos são importados. Como em outras ocasiões no país e em outras latitudes, os protestos estavam ligados a surtos nos preços internacionais das commodities.

Passei vários dias no Instituto conversando sobre o aumento do custo de vida e, especialmente, sobre as possíveis correlações entre as séries históricas de aumento dos preços e protestos semelhantes aos que estavam acontecendo naquele ano. De fato, como observou Jane Guyer na década de 1980 na Nigéria (2004GUYER, Jane. 2004. Marginal Gains: Monetary Transactions in Atlantic Africa. Chicago: The University of Chicago Press.), no contexto da altíssima inflação, os agentes que compõem as cadeias de aprovisionamento de alimentos operam com teorias nativas dos preços que se traduzem em antecipações. É o que eu observava também nos mercados da capital do Haiti ainda antes da explosão dos protestos da vida cara, quando as minhas interlocutoras comerciantes pareciam ver (ou ver chegar) a inflação ainda antes de que acontecesse o aumento efetivo dos preços, a partir de indicadores sutis sobre alterações na disposição das mercadorias nos depósitos, indícios sobre a falta de produtos ou, ainda, mudanças no estado de ânimo de importadores e atacadistas. Isto confirmava a hipótese de que as ondas de protestos estavam vinculadas a informações difundidas pelas redes de comerciantes e mercados distribuídas de forma capilar pelas ruas da cidade e pelas estradas do país, alimentadas também pelas notícias e pelos rumores vindos das capitais comerciais haitianas situadas fora do país, como Santo Domingo, Panamá ou Miami.

Em 2009 a minha experiência etnográfica no Haiti estava ainda no seu início, meu crioulo era bastante rudimentar, estava longe de compreender os significados complexos dos protestos.

Depois, ao longo dos anos, acompanhei outras ondas de manifestações de lavi chè, especialmente depois do terremoto de 2010. Pouco antes do início da pandemia do novo coronavirus, ao longo de 2018 e 2019, o país esteve estremecido por protestos contra a carestia, ao mesmo tempo em que a FAO declarava que o Haiti atravessava uma emergência alimentar: 40% da população estava em condições de fome.

Assim, fui compreendendo que lavi chè envolve muito mais do que um protesto sobre o preço dos alimentos. Trata-se de uma demanda de justiça apoiada em um julgamento moral sobre a desigualdade das vidas: a condenação das “vidas caras” em um duplo sentido de ressonâncias simmelianas, que denuncia a impossibilidade da vida para uns e o exagero da vida para outros.

Desde os trabalhos já clássicos do historiador E. P. Thompson (1971THOMPSON, Edward P. 1971. “The moral economy of the English crowd in the eighteenth century”. Past & Present, 50:76-136., 1991THOMPSON, Edward P. 1991. “The moral economy reviewed”. In: Customs in common. London: The Merlin Press. pp. 259-351.), a literatura sobre movimentos sociais ligados à fome e ao encarecimento dos alimentos básicos destacou a dimensão moral dos protestos, a imbricação entre urgência (Fassin 2009bFASSIN, Didier. 2009b. “Les économies morales revisitées”. Annales. Histoire, Sciences Sociales, 64:1237-1266.) e esperança (Guyer 2016aGUYER, Jane. 2016a. “’Toiling Ingenuity’: Food Regulation in Britain and Nigeria”. In: Legacies. Logics. Logistics. Essays in the Anthropology of the Platform Economy. Chicago: University of Chicago Press. Chapter 2:40-63.), e o fato de que nos protestos da fome nunca está em jogo “só a mera sobrevivência”, a procura de água e comida para satisfazer necessidades biológicas mínimas. Muito mais do que isso (ou melhor, junto e através disso), sempre está em jogo a procura por uma vida digna, que merece ser vivida - algo muito distante das imagens estereotipadas da fome que circulam na mídia internacional mostrando multidões de indivíduos (em geral negros) desesperados lutando entre si, correndo para pegar kits de alimentos lançados desde o céu pelos helicópteros de ajuda humanitária (pilotados por pessoas brancas).

Paradoxalmente, as crises alimentares revelam que os valores associados à vida e ao bem-estar não são unidimensionais e que, na sua materialidade mais crua, a vida reconhece patamares múltiplos. Ou, como diria Judith Butler (2012BUTLER, Judith. 2012. “Can one lead a good life in a bad life?”. Radical Philosophy, 176:9-18.) lembrando Primo Levi e Hanna Arendt, sabemos que a luta pela vida não precede ao universo da moralidade. De fato, acontece o contrário: as pessoas denunciam coletivamente e coletivamente se constituem como pessoas morais e políticas que denunciam. Jovens e adultos se manifestam, crianças distribuem água transportada em baldes e servida em latas ou xícaras, as mulheres distribuem comida feita nas ruas. Lavi chè celebra a vida, inclusive quando a coloca em risco entre o fogo e a fumaça das barricadas, diante da possibilidade sempre presente da violência. Manifestar-se contra a vida cara é, assim, uma forma de buscar a vida (chache lavi).

Comecei a me perguntar sistematicamente pelos sentidos da expressão chache lavi pouco depois do terremoto que em 12 de janeiro de 2010 acabou em um instante com a vida de mais de 200.000 pessoas só na área metropolitana de Port-au-Prince, deixando um rastro incomensurável de feridos e de destruição. Imediatamente depois se desatou ainda uma devastadora epidemia de cólera que atacou especialmente os acampamentos que abrigavam aqueles que tinham perdido as suas casas, matando outras dezenas de milhares de pessoas (Neiburg 2021NEIBURG, Federico. 2021. “Multiscale Home: Shifting Landscapes and Living-in-Movement in Haiti”. Cultural Anthropology, 36 (4):548-55. ).

Nessas paisagens de destruição e sofrimento comecei a dar atenção a ditados como aquele que disse: “se você abaixar os braços, você morre” e, em particular, à expressão chache lavi. Ela evoca ao mesmo tempo a dureza da materialidade da vida, a inteligência e o senso de oportunidade necessários para se virar nas situações de extremas privação e tragédia, nas quais as margens de ação parecem estar contidas dentro de limites muito estreitos (Jackson 2011JACKSON, Michael. 2011. Life within Limits. Well-being in a World of Want. Durham: Duke University Press .; Singh 2016SINGH, Bhrigupati. 2016. “Hunger and Thirst: Crisis at Varying Thresholds of Life”. In: Veena Das & Clara Han (eds.), Living and Dying in the Contemporary World. A Compendium. California: University of California Press. pp. 576-598. ) da falta de dinheiro, da busca cotidiana por comida, água e refúgio.

Como sugerimos em outro lugar (Neiburg & Joseph 2021NEIBURG, Federico & JOSEPH, Handerson. 2021. “Searching for Life in Times of Pandemic”. In: Didier Fassin & Marion Fourcade, Pandemic Exposures: Economy and Society in the Time of Coronavirus. Chicago: Hau Books/Chicago University Press . pp. 321-42., também Evangelista 2019EVANGELISTA, Felipe. 2019. “Comércio”. In: F. Neiburg (org.), Conversas etnográficas haitianas. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens . pp. 101-130.), o campo semântico do conceito chache lavi tem como núcleo o movimento. A busca pela vida cotidianamente nas ruas e estradas do país e nas geografias da diáspora, fora das fronteiras nacionais, onde vivem ou circulam aproximadamente 30 % da população do Haiti, não só à procura de recursos para si e para os próximos (enviados na forma de remessas), mas também à procura de portas que sirvam para a mobilidade dos outros. Pessoas que são “umas das outras” (Dalmaso 2019DALMASO, Flavia. 2019. “Família”. In: F. Neiburg (org.), Conversas etnográficas haitianas. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. pp. 53-80.), inclusive à distância.

Para os meus interlocutores no Haiti e na diáspora, a mobilidade que atende às próprias expectativas e às expectativas dos outros próximos é moralmente constitutiva da pessoa. O movimento estabiliza as relações entre aqueles que circulam e aqueles que ficam em casa, permitindo manter os laços com parentes e antepassados, com os que residem num local e os que circulam dentro e fora das fronteiras nacionais. Nessas paisagens instáveis e fluidas, as pessoas se fazem pessoas em movimento. O movimento é relacional e moralmente produtivo enquanto a moralidade das relacionalidades é condição de possibilidade e consequência do próprio movimento.

As associações entre vida e movimento fazem parte do cotidiano e da história haitianos que impregna o dia a dia das vidas. Nas paisagens do plantationcene a imobilidade está associada ao cativeiro, à feitiçaria e à morte. Como explicou Rodrigo Bulamah (2021BULAMAH, Rodrigo. 2021. “Lòk: Pandemics and (Im)mobility in Northern Haiti”. Global Perspectives, 2 (1):1-7.), sujeitar (bare), atar (kenbe) e restringir (kanpe), entre outros termos, falam de corpos, moralidades e emoções. A mobilidade, ao contrário, é sinônimo de vitalidade. Como sugere outro provérbio: “onde há fome, as cabras não morrem amarradas às cordas” (kote ki gen grangou, kabrit pa mouri nan kòd). A escravização impulsiona a fuga, a marronagem. A miséria e a catástrofe também impulsionam a mobilidade. “Pegar a estrada” (pwan woul la) é assim sinônimo de vida e de esperança (Montinard 2020MONTINARD, Mélanie Monique Leger. 2020. “Pran wout la: Expériences et dynamiques de la mobilité haïtienne”. Vibrant: Brazilian Virtual Anthropology, 17:1-33.).

Evocações como essas demandam sem dúvida mais comentários, especialmente sobre a profundidade histórica dessas paisagens e sobre a inscrição da história no presente das formas de buscar a vida. Para meu argumento aqui, no entanto, o foco está no vínculo que o conceito chache lavi evoca entre a materialidade da vida e a moralidade da pessoa, da boa vida e da vida que merece ser vivida. Temos aqui outra região de contato entre vida e economia revelada não por uma emergência súbita, provocada por um evento crítico como o terremoto, mas pela sua inscrição no tempo mais longo da emergência endêmica (Pandolfi 2010PANDOLFI, Mariella. 2010. “From Paradox to Paradigm: The Permanente State of Emergency in the Balkans”. In: Didier Fassin & Mariella Pandolfi (eds.), Contemporary States of Emergency: The Politics of Military and Humanitarian Interventions. Princeton: Zone Books/Princeton University Press. pp. 153-172.), povoada pela sucessão de “desastres ordinários” (Beckett 2019BECKETT, Greg. 2019. There is no More Haiti. Between Death and Life in Port-au-Prince. Oakland: University of California Press., 2020BECKETT, Greg. 2020. “Unlivable Life: Ordinary Disaster and the Atmosphere of Crisis in Haiti”. Small Axe: A Caribbean Journal of Criticism, 24(2) 62:78-95. https://doi.org/10.1215/07990537-8604502
https://doi.org/10.1215/07990537-8604502...
) que modulam a contínua crise haitiana e as disposições que permitem às pessoas navegar nela, buscando a vida.

Os cálculos que relacionam vidas humanas e quantidades de dinheiro acompanham a própria criação de Haiti como nação. Em primeiro lugar, nas dinâmicas dos mercados de seres humanos escravizados que deram forma à plantação no período colonial. Depois da independência (da primeira nação não branca do planeta, em 1804), por mais de um século na forma de indenizações pagas aos antigos colonos franceses. Essas indenizações consideravam não só o suposto valor monetário das terras expropriadas na revolução, mas também o valor das próprias pessoas escravizadas que tinham sido libertas e “perdidas” por seus senhores (Araujo 2017ARAUJO, Ana Lucia. 2017. Reparations for Slavery and the Slave Trade. A Transnational and Comparative History. London: Bloomsbury.; Oudin-Bastide & Steiner 2019OUDIN-BASTIDE, Caroline & STEINER, Philippe. 2019. Calculation and Morality: The Costs of Slavery and the Value of Emancipation in the French Antilles. Oxford: Oxford University Press . ). Essa primeira dívida externa dos tempos modernos (Graeber 2011GRAEBER, David. 2011. Debt. The First 5.000 Years. London: Melville House.), que foi tomada pelo governo haitiano para indenizar os antigos senhores, e que está na raiz da persistente miséria do país e do chache lavi que com ela faz sistema, se baseava também no cálculo do valor monetário da vida de seres humanos.

Fim: sobre a pragmática e as políticas da vida e da economia

As relações entre vida e economia parecem vir à tona nas paisagens de emergência, como as evocadas aqui pelas hiperinflações sul-americanas, pela catástrofe do terremoto no Haiti e pela pandemia de Covid-19. Essas paisagens são também atmosféricas (McCormack 2015McCORMACK, Derek. 2015. “Governing Inflation: Price and Atmospheres of Emergency”. Theory, Culture & Society, 32 (2):131-154.), elas envolvem dimensões sensoriais. Conceitos como custo de vida ou como chache lavi evocam sensibilidades compartilhadas e, ao mesmo tempo, desigualmente distribuídas; sensações de tempo e de temperatura, de pressão e de intensidade, nas quais eventos extraordinários marcam o fluxo das vidas no dia a dia, imbricando a cotidianidade com os tempos críticos.

Há mais de dois anos que estamos envolvidos em um drama atravessado pela temporalidade incerta da emergência suscitada pela pandemia de covid-19. Ela se desdobra em uma espiral de sofrimento estimulado por guerras, violência policial, crises políticas e, cada vez mais, pelo aumento do custo de vida. Concluo estas linhas quando é claro que vivemos o maior ciclo inflacionário em escala mundial das últimas décadas. Ele atinge especialmente os países mais pobres e as pessoas mais pobres dentro de cada país, aquelas vidas cujo custo em termos relativos aumenta mais dramaticamente, incrementando com isso a pobreza e as desigualdades sociais.

Esse processo sublinha a dimensão política do projeto apresentado neste ensaio, que busca mapear regiões de contato entre vida e economia. O caráter talvez desmesurado da empreitada se justifica pela abordagem: a pragmática histórica da vida e da economia que aqui se propõe só ganha sentido na sua própria vastidão.23 23 Não é este o lugar para desenvolver o sentido do adjetivo “histórico” que acompanha esta empreitada de inspiraçao malinowskiana. Ainda que sem apresentar, justamente, uma perspectiva histórica, ver Malinowski 1935 (2002), Vol 2, Parte 4: “An Ethnographic Theory of Language and Some Practical Colloraries”. Em cada região descrita ao longo deste texto (da numerificação e da monetização da vida cristalizada no conceito de custo de vida ao vínculo entre a materialidade e a moralidade da vida, iluminado pelo conceito chache lavi), revelam-se paisagens multiescalares nas quais confluem conceitos e agências eruditas e ordinárias. Especialistas em número e em humanitarismo, por exemplo, que praticam a economia da vida por meio de políticas públicas. Pessoas se virando nas crises inflacionárias e em outras catástrofes que, por sua vez, conversam com essas políticas.

Nada mais longe desta pragmática da vida e da economia do que a denúncia das políticas da vida dos especialistas em benefício de um suposto realismo etnográfico que estaria mais próximo da realidade da vida das pessoas de carne e osso. Trata-se, ao contrário, de colocar umas e outras em igualdade de condições epistemológicas, na mesa do/a etnógrafo/a, o que evidentemente não envolve a idealização romântica de nenhuma das agências, antes ao contrário a comprovação das diferenças e das desigualdades que as unem nas formas de entender e de relacionar vidas e economias, que mudam ao longo do tempo e que se apresentam de maneiras distintas em paisagens variadas, iluminando umas as outras.

Agradecimentos:

o argumento central deste ensaio foi apresentado na conferência para a minha promoção a Professor Titular do Departamento de Antropologia do Museu Nacional (29 de julho de 2019). Um primeiro esboço tinha sido descrito dois anos antes em um seminário realizado no Departamento de Antropologia da Universidade Nacional de Brasília. Depois, amadureceu em palestras e seminários ocorridos no Departamento de Antropologia da Johns Hopkins University (2020) e no Institute for Advanced Study (Princeton 2020). Por último, a versão mais próxima a aqui apresentada foi exposta na 7ª Conferência Esther Hermitte, Centro de Antropologia Social (CAS), Instituto de Desarrollo Económico y Social (IDES, Buenos Aires), em 12 de dezembro de 2021. Agradeço a todas e todos que conversaram comigo nesses diversos cenários, também aos que participaram dos seminários do Núcleo de Pesquisas em Cultura e Economia (NuCEC) no qual algumas dessas ideias foram discutidas, e às alunas e aos alunos do curso “Vidas incertas - Introdução à antropologia da economia e da temporalidade” oferecido no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS), Museu Nacional, no segundo semestre de 2019. Por último, sou grato à leitura generosa, em fases diferentes da elaboração, de Eugênia Motta, Gustavo Onto, Horacio Ortiz, Isabelle Guérin, Marion Fourcade, Rodrigo Bulamah e Susana Narotzky. Nenhum deles, é claro, é responsável pelas banalidades ou pelos erros que possam aqui ser identificados.

Referências bibliográficas

  • AGAMBEN, Giorgio. 2005. State of Exception Chicago: Chicago University Press.
  • ARAUJO, Ana Lucia. 2017. Reparations for Slavery and the Slave Trade. A Transnational and Comparative History London: Bloomsbury.
  • BEAR, Laura. 2015. Navigating Austerity. Current Debt along a South Asian River Stanford: Stanford University Press.
  • BECKER, Gary S. 1992. “The Economic Way of looking at Life”. Nobel Lecture. Economic Science, p. 38-58.
  • BECKETT, Greg. 2019. There is no More Haiti. Between Death and Life in Port-au-Prince Oakland: University of California Press.
  • BECKETT, Greg. 2020. “Unlivable Life: Ordinary Disaster and the Atmosphere of Crisis in Haiti”. Small Axe: A Caribbean Journal of Criticism, 24(2) 62:78-95. https://doi.org/10.1215/07990537-8604502
    » https://doi.org/10.1215/07990537-8604502
  • BULAMAH, Rodrigo. 2021. “Lòk: Pandemics and (Im)mobility in Northern Haiti”. Global Perspectives, 2 (1):1-7.
  • BUTLER, Judith. 2012. “Can one lead a good life in a bad life?”. Radical Philosophy, 176:9-18.
  • CARVALHO, Laura. 2020. Curto-circuito. O vírus e a volta do Estado São Paulo: Todavia.
  • CASTRO, Marcia C.; GURZENDA, Susie; TURRA, Cassio M. et al. 2021. “Reduction in life expectancy in Brazil after COVID-19”. Nature Med, 27:1629-1635. https://doi.org/10.1038/s41591-021-01437-z
    » https://doi.org/10.1038/s41591-021-01437-z
  • DALMASO, Flavia. 2019. “Família”. In: F. Neiburg (org.), Conversas etnográficas haitianas Rio de Janeiro: Papéis Selvagens. pp. 53-80.
  • DANIEL, Claudia & LANATA BRIONES, Cecilia. 2019. “Battles over numbers: the case of the Argentine consumer price index (2007-2015)”. Economy and Society, 48 (1):127-151.
  • DAS, Veena. 2020. Vida e palavras. A violência e a sua descida ao ordinário São Paulo: Unifesp.
  • DENNING, Michael. 2010. “Wageless Life”. New Left Review, 66:79-97.
  • DIAS DUARTE, Luiz Fernando. 2021. “The vitality of vitalism in contemporary anthropology: longing for an ever-green tree of life”. Anthropological Theory, 21 (2):131-153.
  • ENGELS, Friedreich. 1987 [1845]. The Condition of the Working Class in England London: Penguin Books.
  • EVANGELISTA, Felipe. 2019. “Comércio”. In: F. Neiburg (org.), Conversas etnográficas haitianas Rio de Janeiro: Papéis Selvagens . pp. 101-130.
  • FASSIN, Didier. 2009a. “Another Politics of Life is Possible”. Theory, Culture & Society, 26 (5):44-60.
  • FASSIN, Didier. 2009b. “Les économies morales revisitées”. Annales. Histoire, Sciences Sociales, 64:1237-1266.
  • FASSIN, Didier. 2017. “Introduction: When Ethnography Goes Public”. In: Didier Fassin (ed.), If truth be told: the politics of public ethnography Durham: Duke University Press. pp. 1-18.
  • FASSIN, Didier. 2018. Life. A Critical User’s Manual New York: Polity Press.
  • FELDMAN, Gerald D. 1997. The Great Disorder. Politics, Economics, and Society in the German Inflation 1914-1924 Oxford: Oxford University Press.
  • FERNÁNDES ÁLVAREZ, Maria Inés & PERELMAN, Mariano. 2020. “Perspectivas antropológicas sobre las formas de (ganarse la) vida”. Cuadernos de Antropologia Social, 51.
  • FOURCADE, Marion. 2009. “The political valuation of life. A comment on W. Kip Viscusi’s ‘The devaluation of life’”. Regulation & Governance, 3:291-297.
  • FOURCADE, Marion. 2016. “Ordinalization”. Sociological Theory, 34(3):175-195.
  • FOUCAULT, Michel. 2010 [1979]. Nascimento da Biopolítica São Paulo: Martins Fontes.
  • GRAEBER, David. 2011. Debt. The First 5.000 Years London: Melville House.
  • GEORGIEVA, Kristalina & GHEBREYESUS, Tedros Adhanom. 2020. “Some say there is a trade-off: save lives or save jobs - this is a false dilemma”. The Telegraph, 3 de abril. https://www.telegraph.co.uk/global-health/science-and-disease/protecting-healthandlivelihoods-go-hand-in-hand-cannot-save/
    » https://www.telegraph.co.uk/global-health/science-and-disease/protecting-healthandlivelihoods-go-hand-in-hand-cannot-save/
  • GUDEMAN, Stephen & RIVERA, Alberto. 1990. Conversations in Colombia. The Domestic Economy in Life and Text Cambridge: Cambridge University Press.
  • GUYER, Jane. 2004. Marginal Gains: Monetary Transactions in Atlantic Africa Chicago: The University of Chicago Press.
  • GUYER, Jane. 2014. “Percentages and perchance: Archaic forms in the 21st century”. Distinktion: Scandinavian Journal of Social Theory, 5 (2):155-73.
  • GUYER, Jane. 2016a. “’Toiling Ingenuity’: Food Regulation in Britain and Nigeria”. In: Legacies. Logics. Logistics. Essays in the Anthropology of the Platform Economy Chicago: University of Chicago Press. Chapter 2:40-63.
  • GUYER, Jane. 2016b. “Indexing People to Money: The Fate of ‘Shelter’”. In: Legacies. Logics. Logistics. Essays in the Anthropology of the Platform Economy Chicago: University of Chicago Press . Chapter 9:181-199.
  • HAYEK, Friedrich A. 1998 [1982]. Law, Legislation and Liberty. A New Statement of the Liberal Principles of Justice and Political Economy Vol. 3: The Political Order of Free People London: Routledge.
  • HEREDIA, Beatriz. 1979. A morada da vida Rio de Janeiro: Paz e Terra.
  • HERSKOVITS, Melville. 1937. Life in a Haitian Valley New York: Knopf.
  • INGOLD, Tim. 2011. Being Alive: Essays on Movement, Knowledge and Description London: Routledge .
  • JACKSON, Michael. 2011. Life within Limits. Well-being in a World of Want Durham: Duke University Press .
  • KEYNES, John Maynard. 1940. How to Pay for the War: A radical plan for the Chancellor of the Exchequer New York: Macmillan and Co. Ltd.
  • KOSELLECK, Reinhart. 2006 [1972]. “Crisis”. Journal of the History of Ideas, 67 (2):357-400.
  • LANGLEY, Paul. 2015. Liquidity Lost. The Governance of the Global Financial Crisis Oxford: Oxford University Press .
  • MALINOWSKI, Bronislaw. 2002 [1935]. Coral Gardens and its Magic. A Study of the Methods of Tilling the Soil and of Agricultural Rites in the Trobriand Islands London: Routledge .
  • McCORMACK, Derek. 2015. “Governing Inflation: Price and Atmospheres of Emergency”. Theory, Culture & Society, 32 (2):131-154.
  • MENDERSHAUSEN, Horst. 1943. The Economics of War New York: Prentice Hill.
  • MEYLER, Bernadette. 2007. “Economic Emergency and the Rule of Law”. Cornell Law Faculty Publications. Paper 1371. http://scholarship.law.cornell.edu/facpub/1371
    » http://scholarship.law.cornell.edu/facpub/1371
  • MINTZ, Sidney. 1964. “Currency problems in eighteenth-century Jamaica and Gresham’s Law”. In: Robert A. Manners (ed.), Process and pattern in culture: Essays in honor of Julian N. Steward Chicago: Aldine. pp. 264-85.
  • MODIGLIANI, Franco. 1966. “Life Cycle, Individual Thrift and the Wealth of Nations”. Nobel Lecture. Sloan School of Management. Cambridge, MA: Massachusetts Institute of Technology.
  • MONTINARD, Mélanie Monique Leger. 2020. “Pran wout la: Expériences et dynamiques de la mobilité haïtienne”. Vibrant: Brazilian Virtual Anthropology, 17:1-33.
  • MOTTA, Eugênia. 2014. “House and economy in the favela”. Vibrant, 11 (1):119-158.
  • MUNIESA, Fabian. 2007. “Market technologies and the pragmatics of prices”. Economy and Society, 36 (3):377-395.
  • NAROTZKY, Susana. 2019. “Austerity Lives in Southern Europe: Experience, Knowledge, Evidence, and Social Facts”. American Anthropologist, 121 (1).
  • NAROTZKY, Susana & BESNIER, Niko. 2014. “Crisis, Value, Hope: Rethinking the Economy”. Current Anthropology, 55 (S9):4-16.
  • NEIBURG, Federico. 2006. “Inflation: Economists and Economic Cultures in Brazil and Argentina”. Comparative Studies in Society and History, 48 (3):604-633.
  • NEIBURG, Federico. 2007. “As moedas doentes, os números públicos e a antropologia do dinheiro”. Mana. Estudos de Antropologia Social, 13 (1):119-151.
  • NEIBURG, Federico. 2010. “Sick Currencies and Public Numbers”. Anthropological Theory ,10 (1):1-7.
  • NEIBURG, Federico. 2011. “La guerre des indices. L’inflation au Brésil (1964-1994)”. Genèses. Sciences Sociales et Histoire, 3 (84):25-46.
  • NEIBURG, Federico. 2016. “A true coin of their dreams: Imaginary monies in Haiti (The 2010 Sidney Mintz Lecture)”. HAU: Journal of Ethnographic Theory, 6 (1):75-93.
  • NEIBURG, Federico. 2020. “Vidas, economia e emergências”. Boletim Ciências Sociais e Coronavirus, 22, Anpocs. http://anpocs.com/images/stories/boletim/boletim_CS/Boletim_n22.pdf
    » http://anpocs.com/images/stories/boletim/boletim_CS/Boletim_n22.pdf
  • NEIBURG, Federico. 2021. “Multiscale Home: Shifting Landscapes and Living-in-Movement in Haiti”. Cultural Anthropology, 36 (4):548-55.
  • NEIBURG, Federico & DODD, Nigel. 2019. “Monetary Landscapes of the Nineteenth Century”. In: NEIBURG, Federico & DODD, Nigel, A Cultural History of Money in the Age of Empire London: Bloomsbury . pp. 1-14.
  • NEIBURG, Federico & GUYER, Jane. 2019. “The Real in the Real Economy”. In: NEIBURG, Federico & GUYER, Jane (eds.), The Real Economy. Essays in Ethnographic Theory Chicago: Hau Books/Chicago University Press. pp. 1-25.
  • NEIBURG, Federico & JOSEPH, Handerson. 2021. “Searching for Life in Times of Pandemic”. In: Didier Fassin & Marion Fourcade, Pandemic Exposures: Economy and Society in the Time of Coronavirus Chicago: Hau Books/Chicago University Press . pp. 321-42.
  • NUNES MONTEIRO, Thiago. 2017. Como pode um povo vivo viver nesta carestia. O movimento do Custo de Vida em São Paulo (1973-1982) São Paulo: Humanitas/Fapesp.
  • NUSSBAUM, Martha & AMARTYA, Sen. 1999. The Quality of Life Oxford: Clarendon.
  • O’DOUGHERTY, Maureen. 2002. Consumption Intensified. The Politics of Middle-Class Daily Life in Brazil Durham: Duke University Press .
  • ORLÉAN, André. 2007. “Crise de souveranité et crise monétaire: l’hyperinflation allemande des annés 1920”. In: Bruno Théret (org.), La monnaie dévoilée par ses crises Vol II. Crises Monétaires en Russie et en Allemagne au XXe siècle Paris: Éditions EHESS. pp. 187-219.
  • OUDIN-BASTIDE, Caroline & STEINER, Philippe. 2019. Calculation and Morality: The Costs of Slavery and the Value of Emancipation in the French Antilles Oxford: Oxford University Press .
  • PANDOLFI, Mariella. 2010. “From Paradox to Paradigm: The Permanente State of Emergency in the Balkans”. In: Didier Fassin & Mariella Pandolfi (eds.), Contemporary States of Emergency: The Politics of Military and Humanitarian Interventions Princeton: Zone Books/Princeton University Press. pp. 153-172.
  • PEIRCE, Charles Sanders. 1998 [1931-35]. The Collected Papers Vol. 2. Cambridge, M.A.: Harvard University Press.
  • PETRYNA, Adriana. 2022. Horizon Work: At the Edges of Knowledge in an Age of Runaway Climate Change Princeton: Princeton University Press.
  • PETTI, Daniela. 2022. “Precariousness and inequalities amidst daily uncertainty: life and hope during the Covid-19 Pandemic”. Vibrant , 19:1-18.
  • PIKETTY, Thomas. 2014. Capital in the Twenty-First Century Cambridge: Harvard University Press.
  • PITROU, Perig. 2014. “La vie, un objet pour l’anthropologie. Options méthodologiques et problèms épistémiologiques”. L’Homme, 212:159-190.
  • PINA-CABRAL, João. 2018. “Turning to Life. A comment”. HAU. Journal of Ethnographic Theory, 8 (30):522-529.
  • SCHEUERMAN, William E. 2000. “The Economic State of Emergency”. Cardozo Law Review, 21 (5-6):1869-1894.
  • SIMMEL, Georg. 2008 [1909]. The Philosophy of Money London and New York: Routledge.
  • SIMMEL, Georg. 2010 [1918]. The View of Life. Four Metaphysical Essays with Journal Aphorisms Chicago and London. Chicago University Press.
  • SINGH, Bhrigupati. 2016. “Hunger and Thirst: Crisis at Varying Thresholds of Life”. In: Veena Das & Clara Han (eds.), Living and Dying in the Contemporary World. A Compendium California: University of California Press. pp. 576-598.
  • STAPLEFORD, Thomas. 2009. The Cost of Living in America. A Political History of Economic Statistic 1880-2000 Cambridge: Cambridge University Press .
  • STIGLITZ, Joseph E.; SEN, Amartya & FITOUSSI, Jean-Paul. 2010. Mismeasuring Our Lives Why GDP Doesn’t Add Up New York and London: The New Press.
  • THOMPSON, Edward P. 1971. “The moral economy of the English crowd in the eighteenth century”. Past & Present, 50:76-136.
  • THOMPSON, Edward P. 1991. “The moral economy reviewed”. In: Customs in common London: The Merlin Press. pp. 259-351.
  • TOOZE, Adam. 2001. Statistics and the German State, 1900-1945: The Making of Modern Economic Knowledge Cambridge: Cambridge University Press .
  • TOOZE, Adam. 2013. O preço da destruição: Construção e ruína da economia alemã Rio de Janeiro: Record.
  • TOOZE, Adam. 2020. “We are living through the first economic crisis of the Anthropocene”. The Guardian, 07/05/2020. https://www.theguardian.com/books/2020/may/07/we-are-living-through-the-first-economic-crisis-of-the-anthropocene
    » https://www.theguardian.com/books/2020/may/07/we-are-living-through-the-first-economic-crisis-of-the-anthropocene
  • TSING, Anna Lowenthal. 2015. The mushroom at the end of the world. On the possibility of life in capitalist ruins Princeton and Oxford: Princeton University Press.
  • VERRAN, Helen. 2010. “Number as an inventive frontier in knowing and working Australia’s water resources”. Anthropological Theory, 10 (1):123-31.
  • VIEIRA, Rosa Cavalcanti Ribas. 2021. Óleo de palma, pessoas e casas na floresta do Mayombe Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ.
  • VISCUSI, Kip W. & ALDY, Joseph E. 2002. “The Value of a Statistical Life: A Critical Review of Market Estimates throughout the World”. Journal of Risk and Uncertainty, 27 (1):5-76.
  • WEBER, Max. 1965 [1913]. “Essai sur quelques catégories de la sociologie compréhensive”. In: M. Weber, Essais sur la théorie de la science Paris: Plon.
  • WEBER, Max. 1996 [1915]. “Considérations intermédiaires”. In: Sociologie des religions Paris: Gallimard.
  • ZELIZER, Viviana. 1979. Morals and Markets: The Development of Life Insurance in the United States New York: Columbia University Press.
  • ZELIZER, Viviana. 1985. Pricing the Priceless Child Princeton: Princeton University Press .

Notas

  • 1
    Como se relata nos agradecimentos, a base deste texto é uma sucessão de conferências. O tom falado, que aqui foi em certo modo mantido, é coerente com o ensaio como gênero.
  • 2
    Foi no período da I Guerra quando o conceito de “essencial para a vida” foi mobilizado pela primeira vez por especialistas, na Alemanha e na Inglaterra (Tooze 2013TOOZE, Adam. 2013. O preço da destruição: Construção e ruína da economia alemã. Rio de Janeiro: Record.).
  • 3
    Sobre a gênese desses debates ver, por exemplo, Mendershausen (1943)MENDERSHAUSEN, Horst. 1943. The Economics of War. New York: Prentice Hill., Keynes (1940)KEYNES, John Maynard. 1940. How to Pay for the War: A radical plan for the Chancellor of the Exchequer. New York: Macmillan and Co. Ltd. e as respostas a este último por Hayek 1998 [1982]HAYEK, Friedrich A. 1998 [1982]. Law, Legislation and Liberty. A New Statement of the Liberal Principles of Justice and Political Economy. Vol. 3: The Political Order of Free People. London: Routledge., vol. 2:124-26.
  • 4
    Chamado “Coronavirus Aid, Relief, and Economic Security Act” (CARES).
  • 5
    Há ecos aqui, evidentemente, da análise das temporalidades da crise proposta por Koselleck (2006)KOSELLECK, Reinhart. 2006 [1972]. “Crisis”. Journal of the History of Ideas, 67 (2):357-400..
  • 6
    No auge de uma nova onda de coronavirus, o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, foi ainda mais claro, pedindo para que as pessoas: “contribuam com a sua vida para salvar a economia” (Estado de Minas, 25/02/21. https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2021/02/25/interna_nacional,1241134/contribua-com-a-sua-vida-para-que-a-gente-salve-a-economia-diz-prefeito.shtml)
  • 7
    Sobre esse duplo sentido da “publicidade” (popularização e politização), Fassin (2017)FASSIN, Didier. 2017. “Introduction: When Ethnography Goes Public”. In: Didier Fassin (ed.), If truth be told: the politics of public ethnography. Durham: Duke University Press. pp. 1-18..
  • 8
    Este é o título do dossiê publicado na revista Hau. Journal of Ethnographic Theory, em 2018, https://www.haujournal.org/index.php/hau/issue/view/hau8.3
  • 9
    Ver a respeito, por exemplo, a análise de Dias Duarte (2021)DIAS DUARTE, Luiz Fernando. 2021. “The vitality of vitalism in contemporary anthropology: longing for an ever-green tree of life”. Anthropological Theory, 21 (2):131-153..
  • 10
    Algumas aproximações etnográficas recentes com as relações entre vida e economia podem ser vistas em pesquisas que tratam de crise e austeridade (como Narotzky & Besnier 2014NAROTZKY, Susana & BESNIER, Niko. 2014. “Crisis, Value, Hope: Rethinking the Economy”. Current Anthropology, 55 (S9):4-16., e Bear 2015BEAR, Laura. 2015. Navigating Austerity. Current Debt along a South Asian River. Stanford: Stanford University Press.), de “vidas austeras” (Narotzky 2019NAROTZKY, Susana. 2019. “Austerity Lives in Southern Europe: Experience, Knowledge, Evidence, and Social Facts”. American Anthropologist, 121 (1).), ou das dinâmicas do “ganhar a vida” (como Fernándes Álvarez & Perelman 2020FERNÁNDES ÁLVAREZ, Maria Inés & PERELMAN, Mariano. 2020. “Perspectivas antropológicas sobre las formas de (ganarse la) vida”. Cuadernos de Antropologia Social, 51.). No âmbito da produção do Núcleo de Pesquisas em Cultura e Economia (NuCEC), vários pesquisadores têm indagado questões próximas, como Evangelista (2019)EVANGELISTA, Felipe. 2019. “Comércio”. In: F. Neiburg (org.), Conversas etnográficas haitianas. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens . pp. 101-130., Montinad (2020)MONTINARD, Mélanie Monique Leger. 2020. “Pran wout la: Expériences et dynamiques de la mobilité haïtienne”. Vibrant: Brazilian Virtual Anthropology, 17:1-33. e Neiburg e Joseph (2021)NEIBURG, Federico & JOSEPH, Handerson. 2021. “Searching for Life in Times of Pandemic”. In: Didier Fassin & Marion Fourcade, Pandemic Exposures: Economy and Society in the Time of Coronavirus. Chicago: Hau Books/Chicago University Press . pp. 321-42. no Haiti, Vieira (2021)VIEIRA, Rosa Cavalcanti Ribas. 2021. Óleo de palma, pessoas e casas na floresta do Mayombe. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ. na República Democrática do Congo, e Petti (2022)PETTI, Daniela. 2022. “Precariousness and inequalities amidst daily uncertainty: life and hope during the Covid-19 Pandemic”. Vibrant , 19:1-18. no Rio de Janeiro.
  • 11
    Sobre os dilemas morais suscitados pela valoração monetária da vida, ver os trabalhos pioneiros de Zelizer (1979ZELIZER, Viviana. 1979. Morals and Markets: The Development of Life Insurance in the United States. New York: Columbia University Press., 1985ZELIZER, Viviana. 1985. Pricing the Priceless Child. Princeton: Princeton University Press .).
  • 12
    A elaboração dessa distinção, iniciada no século XVIII (Mintz 1964MINTZ, Sidney. 1964. “Currency problems in eighteenth-century Jamaica and Gresham’s Law”. In: Robert A. Manners (ed.), Process and pattern in culture: Essays in honor of Julian N. Steward. Chicago: Aldine. pp. 264-85.), se consolidou ao longo do século XIX (Neiburg & Dodd 2019 NEIBURG, Federico & DODD, Nigel. 2019. “Monetary Landscapes of the Nineteenth Century”. In: NEIBURG, Federico & DODD, Nigel, A Cultural History of Money in the Age of Empire. London: Bloomsbury . pp. 1-14.).
  • 13
    Em temos de Fourcade (2016)FOURCADE, Marion. 2016. “Ordinalization”. Sociological Theory, 34(3):175-195., passa-se das valorações nominais (ontológicas) a valorações numéricas cardinais (orientadas a quantidades) e ordinais (orientadas a posições).
  • 14
    Naquela época, no século XIX, o assalariamento era, como é hoje (com a generalização da precarização e do chamado empreendedorismo), uma condição que alcançava poucos (Denning 2010DENNING, Michael. 2010. “Wageless Life”. New Left Review, 66:79-97.). O primeiro salário-mínimo foi instituído em 1894, na Nova Zelândia; no Brasil, em 1941, como em outros lugares, com a intervenção de médicos e sanitaristas, como no nosso país, Josué de Castro, uma figura-chave para a publicização (e a monetização) da fome como problema social.
  • 15
    Sobre as relações entre ordinalidad e porcentualidad, Guyer (2014)GUYER, Jane. 2014. “Percentages and perchance: Archaic forms in the 21st century”. Distinktion: Scandinavian Journal of Social Theory, 5 (2):155-73. e Verran (2010)VERRAN, Helen. 2010. “Number as an inventive frontier in knowing and working Australia’s water resources”. Anthropological Theory, 10 (1):123-31..
  • 16
    O aspecto que interessa aqui da teoria peirciana é que nenhum elemento da significação (neste caso, números e vidas) preexiste ou existe sem o outro (Peirce 1998 [1931-35]:53-54PEIRCE, Charles Sanders. 1998 [1931-35]. The Collected Papers. Vol. 2. Cambridge, M.A.: Harvard University Press.), nesse sentido eles se indexam mutuamente. Sobre a pragmática dos preços em chave peirciana, ver Muniesa 2007MUNIESA, Fabian. 2007. “Market technologies and the pragmatics of prices”. Economy and Society, 36 (3):377-395..
  • 17
    Para um comentário crítico sobre o VSL, ver Fourcade (2009)FOURCADE, Marion. 2009. “The political valuation of life. A comment on W. Kip Viscusi’s ‘The devaluation of life’”. Regulation & Governance, 3:291-297..
  • 18
    Ou como o célebre conceito do “ciclo de vida”, do também prêmio Nobel de economia, Franco Modigliani (1966)MODIGLIANI, Franco. 1966. “Life Cycle, Individual Thrift and the Wealth of Nations”. Nobel Lecture. Sloan School of Management. Cambridge, MA: Massachusetts Institute of Technology..
  • 19
    “Well-being and Happiness Report”, https://worldhappiness.report/
  • 20
    Como é o caso, por exemplo, dos iniciadores de necessidades básicas insatisfeitas (NBI), do indicador de desenvolvimento humano (IDH) ou do chamado índice Gini de desigualdade.
  • 21
    Utilizo aqui a noção de conversa na linha da monografia Conversations in Colombia. The Domestic Economy in Life and Text (Gudeman & Rivera 1990GUDEMAN, Stephen & RIVERA, Alberto. 1990. Conversations in Colombia. The Domestic Economy in Life and Text. Cambridge: Cambridge University Press.), na qual os autores procuram explicitar etnograficamente as relações entre formas eruditas e ordinárias de pensar a economia.
  • 22
    No Haiti 80% dos alimentos são importados. Como em outras ocasiões no país e em outras latitudes, os protestos estavam ligados a surtos nos preços internacionais das commodities.
  • 23
    Não é este o lugar para desenvolver o sentido do adjetivo “histórico” que acompanha esta empreitada de inspiraçao malinowskiana. Ainda que sem apresentar, justamente, uma perspectiva histórica, ver Malinowski 1935 (2002)MALINOWSKI, Bronislaw. 2002 [1935]. Coral Gardens and its Magic. A Study of the Methods of Tilling the Soil and of Agricultural Rites in the Trobriand Islands. London: Routledge ., Vol 2, Parte 4: “An Ethnographic Theory of Language and Some Practical Colloraries”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    02 Jun 2022
  • Aceito
    29 Jul 2022
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - PPGAS-Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Quinta da Boa Vista s/n - São Cristóvão, 20940-040 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel.: +55 21 2568-9642, Fax: +55 21 2254-6695 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revistamanappgas@gmail.com